Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Trabalho em Equipe

Marina Peduzzi

Gênese do conceito

No campo da saúde o ‘trabalho em equipe’ emerge em um contexto formado por três vertentes: 1) A noção de integração, que constitui um conceito estratégico do movimento da medicina preventiva nos anos 50, da medicina comunitária nos anos 60 e dos programas de extensão de cobertura implantados no Brasil nos anos 70; 2) As mudanças da abordagem de saúde e de doença que transitam entre as concepções da unicausalidade e da multicausalidade; 3) As conseqüentes alterações nos processos de trabalho com base na busca de ampliação dos objetos de intervenção, redefinição da finalidade do trabalho e introdução de novos instrumentos e tecnologias.

No processo de emergência da medicina preventiva, nos anos 50, nos EUA, propõe-se um projeto de mudanças da prática médica, com uma redefinição radical do papel do médico, incorporando, pela primeira vez, em propostas curriculares de ensino de graduação, a idéia de trabalho em equipe multiprofissional liderada pelo médico (Arouca, 2003; Silva, 2003). Além da integração da medicina preventiva às demais especialidades, este movimento adota um novo conceito de saúde e doença, no qual a saúde é um estado relativo e dinâmico de equilíbrio e a doença é um processo de interação do homem com os agentes patogênicos e o ambiente. Esta concepção de saúde e doença está ancorada no paradigma da história natural das doenças, proposto por Leavell e Clark que assumem a definição de saúde preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Esta organização internacional, em 1946, adota o conceito global e multicausal de saúde que a define como o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade. As práticas de saúde passam a ser reorientadas no sentido da obtenção de um estado ‘global’ de saúde com a prevenção das doenças e a recuperação ‘integral’ do paciente.

No que se refere ao modelo de causalidade do processo saúde-doença, a medicina preventiva liberta-se da unicausalidade, fundamentada na bacteriologia, pois se tornara insustentável explicar a doença como o efeito da atuação de um agente patogênico, e adota o modelo da multicausalidade. (Facchini, 1993)

Assim, a idéia de equipe de saúde aparece respaldada principalmente pela noção de atenção integral ao paciente, tendo em conta os aspectos preventivos, curativos e de reabilitação que deveriam ser contemplados a partir dos conceitos de processo saúde-doença, de história natural das doenças e da estratégia de integração. Porém, mantém-se a centralidade do trabalho médico, em torno do qual outros trabalhos especializados se agregam.

Também na área de enfermagem a proposta do ‘trabalho em equipe’ surge na década de 1950, nos EUA, através de experiências realizadas no Teacher's College da Universidade de Columbia, que preconizam a organização do serviço de enfermagem com base em equipes lideradas por médicos. Esse modelo de organização do trabalho de enfermagem expressa tanto uma crítica ao modelo funcional, centrado na tarefa em detrimento do paciente, bem como a busca de solução para a escassez de pessoal de enfermagem nos anos pós Segunda Guerra Mundial (Almeida & Rocha, 1986; Peduzzi & Ciampone, 2005).

Em ambas as áreas, medicina e enfermagem, buscam-se alternativas para o problema crescente dos custos da atenção médica. Segundo Donnangelo e Pereira (1976), os custos médicos progressivos, em grande parte decorrentes da incorporação do custo dos produtos industriais, farmacêuticos e equipamentos ao valor do cuidado médico, introduzem um dos elementos contraditórios da prática médica em seu processo de extensão, ou seja, ampliação quantitativa dos serviços com a incorporação crescente da população.

A medicina comunitária emerge e se difunde como parte do processo de extensão da prática médica e de controle dos custos e configura como objeto de intervenção as categorias sociais até então excluídas da atenção à saúde, “a pobreza constitui, por excelência, o objeto atribuído à medicina através desse novo projeto” (Donnangelo & Pereira, 1976, p. 72). Por outro lado, essa extensão requer uma nova estruturação dos elementos que compõem a prática médica, sobretudo uma forma distinta de utilização do trabalho médico, o que se fará através da incorporação do trabalho auxiliar de outras categorias profissionais, configurando uma prática complementar e interdependente entre os distintos trabalhadores de saúde. O processo de divisão de trabalho por meio do qual se dá essa distribuição de tarefas ocorre no interior de um processo social de mudanças da concepção de saúde e doença, já referido anteriormente, que é acompanhado de alterações introduzidas nos processos de trabalho e no modelo assistencial.

Portanto, o ‘trabalho em equipe’ não tem na sua origem apenas o caráter de racionalização da assistência médica, no sentido de garantir a melhor relação custo-benefício do trabalho médico e ampliar o acesso e a cobertura da população atendida, mas também responde à necessidade de integração das disciplinas e das profissões entendida como imprescindível para o desenvolvimento das práticas de saúde a partir da nova concepção biopsicossocial do processo saúde-doença.

