Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



VERBETES




Qualificação como Relação Social

Nadya de Araújo Guimarães

É amplo (e antigo) o debate intelectual em torno da questão da ‘qualificação’. Têm-se discutido intensamente tanto a sua natureza ou mudanças no tempo, como as fontes e formas de produzi-la, com crescente interesse pelo nexo entre experiência e conhecimentos obtidos e aperfeiçoados no cotidiano de trabalho face àqueles desenvolvidos na vida fora do trabalho.

Nos anos 60, a produção acadêmica foi pródiga em formulações relativas ao tema face aos sinais de uma nova revolução tecnológica. A controvérsia antepôs, por um lado, hipóteses sobre a desumanização do trabalho, parcelarizado em face de uma tecnologia alienante (Friedman & Naville, 1966) e, por outro, as expectativas sobre a emergência de novas qualificações, passíveis de menor alienação e maior controle sobre o trabalho, em especial na nova classe operária, afluente e potencialmente aristocrática (Mallet, 1963; Blauner, 1964).

A partir dos anos 70, esse debate ganhou novo colorido e intensidade. Eles foram os anos da chamada ‘bravermania’, para tomar de empréstimo a expressão ironicamente cunhada por Littler e Salaman (1982). Braverman (1974) sustentou as suas idéias numa releitura da concepção marxiana. Com efeito, Marx entendia que o trabalho – enquanto não alienado – expressaria e desenvolveria a criatividade e a habilidade do homem por ser um processo de transformação da natureza cujo resultado estaria previamente figurado pelo sujeito que, usando instrumentos, transformava seu objeto. Entretanto, diria ele, quando a força de trabalho se constituiu como mercadoria, o trabalhador (um proletário, juridicamente livre, mas privado dos meios de produção) tornou-se impotente por depender completa  mente do capitalista para forjar a sua sobrevivência. A subordinação tecida pelas relações mercantis se consolidaria na mesma medida em que a inovação permanente dos meios técnicos de trabalho reduzia os operários a meros apêndices das máquinas. Formal e realmente subsumidos, no dizer de Marx, os trabalhadores passariam a viver o ato de produzir não mais como expressão criativa de atividades auto-suficientes, mas com a negatividade própria ao seu caráter de trabalho alienado. 

Essa foi a pedra de toque do argumento de Braverman. Desafiava-o a necessidade de explicar como a produção capitalista, calcada no trabalho humano, podia controlar tal autodeterminação subjetiva. Sua resposta: cindindo a unidade entre trabalho intelectual e trabalho manual, entre concepção e execução, do que resultaria a progressiva e irreversível expropriação das habilidades do produtor direto.

Desse modo, aquilo que a seu ver se constituía como fim último da atividade do capitalista – controlar o trabalho vivo – realizava-se mediante a expropriação do saber operário, na esteira do processo de ‘polarização da qualificação’, que desqualificava a ampla massa dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que sobrequalificava o pequeno contingente de técnicos superiores e os quadros gerenciais. A problemática da ‘qualificação’ aparecia, assim, contaminada pela mesma negatividade que caracterizava a sua concepção do trabalho alienado. Nesse sentido, estudar a ‘qualificação’ equivalia a pesquisar a sua perda progressiva, uma vez que ela estaria reduzida a um mero instrumento consciente do controle gerencial despótico, tornado factível não somente pelos avanços tecnológicos, mas também pelas técnicas tayloristas da ‘administração científica do trabalho’.

Já os críticos da abordagem bravermaniana acreditavam que a transformação da capacidade de trabalho em trabalho efetivo não se daria de maneira automática, pelo mecanismo de coerção estrutural anteriormente descrito e fundado na expropriação do saber, na desqualificação e degradação do trabalho. Ao contrário, propugnavam que esse processo seria politicamente produzido por meio de aparatos que regulariam as relações sociais tecidas na produção (Burawoy, 1978, 1983). Tecnologia, organização, decisões de investimento e aparatos de produção tornam-se, eles próprios, objetos de luta, politizando-se a análise do processo de trabalho.  Assim fazendo, os críticos compreendiam que as estratégias que asseguravam a realização do valor (como as estratégias de mercados, por exemplo) poderiam ser tão ou mais importantes do que as que asseguravam a sua extração (Littler, 1990). Tornava-se, desse modo, muito difícil seguir sustentando a pertinência exclusiva dessas últimas, tanto quanto o seu fundamento necessário na expropriação do saber operário. Abria-se, assim, um novo campo para as discussões sobre o nexo entre trabalho e ‘qualificação’; seu fundamento deveria ser buscado nas relações políticas entre saberes e poderes. Tais relações refletiriam as experiências e qualidades que os sujeitos trariam consigo como um capital que lhes seria próprio e com o qual atuariam na barganha por sua inserção nos sistemas de classificação que organizariam as relações na firma.

