Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Trabalho

Gaudêncio Frigotto

Com a afirmação de que o trabalho é uma categoria ‘antidiluviana’, fazendo referência ao conto bíblico da construção da arca de Noé, Marx nos permite fazer, ao mesmo tempo, três distinções em relação ao trabalho humano: por ele, diferenciamo-nos do reino animal; é uma condição necessária ao ser humano em qualquer tempo histórico; e o trabalho assume formas históricas específicas nos diferentes modos de produção da existência humana. Estas distinções nos permitem tanto superar o senso comum e a ideologia que reduzem o trabalho humano à forma histórica que assume sob as relações sociais de produção capitalistas (compra e venda de força de trabalho, trabalho assalariado, trabalho alienado) quanto perceber a improcedência das teses que postulam o fim do trabalho.

Diferente do animal, que vem regulado e programado por sua natureza e, por isso, não projeta sua existência, não a modifica, mas se adapta e responde instintivamente ao meio, os seres humanos criam e recriam, pela ação consciente do trabalho, a sua própria existência. Embora o homem também seja um ser da natureza ao constituir-se humano se diferencia dela assumindo uma autonomia relativa como espécie do gênero humano que pode projetar-se, criar alternativas e tomar decisões (Konder, 1992; Antunes, 2000).

Antes, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporeidade, braços, pernas, cabeça e mãos, a fim de se apropriar da matéria natural numa forma útil à própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (Marx, 1983, p.149)

 Sob esta concepção ontológica ou ontocriativa, o trabalho, como nos mostra Kosik (1986, p. 180), “é um processo que permeia todo o ser do homem e constitui a sua especificidade”. Por isso, o mesmo não se reduz à ‘atividade laborativa ou emprego,’ mas à produção de todas as dimensões da vida humana. Na sua dimensão mais crucial, o trabalho aparece como atividade que responde à produção dos elementos necessários e imperativos à vida biológica dos seres humanos como seres ou animais evoluídos da natureza. Concomitantemente, porém, responde às necessidades de sua vida intelectual, cultural, social, estética, simbólica, lúdica e afetiva. Trata-se de necessidades, que, por serem históricas, assumem especificidades no tempo e no espaço.

“Com justa razão se pode designar o homem que trabalha, ou seja, o animal tornado homem através do trabalho, como um ser que dá respostas. Com efeito, é inegável que toda a atividade laborativa surge como solução de respostas ao carecimento que a provoca” (Lukács, 1978, p. 5).

Na mesma compreensão da concepção ontocriativa de trabalho, também está implícito o sentido de propriedade – intercâmbio material entre o ser humano e a natureza, para poder manter a vida humana. Propriedade, no seu sentido ontológico, é o direito do ser humano, em relação e acordo solidário com outros seres humanos, de apropriar-se, transformar, criar e recriar pelo trabalho – mediado pelo conhecimento, ciência e tecnologia – a natureza para produzir e reproduzir a sua existência em todas as dimensões anteriormente assinaladas.

Estas diferentes dimensões circunscrevem o trabalho humano na esfera da necessidade e da liberdade, sendo ambas inseparáveis. A primeira diz respeito a um quanto de dispêndio de tempo e de energia física e mental do ser humano, mediado por seu poder inventivo de novas técnicas e saltos qualitativos tecnológicos, para responder às necessidades básicas de sua reprodução biológica e preservação da vida num determinado tempo histórico. A segunda é definida pelo trabalho na sua dimensão de possibilidade de dilatar as capacidades e qualidades mais especificamente humanas com o fim em si mesmas (Manacorda, 1964, 1991).

Tempo livre de efetiva escolha, gozo, fruição e criação, que não se confunde com férias ou descanso de fim de semana, mas uma conquista histórica. O trabalho humano, como insiste Kosik, não se separa da esfera da necessidade, mas, “ao mesmo tempo a supera e cria nela os reais pressupostos da liberdade (...) A relação entre necessidade e liberdade é uma relação historicamente condicionada e variável” (Kosik, 1986, p. 188). É a partir desta elementar constatação que percebemos a centralidade do trabalho como práxis que possibilita criar e re-criar, não apenas os meios de vida imediatos e imperativos, mas o mundo da arte e da cultura, linguagem e símbolos, o mundo humano como resposta às suas múltiplas e históricas necessidades.

O que acabamos de realçar nos permite demonstrar que as teses sobre o fim do trabalho e uma vida dedicada puramente ao ócio não têm o menor fundamento. É a mesma coisa que afirmar que a vida humana desapareceu da face da Terra ou que todos os seres humanos se metamorfosearam em anjos e já não precisarão mais mover-se e buscar seus meios de vida. Outra coisa é o desaparecimento de formas históricas de como o trabalho se efetiva nos diferentes modos sociais de produção da existência humana.

Tomado o trabalho humano em concepção ontocriativa o mesmo se constitui em um princípio formativo ou educativo e se impõe num plano ético (esfera de valores históricos universais) como um direito e um dever. O trabalho como ‘princípio educativo’deriva do fato de que todos os seres humanos são seres da natureza e, portanto, têm a necessidade de alimentar-se, proteger-se das intempéries e criar seus meios de vida. É fundamental socializar, desde a infância, o princípio de que a tarefa de prover a subsistência e outras esferas da vida pelo trabalho é comum a todos os seres humanos, evitando-se, dessa forma, criar indivíduos, grupos ou classes sociais que naturalizam a exploração do trabalho de outros. Estes, na expressão de Gramsci, podem ser considerados ‘mamíferos de luxo’ – seres de outra espécie que acham normal explorar outros seres humanos.

