Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção Fiocruz / EPSJV .





TRABALHO, EDUCAÇÃO E SAÚDE: referências e conceitos

Isabel Brasil Pereira Júlio César França Lima

O ano de 2008 é particularmente significativo para o lançamento da segunda edição do Dicionário da Educação Profissional em Saúde, pois neste momento se completam vinte anos da inscrição do Sistema Único de Saúde (SUS) no texto constitucional. Uma conquista democrática capitaneada por um amplo movimento social organizado em torno da Reforma Sanitária brasileira, marco do desenvolvimento de uma nova forma de pensar e fazer saúde no país, assim como da formação profissional dos trabalhadores técnicos de saúde.

O projeto da Reforma Sanitária brasileira tal qual concebido na 8a Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi construído ao mesmo tempo como uma bandeira específica do setor saúde e como parte de uma totalidade de mudanças. Isso é, diz respeito num primeiro plano ao reconhecimento da dinâmica do fenômeno saúde-doença em toda a sua extensão por meio dos indicadores de saúde, da organização das instituições que atuam no setor, da produção de medicamentos e equipamentos, e da formação dos trabalhadores de saúde. No segundo plano, além da dimensão ideológica, na qual se disputam concepções, valores e práticas, incorpora a dimensão das relações existentes entre a saúde e economia, trabalho, educação, salário, habitação, saneamento, transporte, terra, meio ambiente, lazer, liberdade e paz. Originalmente, portanto, o projeto da Reforma Sanitária está imbricado com a perspectiva de reforma social, com a construção de um Estado democrático, para além de uma reforma setorial, ao mesmo tempo que, ao ampliar o referencial teórico e o campo de análise das relações entre saúde e condições de vida e trabalho, recoloca-a como prática social e não apenas como fenômeno biológico.

É com base nesse arcabouço conceitual que a formação profissional dos trabalhadores técnicos de saúde passa a ser entendida como uma condição necessária, mas não suficiente, para a transformação das relações de trabalho, da prestação de serviços à população e para a própria participação do trabalhador no planejamento e avaliação dos serviços de saúde. Com vistas a superar o caráter alienado da escola e do trabalho em saúde no que diz respeito aos determinantes sociais do processo saúde-doença e do intenso processo de privatização no interior do setor saúde, bem como do histórico movimento pendular do antigo segundo grau - atual ensino médio - entre formação acadêmica e formação profissional, propõe-se a articulação deste nível de ensino com a formação profissional. Mais especificamente, a articulação da educação com o processo de trabalho em saúde ou o aprofundamento da estratégia ensino-serviço, aliando a dimensão técnica e a dimensão política no processo de formação, e a construção de um novo compromisso ético-político dos trabalhadores de saúde pautado na questão democrática, na relação solidária com a população, na defesa do serviço público e da dignidade humana.

Esse debate no setor saúde, particularmente no interior da Fundação Oswaldo Cruz, cujo marco é a realização do Seminário Choque Teórico, em 1987, é contemporâneo e se alimenta das discussões então travadas no interior do setor educacional, por meio do GT Trabalho-Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), desde o início dos anos 1980, acerca da formação profissional dos trabalhadores técnicos e da natureza do antigo ensino de segundo grau em nossa sociedade. A perspectiva era superar a dualidade entre cultura geral e cultura técnica com o projeto de escola unitária, “que expressa o princípio da educação como direito de todos” e que “pressupõe que todos tenham acesso aos conhecimentos, à cultura e às mediações necessárias para trabalhar e para produzir a existência e a riqueza social” (Ramos, 2007, p. 2). Esse debate introduz na história da educação brasileira o conceito de politecnia (Saviani, 1989), não como o domínio de uma multiplicidade de técnicas fragmentárias, mas como o domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que presidem o processo de trabalho moderno, o que recoloca as discussões acerca da relação trabalho-educação em novo patamar, buscando sobretudo, resgatar a dimensão contraditória do fenômeno educativo, seu caráter mediador e sua especificidade no processo de transformação da realidade.