Essa tradição colocou uma questão nova e instigante, deixando entrever a influência do pensamento weberiano: as habilidades e qualificações dos indivíduos poderiam ser consideradas como ‘ativos’ (assets), mobilizados nas relações econômicas de dominação e/ou de exploração. Nesse sentido, pessoas com altos níveis de ‘qualificação’ aufeririam maiores rendimentos não apenas por terem ‘qualificação’ mais elevada, mas pela manutenção dos diferenciais de ‘qualificação’ que as beneficiavam, estabelecendo uma forma particular de relação social com os que não dispusessem dessas mesmas credenciais (Wright, 1985). Importaria, assim, identificar e explorar esses ativos de ‘propriedades’ individuais que estariam na base de diferenças constitutivas de grupos sociais e de hierarquias de poder; eles seriam importantes focos de organização das relações (e desigualdades) sociais na empresa. Isso faria da ‘qualificação’ uma arena política onde se disputariam credenciais que confeririam reconhecimento e assegurariam o acesso e a mobilidade. 

Por outro lado, no início dos anos 80, outros estudiosos, como Piore e Sabel (1984), apontaram, também na contramão do argumento bravermaniano, que a crise econômica que se delineara desde os anos 70 representava não apenas a falência de um modelo de crescimento industrial fundado na produção em massa, mas o prenúncio de que a sua superação estaria vinculada à adoção de um novo paradigma tecnológico e organizacional. Tal paradigma estaria muito distante das rígidas linhas de produção em massa com seus exércitos de desinteressados trabalhadores pouco qualificados, usados para produzir bens padronizados. Ele seria, ao contrário, caracterizado por sistemas flexíveis de máquinas, voltadas para múltiplos propósitos, movidas por trabalhadores polivalentes. Nesse novo cenário, os aspectos cognitivos ombreariam em importância com os aspectos atitudinais. O próprio conceito de ‘qualificação’, tradicionalmente associado aos componentes cognitivos, passaria a ser desafiado pela abordagem em termos de ‘competências’, que pretendia ultrapassar o mero debate sobre o ‘saber fazer’ e sua aquisição (Zarifian, 2001).

Mas, qual a amplitude dessa nova tendência? Significaria a chegada à ante-sala das formas do trabalho que recobrariam a utopia da politecnia e da omnilateralidade? Os estudos desenvolvidos nos anos 90 em diante mostraram o quão diversos poderiam ser – do ponto de vista da ‘qualificação’ – os efeitos da inserção do trabalhador em diferentes pontos das cadeias produtivas e de valor, crescentemente globalizadas (Gereffi & Korzeniewicz, 1994; Gereffi & Sturgeon, 2004); em seus elos mais longínquos, elas tendiam a reproduzir as antigas e supostamente ultrapassadas formas de organização do trabalho pautadas na desqualificação dos trabalhadores e na precarização das suas condições de trabalho. A multiplicidade de ângulos suscitados até aqui revela a rica diversidade de dimensões que está contemplada na agenda de análise da ‘qualificação’. Vimos como esta pode associar-se a um conjunto de características que se expressam nas rotinas de trabalho. Mas ela pode também estar referida ao grau de autonomia do trabalhador, sendo inversamente proporcional ao grau de controle gerencial. Pode ainda ser conceituada como base para a atribuição ou aquisição de posições em hierarquias de status

É certo que a ‘qualificação’ foi inicialmente abordada (até por facilidade operacional) a partir do conjunto de características das rotinas de trabalho. Expressava-se empiricamente em termos do tempo de aprendizagem no trabalho ou do tipo de conhecimento que estaria na base das tarefas definidoras de uma dada ocupação. Mas, sempre quando tomada isoladamente e aprisionada numa visão objetivista, essa concepção correu o risco da reificação ao materializar a ‘qualificação’ num certo equipamento e posto e, assim fazendo, reduzir as habilidades do trabalhador a um mero ‘requerimento da tecnologia’, esquecendo que mesmo esta é fruto de uma construção sociocultural complexa.

Entretanto, há que reconhecer que as organizações operam com representações sistemáticas e formalizadas das tarefas e das habilidades requeridas daqueles que pretende recrutar. Por certo, é variável o grau de universalismo com que essas regras são aplicadas, seja no recrutamento, seja na supervisão. Ademais, nem sempre os sistemas de classificação que norteiam o acesso e a permanência nos postos de trabalho estão fundados em critérios baseados em características de tipo aquisitivo, como o grau de escolarização ou a experiência profissional. Não raro, eles refletem o peso de características que os sociólogos denominam ‘adscritas’ (como o sexo biológico ou a cor da pele), as quais também fundamentam formas de classificação social com efeitos de inclusão ou de exclusão (Kergoat, 1982; Hirata, 2002). Diante desse fenômeno, cabe ter em conta tanto o que inicialmente se denominara como a ‘qualificação do posto de trabalho’ quanto uma outra dimensão igualmente relevante, qual seja a ‘qualificação do trabalhador’. Esta última remete a atenção do analista para a formação e a experiência mobilizadas pelo indivíduo no momento de executar uma tarefa. ‘Qualificação do posto de trabalho’ e ‘qualificação do trabalhador’ têm fontes distintas e, a depender do reconhecimento social que lhes seja conferido, podem (ou não) credenciar quem as possua. 