Seu desenvolvimento histórico

As mudanças nas políticas de saúde, nos modelos assistências e nas políticas de recursos humanos em saúde influenciaram o desenvolvimento da concepção de ‘trabalho em equipe’.

Desde meados dos anos 70, o debate em torno das políticas de saúde e de recursos humanos, considerando o perfil de necessidade de saúde da população brasileira, apontava a crítica à formação especializada e curativa dos profissionais de saúde e a necessidade de incentivar a utilização de métodos que estimulassem a atuação multiprofissional. Também assinalavam o problema da predominância de pessoal de nível superior, em particular de médicos, e de pessoal sem qualificação técnica formal, configurando a denominada equipe bipolar médico-atendente. Porém, somente a partir de meados dos anos 80 a tendência à bipolaridade das equipes de saúde é revertida, aumentando a presença de profissional de nível médio, sobretudo auxiliares de enfermagem, e de outros profissionais de nível superior não-médicos, configurando a possibilidade de trabalho em equipes multiprofissionais mais complexas e qualificadas (Machado et al., 1992).

As políticas de recursos humanos em saúde, para as quais a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, representa uma inflexão importante, enfatizam cada vez mais a ‘equipe de saúde’ como unidade produtiva em substituição ao trabalho independente e isolado de cada profissional em separado.

Nos anos 90 voltam a se intensificar os debates sobre a atenção integral agora em torno da noção de integralidade da saúde que aponta para uma concepção alargada no sentido da apreensão e reposta ampliada e contextualizada para as necessidades de saúde dos usuários e população de um dado território (Mattos, 2004). Esta noção de integralidade requer de forma mais objetiva e intensa a atuação profissional na modalidade de trabalho em equipe, com a inclusão de um leque variado de profissionais que podem contribuir na construção de saberes e práticas que vão além do modelo biomédico, abarcando as múltiplas dimensões da saúde.

A introdução do Programa de Saúde da Família (PSF), em 1994, como estratégia de reorganização da atenção à saúde, destaca o trabalho em equipe como pressuposto e diretriz operacional para a reorganização do processo de trabalho em saúde. Especificamente quanto à atenção primária, Starfield (2002) aponta que, embora o ímpeto inicial para o trabalho em equipe tenha sido aumentar o potencial dos médicos da atenção primária, cuja oferta era baixa, outros imperativos agora estão à frente, pois o envelhecimento da população e o aumento das doenças que duram mais ou recorrem mais freqüentemente têm criado a necessidade de uma abordagem de atenção primária mais ampla e qualificada, o que sustenta o movimento em relação ao ‘trabalho de equipe’ nos vários países.

Por outro lado, a proposta do ‘trabalho em equipe’ também é reforçada pela crítica aos modelos clássicos de administração que se estende pelos diversos setores da produção inclusive ao setor saúde, sobretudo a crítica à rígida e excessiva divisão do trabalho, à fragmentação das tarefas e à despersonalização do trabalho (Martins & Dal Poz, 1998; Campos, 2000). Cabe, contudo, apontar as especificidades do ‘trabalho em equipe’ no campo da saúde, dado o seu caráter de prestação de serviços, e, especialmente, as características do próprio processo de trabalho em saúde, quais sejam: a complexidade dos objetos de intervenção, a intersubjetividade, visto que o trabalho sempre ocorre no encontro profissional-usuário, e a interdisciplinaridade, características estas que requerem a assistência e o cuidado em saúde organizado na lógica do ‘trabalho em equipe’ em substituição a atuação profissional isolada e independente.

Emprego atual na área da saúde

Na atualidade há um consenso em torno do ‘trabalho em equipe’ no setor saúde, porém ainda persiste e predomina uma noção de equipe que se restringe à coexistência de vários profissionais numa mesma situação de trabalho, compartilhando o mesmo espaço físico e a mesma clientela, o que configura dificuldades para a prática das equipes, visto que a equipe precisa de integração para buscar assegurar a integralidade da atenção à saúde.

Desde a segunda metade dos anos 90 tem aumentado a produção teórica sobre o tema, no país, incluindo o desenvolvimento de pesquisas empíricas que têm contribuído com subsídios para o debate e a prática das equipes nos serviços de saúde.

Peduzzi (1998, 2001) conceitua ‘trabalho em equipe’ multiprofissional como uma modalidade de trabalho coletivo que é construído por meio da relação recíproca, de dupla mão, entre as múltiplas intervenções técnicas e a interação dos profissionais de diferentes áreas, configurando, através da comunicação, a articulação das ações e a cooperação. Também estabelece uma tipologia de trabalho em equipe que não configura um modelo estático, mas a dinâmica entre trabalho e interação que prevalece em um dado momento do movimento contínuo da equipe: equipe integração e equipe agrupamento. No primeiro tipo ocorre a articulação das ações e a interação dos agentes; no segundo, observa-se a justaposição das ações e o mero agrupamento dos profissionais. A tendência para um desses tipos de equipe pode ser analisada pelos seguintes critérios: qualidade da comunicação entre os integrantes da equipe, especificidades dos trabalhos especializados, questionamento da desigual valoração social dos diferentes trabalhos, flexibilização da divisão do trabalho, autonomia profissional de caráter interdependente e construção de um projeto assistencial comum.