Trabalho, Educação e Saúde articulam-se, assim, no bojo dessa intensa discussão que ocorre nos marcos do processo de redemocratização da sociedade brasileira e do processo constituinte nos anos 1980. Para uma parcela das forças políticas que então se reúnem em torno do projeto da Reforma Sanitária, profundamente imbricada com a perspectiva de uma reforma social na sua totalidade, novos desafios são colocados no que diz respeito ao perfil do trabalhador necessário para viabilizar a premissa estabelecida constitucionalmente de que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, baseada nos princípios de universalidade, eqüidade e integralidade, o que exigia, entre outros, repensar a formação profissional dos trabalhadores da saúde.

Em recente seminário de trabalho organizado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio sobre a Reforma Sanitária brasileira e os vinte anos do ‘SUS constitucional’ (Matta e Lima, 2008), fez-se um balanço desse período do qual podemos destacar dois aspectos centrais: que a reforma sanitária no seu processo de operacionalização se reduziu a uma reforma administrativa da saúde e que, já no final dos anos 1980 e principalmente nos anos 1990, teve de se confrontar com outro projeto em disputa na sociedade, o projeto mercantilista, para o qual a saúde é uma mercadoria como outra qualquer, que pode ser comprada no mercado para a satisfação das demandas e necessidades individuais (Paim, 2008). Ele reúne em torno de si empresários da saúde, corporações profissionais, o capital industrial investido nas indústrias farmacêuticas e de equipamentos, o capital financeiro e grandes organismos internacionais, que impõem o livre comércio - Organização Mundial do Comércio (OMC) e definem políticas sociais subsidiárias e compensatórias - Banco Mundial (BM).

Parece consensual entre os interlocutores que, na década de 1990 e início dos anos 2000, a temática da Reforma Sanitária esteve ausente da agenda dos principais fóruns e movimentos sociais que a alavancaram, e que na luta ideológica ocorre um retrocesso importante em relação ao setor saúde nesse período, na medida em que de um valor público, a saúde passa a ser vista como um bem de consumo modulado pelo poder de compra. Também no setor educacional ocorrem retrocessos, pois desde a década passada verifica-se um estreitamento da relação entre educação e trabalho alienado tornando a escola mais imediatamente interessada ou mais pragmática e, embora integre um contingente expressivo da classe trabalhadora, o faz de modo a inviabilizar a construção de uma crítica às relações sociais capitalistas.

À grande mobilização e às esperanças da década de 1980 seguiu-se, nos anos 1990, uma reversão das expectativas marcada pela radicalização da modernização conservadora e por políticas de reformas do Estado, com o fim de ajustar a economia ao processo de desregulamentação, flexibilização e privatização. Nesse cenário, verifica-se um refluxo dos movimentos sociais de cunho democrático e popular, a ‘conversão mercantil-filantrópica da militância’ em torno das organizações não-governamentais (ONGs), a emergência do sindicalismo de resultados, novas formas de privatização na área de saúde, a escassez de recursos, a precarização dos vínculos e de remuneração dos trabalhadores de saúde, e a crescente precarização das condições de trabalho (Fontes, 2008; Santos, 2008).

No contexto neoliberal que se instaura na década de 1990 com o governo Collor e se aprofunda no governo FHC, tanto na área da saúde como na educação combina-se um discurso que reconhece a importância destas áreas com a redução dos investimentos nas mesmas e apelos à iniciativa privada e ONGs. O discurso neoliberal atribuiu de forma sistemática que uma das principais causas das desigualdades sociais era a incompetência e a ineficácia governamentais, buscando com isto formar um consenso sobre a qualidade da iniciativa privada, com a finalidade de promover mudanças de comportamento no indivíduo e na sociedade a favor da privatização e seu corolário, o financiamento pelo Estado de ações que seriam executadas pelo setor privado. Nessas condições, o próprio gestor público passa a agir sob a lógica da gerência privada, mudando assim a relação entre a instituição e o usuário. Ele deixa de ser um cidadão investido de direitos e passa a ser um cliente da instituição, o que traduz uma visão privatista da relação do cidadão com o Estado, ao mesmo tempo em que desqualifica a noção de serviço público coletivo e solidário.

