Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



VERBETES




Saúde

Madel Therezinha Luz

Origens etimológicas do termo

Saúde, em português, deriva de salude, vocábulo do século XIII (1204), em espanhol salud (século XI), em italiano salute, e vem do latim salus (salutis), com o significado de salvação, conservação da vida, cura, bem-estar. O étimo francês santé, do século XI, advém de sanitas (sanitatis), designando no latim sanus: “são, o que está com saúde, aproximando-se mais da concepção grega de ‘higiene’, ligada deusa Hygea. Em seu plural de origem idiomática, o termo ‘saúde’ designa, portanto, uma afirmação positiva da vida e um modo de existir harmônico, não incluindo em seu horizonte o universo da doença. Pode-se dizer, deste ponto de vista, que ‘saúde’ é, em sua origem etimológica, um ‘estado positivo do viver’, aplicável a todos os seres vivos e com mais especificidade à espécie humana.

Em relação aos humanos, o estado de ‘saúde’, romano ou grego, implicaria um conjunto de práticas e hábitos harmoniosos abrangendo todas as esferas da existência: o comer, o beber, o vestir, os hábitos sexuais e morais, políticos e religiosos. Implicaria virtudes específicas ligadas a todas essas esferas, e também em vícios, que poderiam degradar o estado de harmonia, ensejando o adoecimento e, no limite, a morte.

A virtude capital ligada à ‘saúde’ seria a prudência, que não era certamente, como na cultura contemporânea, um vigilante cuidado ligado ao medo de adoecer, mas um agir equilibrado, como um ‘caminho do meio’, que evitaria os extremos, nocivos ao equilíbrio e, conseqüentemente, ao estado de ‘saúde’ do indivíduo, dos grupos e da sociedade, entre os quais não havia a separação característica da sociedade moderna. Em suma, o importante a salientar aqui é que ‘saúde’, mais que um estado ‘natural’, é uma definição construída social e culturalmente. E nossa definição atual está muito longe de sua origem etimológica, tendo caminhado em sentido restritivo, senão oposto, ao longo dos últimos dois séculos. 

Definições e concepções de saúde e doença na modernidade ocidental

A preocupação social com a doença das populações, primeiramente, em função das pestes e guerras (freqüentemente implicadas nas epidemias) que dizimam a Europa no alvorecer da idade moderna, nos séculos XIV a XVII, e posteriormente dos indivíduos, durante os séculos XVIII e XIX, prenuncia a relação peculiar da modernidade entre vida humana e política, que o filósofo Michel Foucault (2003) designou de biopoder. Pois ser a partir de políticas de ‘saúde’, isto é, de medidas de ‘combate’ (mais tarde, durante o século XX, de ‘prevenção’) às doenças coletivas e individuais, que instituições médicas, investidas do poder de Estado (polícia médica), como assinalou George Rosen (1994), definirão o estatuto do viver e suas normas no plano individual e coletivo. Assim, nasce a ‘saúde pública’, com a dupla missão de combater e prevenir doenças coletivas, ou mesmo individuais, que, por contágio ou transmissão, ameacem a organização social e a ordem pública.

A medicina, de arte ou saber prático, associa-se aos saberes científicos ligados à matéria, em contínua revolução, transformando-se progressivamente, ela também, em ciência, em conhecimento das doenças, tornando-se seu centro de pesquisa as patologias em sua origem ou causalidade, seja no meio ambiente físico ou biológico, no exterior ou interior da denominada ‘máquina’ humana. Neste contexto, a terapêutica, como arte milenar da cura de seres humanos, sofre um progressivo deslocamento do olhar epistemológico, tanto no plano da produção de evidências (saber) como no da intervenção clínica (prática), tornando-se secundária diante da ciência diagnóstica. Combater as doenças não será mais necessariamente sinônimo de curar doentes. A clínica moderna, como assinala Foucault, será uma trajetória de busca à morte, ou do que pode matar, no interior do corpo humano. E a cultura incorpora, com o passar do século XX e as “vitórias da ciência, como define a imprensa, a visão de ‘saúde’ como ausência relativa ou total de doença, em coletividades e indivíduos. Ter ‘saúde’, ser sadio, passa a significar não estar doente, não ser portador de patologia ou, mais positivamente, estar em ‘parâmetros de normalidade sintomática’. O estado de normalidade sintomática é, portanto, a definição institucional do estado de ‘saúde’ em nossa sociedade. Torna-se concepção hegemônica não apenas entre os profissionais de todas as formações ligadas ao saber biomédico, como na sociedade civil e nas instituições como um todo, sobretudo nos órgãos encarregados de formar a opinião pública, conhecidos como mídia. Hegemônico não significa, entretanto, único, mas dominante. 