Fortuna (1999) e Fortuna et al. (2005, p. 264) conceituam o ‘trabalho em equipe’ como “uma rede de relações entre pessoas, rede de relações de poderes, saberes, afetos, interesses e desejos, onde é possível identificar processos grupais”. As autoras destacam a dinâmica grupal das equipes e propõem o reconhecimento e a compreensão desses processos grupais pelos seus integrantes como forma de construir a própria equipe, concebendo o ‘trabalho em equipe’ como as relações que o grupo de trabalhadores constroem no cotidiano do trabalho.

Ao analisar o gerenciamento do ‘trabalho em equipe’ de saúde, Campos (1997) sugere a aplicação dos conceitos de campo e de núcleo de competências e responsabilidades, o primeiro referido a saberes e responsabilidades comuns ou confluentes a várias profissões ou especialidades da saúde; o segundo, ao conjunto de saberes e responsabilidades específicos de cada profissão ou especialidade, de modo que o núcleo marcaria a diferença entre os membros de uma equipe.

Também Campos (1999) propõe a organização dos serviços de saúde segundo o conceito de equipe de referência com apoio especializado matricial. Nessa proposta, cada serviço (rede básica, serviços especializados, hospitais, outros) seria organizado por meio da composição de equipes de referência segundo três critérios: o objetivo da unidade, as características do local/território e os recursos disponíveis, de modo que um conjunto de usuários ou famílias seria adscrito a uma equipe básica de referência que contaria com o apoio de especialistas reunidos em uma equipe matricial. Cada equipe matricial serve de apoio para um determinado número de equipes de referência em uma dada localidade, ambas, com um caráter multiprofissional. A principal função dos profissionais e das equipes de referência seria elaborar e aplicar o projeto terapêutico individual. Esta proposta pressupõe três diretrizes: vínculo terapêutico, gestão colegiada e transdisciplinaridade, apostando no seu potencial para possibilitar a superação dos aspectos fundamentais sobre os quais repousa o modelo hegemônico – biomédico.

Para finalizar, destacam-se as relações entre as temáticas do ‘trabalho em equipe’ e a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, embora cada um desses temas tenha sua especificidade, bem como a imprecisão na utilização dessas terminologias no campo da saúde. De maneira geral, ora utilizam-se os prefixos multi, inter ou trans, ora os sufixos profissional ou disciplinar, mas os autores concordam sobre a importância de não desviar o foco da questão central que é a constituição de equipes de trabalho (Jacob Filho & Sitta, 2002; Iribarry, 2003; Ceccim, 2005).

Para saber mais

ALMEIDA, M. C. P. & ROCHA, J. S. Y. O Saber da Enfermagem e sua Dimensão Prática. São Paulo: Cortez, 1986.

AROUCA, S. O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo/Rio de Janeiro: Unesp/Editora Fiocruz, 2003.

BUSCHINELLI, J. T.; ROCHA, L. E. & RIGOTTO, R. M. (Orgs.) Isto é Trabalho de Gente? Vida, Doença e Trabalho no Brasil. São Paulo: Vozes, 1993.

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CAMPOS, G. S. W. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000.

CECCIM, R. B. Equipe de saúde: a perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: PINHEIRO R. & MATTOS, R. A. (Orgs.) Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: IMS/Uerj/Cepesc/Abrasco, 2005.

DONNANGELO, M. C. F. & PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

FACCHINI, LA. Por que a doença? A interferência causal e os marcos teóricos da análise. In:Buschinelli JT,Rocha Lê, Rigotto RM (organizadores) Isto é trabalho de Gente? Vida, doença e trabalho no Brasil. São Paulo: Vozes, 1993.cap. 3, p. 33-55.

FORTUNA, C. M. O Trabalho de Equipe numa Unidade Básica de Saúde: produzindo e reproduzindo-se em subjetividades – em busca do desejo, do devir e de singularidades. Dissertação de Mestrado, Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP, 1999.

FORTUNA, C. M. et al. O trabalho de equipe no Programa de Saúde da Família: reflexões a partir de conceitos do processo grupal e de grupos operativos. Rev. Latinoam. Enfermagem, 13(2): 262-268, 2005.

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MACHADO, M. H. et al. O Mercado de Trabalho em Saúde no Brasil: estrutura e conjuntura. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ensp, 1992.

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STARFIELD, B. Atenção primária. Brasília: Unesco/Ministério da Saúde, 2002.

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