No outro lado do espectro político, o funcionamento da aparelhagem sindical também foi remodelado para adequação e conformação ao neoliberalismo: procedimentos de ‘reengenharia’ interna; demissão de funcionários; busca de eficiência e eficácia econômica (rentabilidade); agenciamento de serviços, como a venda de seguros diversos – contribuindo para desmantelar a luta pelos direitos universais; a oferta de cursos pagos; preparação e adequação de mão-de-obra para a ‘empregabilidade’. É um processo que formata uma nova modalidade de subalternização dos trabalhadores no Brasil, empreendida pelos grandes empresários com a difusão e apoio do ‘sindicalismo de resultados’, atado a uma dinâmica estritamente corporativa e de cunho imediatista, tornando os sindicatos parceiros dos patrões na ‘gerência dos conflitos’.

Nesse contexto, segundo Fontes (2008), o próprio sentido do termo ‘democracia’, revestido de conteúdos socializantes na década de 1980, foi ressignificado como ‘capacidade gerencial’. Isso é, toda e qualquer tentativa de organização dos trabalhadores como classe social deveria ser desmembrada e abordada de maneira segmentada: admitia-se o conflito, mas este deveria limitar-se ao razoável e ao gerenciável, devendo seus protagonistas admitir a fragmentação de suas pautas em parcelas ‘administráveis’. Mais que isso, para a autora, o que ocorre nos anos 1990 é uma mudança do perfil da classe trabalhadora em decorrência da intensificação do desemprego, da rotatividade de mão-de-obra e conseqüentemente o aumento da concorrência entre os trabalhadores; pelo desmantelamento dos direitos associados às relações contratuais de trabalho; pela corrosão das organizações sindicais e pelas profundas alterações no setor público, iniciadas com as demissões e privatizações.

O discurso da incompetência do setor público, ao mesmo tempo que atendeu aos interesses privados ao propor um fictício terceiro setor sob a designação ‘privado porém público’ composto por associações empresariais que concorrem entre elas pelos fundos públicos, permitiu a delegação de responsabilidades do Estado a entes privados em situações casuísticas, como Fundações Privadas de Apoio, Organizações Sociais (OS), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) e outras, imbricando a esfera pública com a esfera mercantil.

Na área da saúde especificamente, além da delegação de responsabilidades do Estado para cooperativas, ONGs e outras entidades privadas, a solução negociada do art. 199 da Constituição [1] gerou efeitos contraditórios nos anos 1990, pois, de um lado, a oferta e a produção de serviços públicos e filantrópicos se ampliaram, e a dos hospitais contratados reduziram. Por outro lado, a inviabilização da mudança da natureza dos contratos reatualizou o padrão de compra de serviços e procedimentos que se pretendia superar, reconfigurando as relações público-privadas no âmbito do SUS por meio de políticas públicas que apoiaram e ainda apóiam a privatização da assistência à saúde. Para Bahia (2008), as mudanças definidas por normas governamentais que redefiniram a participação do setor privado no SUS, junto com a criação de fundações privadas pelo setor público e a contratação de consultores, nutriram uma disseminada adesão às várias versões do empreendedorismo no sistema público de saúde. Na mesma direção, a ampliação do mercado privado de planos e seguros de saúde, que já vinha ocorrendo desde os anos 1980, se intensifica nos anos 1990, viabilizada por políticas públicas de subsídios indiretos de apoio à expansão da clientela. 