Assim, por exemplo, os estudos sobre relações sociais de gênero nos cotidianos de trabalho, ao enfocarem a temática da ‘qualificação’ das operárias, chamaram a atenção para o fato de que suas posições geralmente inferiores nas hierarquias organizacionais não resultavam de uma ‘qualificação’ precária ou inadequada, ou da ausência de motivação individual para obtê-la e credenciar-se à ascensão funcional. Embora as competências e habilidades dessas mulheres parecessem adequadas à execução de suas tarefas, elas não representavam uma ‘qualificação’. Isso porque tais qualidades não haviam sido obtidas através dos canais socialmente reconhecidos de formação da mão-de-obra, mas através da experiência de trabalho nas esferas ditas ‘reprodutivas’. Isso tornava ‘desqualificadas’ as suas portadoras, já que sua habilitação era considerada como ‘inata’. Mais ainda, e com freqüência, nem mesmo as próprias trabalhadoras se reconheciam como qualificadas (Kergoat, 1982). Isso nos remete ao tema da chamada ‘qualificação tácita’ (Wood & Jones, 1984), fruto da vivência concreta de um indivíduo trabalhador. Baseada na experiência adquirida numa situação específica, ela é de difícil transmissão através da linguagem formalizada sendo, ao mesmo tempo, insubstituível, mesmo quando as novas tecnologias informatizadas buscaram internalizar no equipamento a memória da experiência singular do trabalhador.

Finalizando, poder-se-ia dizer que a ‘qualificação’ é, a um só tempo, resultado e processo. Como resultado, ela expressa as qualidades, ou credenciais de que os indivíduos são possuidores. Mas não podemos esquecer que essa aquisição é socialmente construída: ela resulta de mecanismos e procedimentos sociais de delimitação, reconhecimento e classificação de campos, irredutíveis em sua riqueza empírica à mera escolarização alcançada ou aos treinamentos em serviço realizados. Assim, os trabalhadores são considerados qualificados (ou desqualificados) em função da existência (ou não) de regras deliberadas de restrição à ocupação, socialmente produzidas, partilhadas e barganhadas. Essas regras devem ser cuidadosamente buscadas nos discursos e práticas dos escalões organizacionais, das instituições sindicais e dos próprios trabalhadores individuais.   

Para saber mais

BLAUNER, R. Alienation and Freedom. Chicago: University of Chicago Press, 1964. 

BRAVERMAN, H. Labor and Monopoly Capital. New York: Monthly Review Press, 1974. 

BURAWOY, M. Toward a marxist theory of the labor process: braverman and beyond. Politics and Society, 8(3/4): 247-312, 1978. 

BURAWOY, M. Between the labor process and the state: the changing face of factory regimes under advanced capitalism. American Sociological Review, 48: 587-605, oct., 1983. 

FRIEDMAN, G. & NAVILLE, P. Tratado de Sociología del Trabajo. México: Fondo de Cultura Económica, 1966. 

GALLIE, D. In Search of the New Working Class. Londres: Cambridge University Press, 1978. 

GEREFFI, G. & KORZENIEWICZ, M. (Eds.) Commodity Chains and Global Capitalism. Westport, Conn.: Greenwood Press, 1994. 

GEREFFI, G. & STURGEON, T. J. Globalization, Employment, and Economic Development: a briefing paper. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology- IPC Working Paper Series. jun., 2004. 

HIRATA, H. Nova Divisão do Trabalho? São Paulo: Boitempo, 2002. 

KERGOAT, D. Les Ouvrières. Paris: Le Sycomore, 1982. 

LITTLER, C. The labour process debate: a theoretical review 1974-88. In: KNIGHTS, D. & WILLMOTT, H. (Eds.) Labour Process Theory. London: The Macmillan Press, 1990. 

LITTLER, C. & SALAMAN, G. Bravermania and beyond: recent theories of the labour process. Sociology, 16(2): 215- 269, 1982. 

MALLET, S. La Nouvelle Classe Ouvrière. Paris: Éditions du Seuil, 1963. 

PIORE, M. J. & SABEL, C. F. The Second Industrial Divide. New York: Basic Books, 1984. 

WOOD, S. & JONES, B. Qualifications tacites, division du travail et nouvelles technologies. Sociologie du Travail, 4: 407- 421, 1984. 

WRIGHT, E. Classes. Londres: Verso, 1985. ZARIFIAN, P. Objetivo Competência. São Paulo: Atlas, 2001.  

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