O trabalho como princípio educativo, então, não é, primeiro e sobretudo, uma técnica didática ou metodológica no processo de aprendizagem, mas um princípio ético-político. Realçamos este aspecto, pois é freqüente reduzir o trabalho como princípio educativo à idéia didática ou pedagógica do ‘aprender fazendo’. Para aprofundar a compreensão desta questão, indicamos a leitura de Saviani (1994) e Frigotto (1985). Isto não elide a experiência concreta do trabalho dos jovens e adultos, ou mesmo das crianças, como uma base sobre a qual se desenvolvem processos pedagógicos ou mesmo a atividade prática como método pedagógico, tal como nos mostra Pistrak (1981), na sua obra clássica sobre o trabalho como elemento pedagógico. Como princípio educativo, o trabalho é, ao mesmo tempo,um dever e um direito. Dever por ser justo que todos colaborem na produção dos bens materiais, culturais e simbólicos, fundamentais à produção da vida humana. Um direito por ser o ser humano um ser da natureza que necessita estabelecer, por sua ação consciente, um metabolismo com o meio natural transformando em bens para sua produção e reprodução.

Por fim, o trabalho na sua essência e generalidade ontocriativa (Lukacs, 1978), não pode ser confundido comas formas históricas que o trabalho assume – trabalho servil, escravo e assalariado. Do mesmo modo, a propriedade, como direito de todos os seres humanos de dispor dos bens que lhes permite produzir sua existência, não pode ser confundida com a propriedade privada capitalista. É crucial que se distinga a propriedade que temos de determinados objetos ou coisas, que são para o uso de quem as possui – casa, carro, terra etc. –, da propriedade privada, que é um capital utilizado para incorporar trabalhadores assalariados que produzam para quem tem este capital. A acumulação e o lucro, no capitalismo, como assinalamos anteriormente, advém de uma relação contratual da compra e venda da força de trabalho entre forças desiguais: quem detém capital e quem detém apenas sua força de trabalho. Estar de um lado ou de outro não é uma questão de escolha, mas resultado de um processo histórico que precisa ser apreendido. A dificuldade de perceber a exploração reside no fato de que o capital compra o tempo de trabalho dos trabalhadores numa transação e contrato sob o pressuposto da igualdade e liberdade das partes. Na realidade, trata-se apenas de uma igualdade e liberdade formal e aparente. Mesmo que venha sob os auspícios da legalidade de um contrato, pela assimetria de poder entre o capitalista e o trabalhador, constrangido a vender sua força-de-trabalho, materializa-se um processo de alienação – vale dizer, uma apropriação indevida, um roubo legalizado.

Com efeito, no modo de produção capitalista, o trabalho daqueles desprovidos de propriedade de meios e instrumentos de produção é reduzido à sua dimensão de força-de-trabalho. Uma mercadoria especial que os proprietários dos meios e instrumentos de produção (capitalistas) compram e gerenciam de tal sorte que o dispêndio da mesma pelo trabalhador, no processo produtivo, pague o seu valor de mercado (em forma de salário ou meios de subsistência) e, além disso, produza um valor excedente ou mais-valia que é apropriado pelo comprador. O capital apropria-se privadamente também da ciência e da tecnologia e as incorpora ao processo produtivo como trabalho objetivado (trabalho vivo do trabalhador transformado em trabalho morto) com o fim de ampliar o lucro como veremos no verbete ‘tecnologia’.

No plano da ideologia, a representação que se constrói é a de que o trabalhador ganha o que é justo pela sua produção, pois parte do pressuposto de que os capitalistas (detentores de capital) e os trabalhadores que vendem sua força de trabalho o fazem numa situação de igualdade e por livre escolha. Apaga-se, portanto, o processo histórico que até o presente mantém o gênero humano cindido em classes desiguais e que permite a exploração de uns sobre outros.

Para saber mais

ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho: ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez Editora, 1995.

ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho.3.ed.Campinas: Boitempo, 2000.

FRIGOTTO, G. Trabalho como princípio educativo: por uma superação das ambigüidades. Boletim Técnico do Senac, 11(3): 1-14, set.-dez., 1985.

FRIGOTTO, G. Educação e Crise do Capitalismo Real. 5.ed. São Paulo: Editora Cortez, 2003.

GRAMSCI, A. A concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978

KONDER, L. O Futuro da Filosofia da Práxis. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992.

KOSIK, K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

LUKÄCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas de Ciências Humanas, 4: 1-18, 1978.

MANACORDA, M. Il Marxismo eL‘Educazione. Roma: Armando A., 1964.

MANACORDA, M. Marx e a Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1991.

MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril, Cultural, 1983. v.I.

SAVIANI, D. O trabalho como princípio educativo frente às novas tecnologias. In: FERRETI, C. et al. (Orgs.) Novas Tecnologias, Trabalho e Educação: um debate multidisciplinar.Petrópolis: Editora Vozes, 1994.

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