No âmbito educacional, entre os anos 1980 e 1990, como aponta Frigotto (2006,  p. 265), “há uma travessia da ditadura civil-militar para uma ditadura do mercado no ideário pedagógico”. A sociedade civil organizada em torno do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, sucessivamente vai perdendo o apoio parlamentar para a aprovação do primeiro projeto de LDB, de autoria do Deputado Federal Otávio Elísio que, no que diz respeito à formação profissional sinalizava para sua integração à formação geral nos seus múltiplos aspectos humanísticos e científico-tecnológicos. “Foram sendo tomadas, pelo alto e autoritariamente, diferentes medidas legais, numa reforma a conta-gotas, até aparecer o projeto do Senador Darcy Ribeiro que, como lembrava Florestan Fernandes, deu ao governo o projeto que esse não tinha” (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005, p. 13). Para os autores, com a LDB n° 9.394/96, a regressão mais profunda ocorre nos ensinos médio e técnico a partir da aprovação do Decreto n° 2.208/97, que restabelece, em outros termos, o dualismo educacional neste nível de ensino, ao proibir a integração do ensino médio com a formação profissional, além de regulamentar formas fragmentadas e aligeiradas de profissionalização em função das necessidades do mercado, como assume o ideário pedagógico do próprio mercado com a pedagogia das competências para a empregabilidade.

As noções de sociedade do conhecimento e de competência passam a assumir na atualidade o mesmo protagonismo que a noção de capital humano teve entre as décadas de 1950 e 1980, constituindo-se no aparato ideológico justificador das desigualdades econômicas e sociais entre os indivíduos e/ou das relações assimétricas de poder dentro dos países e entre eles. Na área da saúde, os programas de formação profissional vêm sendo executados, na maioria das vezes, por meio de parcerias público-privadas, aumentando a possibilidade de adesão ao ideário da mercantilização da saúde, da elegia do gerenciamento das ações de saúde e da redução de conteúdos voltados para uma formação humana de cunho civilizatório (Pereira, 2008).

Para Frigotto (2006), as razões para a dificuldade estrutural do avanço da educação escolar unitária e politécnica devem ser buscadas, em primeiro lugar, na opção das elites brasileiras por um capitalismo dependente e subordinado que barra a generalização da necessidade da incorporação das tecnologias avançadas de natureza digital-molecular. Em segundo lugar, pela conjuntura mundial na qual se verifica nesse período um aumento da expropriação do trabalho pelo capital e o crescente monopólio da ciência e tecnologia nos centros hegemônicos do capital, relegando aos países periféricos dominantemente o trabalho simples.  

Entretanto, se essa conjuntura encontrou terreno propício para a difusão das orientações normativas dos organismos internacionais com a adesão das elites nacionais às teses neoliberais, ela também foi plena de tensões e resistências ao desmonte do SUS. O balanço realizado aponta, entre outros, para o aumento de cobertura pelas equipes de ‘Saúde da Família’, principal estratégia de atenção básica do Ministério da Saúde; a incorporação de novos modelos tecnológicos em municípios brasileiros, tais como a oferta organizada, a vigilância em saúde, o trabalho programático e o acolhimento; a integração da atenção básica com a vigilância em saúde; a redução dos leitos psiquiátricos vis-à-vis ao aumento dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e das residências terapêuticas como resposta aos princípios de desospitalização e reinserção social na área de saúde mental; o aumento da capacidade instalada e crescimento da assistência ambulatorial do setor público, que é uma tendência anterior ao advento do SUS, mas que se mantém nos anos 1990; a ampliação e diversificação dos postos de trabalho na área de saúde, decorrente do progressivo processo de descentralização e municipalização das ações de saúde; o aumento do acesso a medicamentos essenciais; a ampliação do número de transplantes; a criação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu); a quebra de patentes de medicamentos; e a universalidade do atendimento aos casos de AIDS.

Na área de educação, mais recentemente, buscou-se restabelecer o “empate” entre os princípios defendidos em 1988 pelo primeiro projeto de LDB e o Decreto n° 2.208/97, com a aprovação do Decreto n° 5.154/2004, que permite a integração do ensino médio com o ensino técnico, entendido como uma condição social e historicamente necessária para a construção do ensino médio unitário e politécnico (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005).