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, e durante a segunda metade do século XX, as recém-criadas organizações internacionais de ‘saúde pública’ – Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), sobretudo a OMS, de caráter mundial – propõem novas definições, de caráter mais positivo e abrangente que as veiculadas pelas instituições médicas: “estado de completo de bem-estar físico, mental e social”, por exemplo, por utópico que nos pareça, é uma definição que se propõe a superar, em termos de concepção, a visão mecânica do homem conjunto de partes, dominante nas especialidades médicas, buscando reassociar as dimensões em que se insere a vida humana: social, biológica e psicológica. Recentemente associou-se a dimensão ‘espiritual’ à definição, e não é sem fundamento supor que em futuro próximo a dimensão ‘ambiental’ fará também parte oficial da definição sanitária, completando assim o sistema de dimensões que encerram o viver humano em complexa teia de relações. As concepções implícitas nessa definição não apenas exprimem, mas ampliam o campo da ‘saúde pública’, indo assim ao encontro do campo inter ou transdisciplinar da ‘saúde coletiva’, em constituição há três décadas. 

Concepções holísticas ou vitalistas presentes na cultura da saúde

Além destas concepções, ligadas às instituições que definem socialmente a ‘saúde’, encontramos na cultura ocidental contemporânea outras, de natureza vitalista, ou ‘holísticas’, ligadas a paradigmas distintos dos dominantes na sociedade ocidental. Entre elas devem ser salientadas aquelas ligadas às medicinas orientais, como a medicina chinesa ou à medicina indiana (M.T.C. e Ayurvédica), que definem ‘saúde’ como um estado de harmonia da força ou energia vital que circula em todos os órgãos (medicina chinesa), em todos os tecidos (medicina ayurvédica), tendo ela a capacidade de regular, por seu fluxo harmonioso, os eventuais desequilíbrios do ser humano, considerado por essas medicinas como um todo bio-sócio-psíquico-espiritual.  Além dessas, temos as medicinas ocidentais homeopática e antroposófica, para as quais o ser humano é também uma totalidade interconectada com a natureza e os outros seres vivos, nos quais circula a energia vital. O adoecimento seria o efeito do desequilíbrio ou desarmonia desta energia. A ‘saúde’, neste caso, é um estado de harmonia energética, e sua conservação depende de hábitos e sentimentos saudáveis. Essas medicinas, e outras tradicionais, que incluem sistemas médicos indígenas, orientam-se por lógicas de intervenções terapêuticas e diagnósticas que não se enquadram no que denominamos medicina científica, atuando com outras lógicas, paradigmas, ou racionalidades. Finalmente, temos definições vitalistas não filiadas a nenhum sistema médico, mas a saberes e práticas ‘populares’, onde ‘saúde’ é freqüentemente definida como boa disposição para a vida diária e suas atividades, sobretudo o trabalho.   

Para saber mais

Enciclopédia Mirador Internacional - São Paulo, Rio de Janeiro; Encyclopedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, V. 18, Verbete Saúde, p. 10271-10274. 

FOUCAULT, Michel - O nascimento da clínica; Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1977. 

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 18.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003. 

LUZ, Madel Therezinha - Natural, Racional, Social - Razão médica e racionalidade científica moderna; São Paulo, HUCITEC, 2004 (2ª edição revista e prefaciada) 

LUZ, Madel Therezinha - Novos Saberes e Práticas em Saúde Coletiva - Estudos sobre racionalidades médicas e atividades corporais. São Paulo, HUCITEC, 2005 (2ª edição) 

ROSEN, G. Uma História da Saúde Pública. São Paulo: Editora Unesp, 1994.  

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