Esses avanços em ambas as áreas são resultados de processos contraditórios, que expressam as lutas em torno de concepções de sociedade e dessas práticas sociais, e que exigem a permanente análise do processo histórico-social o qual emergem. A direção que a reforma sanitária e a perspectiva unitária e politécnica dos ensinos médio e técnico irão tomar vai depender das forças em disputa e da clareza do que está em jogo. Principalmente, no contexto atual em que se explicita cada vez mais a continuidade e consolidação da política econômica de corte neoliberal do governo Lula centrada no ajuste fiscal; de manutenção das políticas compensatórias e focalizadas na área social, na saúde e educação; na política de ‘fazer um pouco mais do mesmo’ no âmbito do SUS, reproduzindo o modelo médico hegemônico centrado no hospital (Paim, 2008); e a difusão de uma nova ‘pedagogia da hegemonia’, complementada pela implementação de um projeto educacional de massificação da educação, viabilizado pela implantação de sistemas diferenciados e hieraquizados de organização educacional e pedagógica (Neves, 2008).

Esperamos que a publicação desta segunda edição do Dicionário da Educação Profissional em Saúde continue contribuindo para essa análise. Ele mantém o mesmo objetivo da primeira edição, em 2006, ou seja, de construir e explicitar conceitos e termos organizados em torno de três eixos centrais: ‘trabalho’, ‘educação’ e ‘saúde’, que foram escolhidos em função de dois critérios. O primeiro em razão de serem conceitos-chave de importância inconteste no âmbito dessas práticas sociais, como trabalho produtivo e improdutivo, trabalho complexo e trabalho simples, divisão social do trabalho, divisão técnica do trabalho e tecnologia. O segundo por serem conceitos que expressam fenômenos contemporâneos, que surgiram para definir práticas atuais do mundo do trabalho em geral e o de saúde e educação, em particular, tais como, empregabilidade, competência, educação politécnica, humanização, universalidade e integralidade

Para esta nova edição foi realizada uma revisão de alguns conceitos e agregados 23 (vinte e três) novos. São eles: Avaliação em Saúde, Capital Intelectual, Comunicação e Saúde, Dualidade Educacional, Educação Corporativa, Educação em Saúde, Eqüidade em Saúde, Exclusão Social, Gestão do Trabalho em Saúde, Gestão em Saúde, Globalização, Informação em Saúde, Interdisciplinaridade, Omnilateralidade, Participação Social, Planejamento de Saúde, Sociabilidade Neoliberal, Sociedade Civil, Territorialização em Saúde, Trabalho como Princípio Educativo, Trabalho Imaterial, Trabalho Produtivo e Improdutivo e Universalidade.

O nosso entendimento ao elaborar esta obra é que o universo de termos de interesse serão sempre passíveis de reatualizações, seja incorporando novas dimensões aos conceitos descritos, seja agregando novos conceitos que emergem dos processos sociais em curso e que ampliem a nossa capacidade de análise desta mesma realidade. Sendo assim, é um tipo de obra que deve ser considerada sempre inacabada. Inspirado em produções científicas comprometidas com o pensamento crítico que nega a adaptação ao existente e com a construção de uma sociedade justa, democrática e igualitária, o Observatório dos Técnicos em Saúde, vinculado ao Laboratório do Trabalho e da Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), tomou a si a iniciativa de organizar a segunda edição do Dicionário da Educação Profissional em Saúde.

Como na edição anterior, contamos com a participação de professores e pesquisadores da EPSJV, assim como de diversos especialistas convidados para sua elaboração. Estão reunidos aqui um conjunto heterogêneo de profissionais que aceitaram o desafio de compartilhar conosco as suas idéias, tais como, arquitetos, assistente social, biólogos, comunicólogos, economistas, educadores, enfermeiros, engenheiros, estatísticos, filósofos, historiadores, médicos, odontólogos, pedagogos, psicólogos e sociólogos.

Para a elaboração dos verbetes, partimos da premissa de que a produção, a circulação e a recepção dos textos e dos discursos se dão em contextos específicos que não podem ser ignorados. Se os textos e os discursos se nos apresentam como neutros e naturais, objetivos e transparentes, a tradição da ‘crítica da ideologia’ nos lembra que não há texto ou discurso que seja desinteressado, transparente e neutro. O trabalho educativo e a construção de sentidos aqui adotados consistem em desmontar as ilusões ideológicas, apontando para a construção de um conhecimento crítico e qualificado. Trata-se, assim, de uma compreensão pautada na idéia de que o pensamento crítico na Educação Profissional em Saúde, quer realizado na escola e/ou nos serviços de saúde, é atravessado por redes contraditórias, mensagens, textos, discursos, sinais interessados, conflitos e lutas por visões de mundo diferenciadas.

Nessa discussão também é central a noção de que o sentido é construído socialmente na vida social e histórica. Desde Marx, passando por todos os ramos e abordagens da teoria crítica, sabemos que o mundo dos sentidos e representações sociais nunca é neutro, transparente e diretamente acessível à consciência do sujeito. Ou seja, toda representação ou sentido social passa necessariamente pela ideologia e pelo imaginário social, o que requer perceber que a crítica do senso comum e das representações não deva caminhar, de forma exclusiva, para uma teoria que se queira apenas científica, como no viés cientificista, excluindo da experiência humana a cultura, a ética, a estética, enfim, a variedade da vida social.

A partir dessas idéias convidamos os autores que compõem esta edição – privilegiando fundamentalmente uma abordagem crítica e qualificada e não uma padronização teórico-metodológica – aos quais foram feitas as seguintes orientações para a elaboração dos verbetes: a) ‘linguagem crítica’, sem o mito da neutralidade, problematizando sempre que possível os contextos e articulando do particular ao geral na relação trabalho, educação e saúde, escapando das generalidades vazias ou discursos herméticos e desnecessariamente confusos; b) ‘historicidade dos conceitos’, tendo como princípio que os conceitos são históricos, portanto construções humanas e não uma verdade natural e imutável; c) ‘relações entre os ideários da sociedade e suas inflexões nas políticas de formação dos trabalhadores técnicos de saúde’, na medida do possível; d) ‘processo de trabalho e o cotidiano dos serviços de saúde’, relacionando, sempre que possível, a formação com o cotidiano dos serviços de modo a não levar a um conformismo com as condições existentes.

Finalmente, pensamos que a escrita e a leitura são atos ativos e produtivos, e neste sentido esperamos que o leitor seja levado a questionar e a buscar os significados oferecidos pelos verbetes, e que a divulgação desta nova edição continue contribuindo para a criação de circunstâncias a favor de uma formação dos trabalhadores da saúde que tenham como horizonte a sua emancipação e o compromisso com o pensamento crítico a favor da saúde e da educação públicas.

[1] O art. 199 da Constituição define que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, podendo participar de forma complementar do SUS, segundo diretrizes deste e mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

 

Para saber mais

BAHIA, L. A Démarche do privado e público no Sistema de Atenção à Saúde no Brasil em tempos de democracia e ajuste fiscal, 1988-2008. In: MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 123-185.

FONTES, V. A Democracia Retórica: expropriação, convencimento e coerção. In: MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 189-226.

FRIGOTTO, G. Fundamentos científicos e técnicos da relação trabalho e educação no Brasil de hoje. In: LIMA, J. C. F.; NEVES, L. M. W. (Orgs.). Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2006, p. 241-288.

FRIGOTTO, G; CIAVATTA, M; RAMOS, M. (Orgs.). Ensino médio integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008.

NEVES, L. M. W. A Política Educacional Brasileira na ‘Sociedade do Conhecimento’. In: MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 355-391.

PAIM, J. S. Reforma Sanitária Brasileira: avanços, limites e perspectivas. In: MATTA, G. C.; LIMA, J. C .F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 91-122.

PEREIRA, I. B. A Educação dos Trabalhadores da Saúde sob a égide da produtividade. In: MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 393-420.

RAMOS, M. Concepção do ensino médio integrado à educação profissional. Natal, 2007 [mimeo].

SANTOS, N. R. dos. Democracia e Participação da Sociedade em Saúde. In: MATTA, G. C.; LIMA, J. C. F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 2008, p. 227-246.

SAVIANI, D. Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro: Fiocruz/EPSJV, 1989.

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