Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Processo de Trabalho em Saúde

Marina Peduzzi Lília Blima Schraiber

Gênese do conceito

Pioneiramente, Maria Cecília Ferro Donnangelo (1975, 1976), no final da década de 1960, iniciou estudos sobre a profissão médica, o mercado de trabalho em saúde e a medicina como prática técnica e social. Utilizou como referenciais teóricos estudos sociológicos, o que lhe permitiu construir análises consistentes sobre as relações entre saúde e sociedade e entre profissão médica e práticas sociais no país, rompendo com a visão que o modo de executar a prática médica e as relações entre os indivíduos envolvidos (usuários, médicos e demais profissionais de saúde) seriam independentes da vida social (Mota, Silva & Schraiber, 2004; Schraiber, 1997). Esses estudos tiveram vários desdobramentos, no Brasil e na América Latina, na área médica e nas demais áreas profissionais da saúde, constituindo-se importante referencial para o estudo do campo da saúde, sobretudo em relação a duas grandes temáticas: de um lado, as políticas e estruturação da assistência, que derivou em muitos estudos do sistema de saúde brasileiro, até o atual Sistema Único de Saúde (SUS); de outro, os estudos sobre o mercado, as profissões e as práticas de saúde. Esta segunda linha expandiu-se para a constituição de dois importantes conceitos: força de trabalho em saúde e ‘processo de trabalho em saúde’ (Schraiber, 1997). Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, discípulo e colaborador de Donnangelo, foi o autor que formulou o conceito de ‘processo de trabalho em saúde’, a partir da análise do processo de trabalho médico, em particular. 

Mendes Gonçalves (1979, 1992) estuda a aplicação da teoria marxista do trabalho ao campo da saúde. Segundo Marx (1994), no processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformação no objeto sobre o qual atua por meio de instrumentos de trabalho para a produção de produtos, e essa transformação está subordinada a um determinado fim. Portanto, os três elementos componentes do processo de trabalho são: a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio trabalho, o objeto de trabalho, ou seja, a matéria a que se aplica o trabalho, e os instrumentos ou meios do trabalho. Importante lembrar que o processo de trabalho e seus componentes constituem categorias de análise, portanto abstrações teóricas por meio das quais é possível abordar e compreender certos aspectos da realidade, no presente caso, as práticas de saúde, cujo trabalho constitui “a base mais fundamental de sua efetivação” (Mendes Gonçalves, 1992, p. 2).

No estudo do processo de trabalho em saúde Mendes Gonçalves (1979, 1992) analisa os seguintes componentes: o objeto do trabalho, os instrumentos, a finalidade e os agentes, e destaca que esses elementos precisam ser examinados de forma articulada e não em separado, pois somente na sua relação recíproca configuram um dado processo de trabalho específico. 

O objeto representa o que vai ser transformado: a matéria-prima (matéria em estado natural ou produto de trabalho anterior), e no setor saúde, necessidades humanas de saúde. O objeto será, pois, aquilo sobre o qual incide a ação do trabalhador. Segundo Mendes Gonçalves o objeto de trabalho contém, potencialmente, o produto resultante do processo de transformação efetivado pelo trabalho, no entanto, não deixa essa qualidade potencial transparecer por si mesma, imediatamente, de modo que essa qualidade de produto precisa ser evidenciada ativamente no objeto. Portanto, um certo aspecto da realidade destaca-se como objeto de trabalho somente quando o sujeito assim o delimita, o objeto de trabalho não é um objeto natural, não existe enquanto objeto por si só, mas é recortado por um ‘olhar’ que contém um projeto de transformação, com uma finalidade. Esta representa a intencionalidade do processo de trabalho, o projeto prévio de alcançar o produto desejado que está na mente do trabalhador, ou seja, em que direção e perspectiva será realizada a transformação do objeto em produto. 

Os instrumentos de trabalho tampouco são naturais, mas constituídos historicamente pelos sujeitos que, assim, ampliam as possibilidades de intervenção sobre o objeto. O meio ou instrumento de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto (Marx, 1994). Mendes Gonçalves (1979, 1992, 1994) analisa, no ‘processo de trabalho em saúde’, a presença de instrumentos materiais e não-materiais. Os primeiros são os equipamentos, material de consumo, medicamentos, instalações, outros. Os segundos são os saberes, que articulam em determinados arranjos os sujeitos (agentes do processo de trabalho) e os instrumentos materiais. Além disso, constituem ferramentas principais do trabalho de natureza intelectual. O autor salienta que esses saberes são também os que permitem a apreensão do objeto de trabalho. 

Objeto e instrumentos de trabalho só podem ser configurados por referência à sua posição relacional, intermediada pela presença do agente do trabalho que lhe imprime uma dada finalidade. Por meio da presença e ação do agente do trabalho torna-se possível o processo de trabalho – a dinâmica entre objeto, instrumentos e atividade. Portanto, o agente pode ser interpretado, ele próprio, como instrumento do trabalho e, imediatamente sujeito da ação, na medida em que traz, para dentro do processo de trabalho, além do projeto prévio e sua finalidade, outros projetos de caráter coletivo e pessoal, dentro de um certo campo de possíveis (Peduzzi, 1998).

O conceito ‘processo de trabalho em saúde’ diz respeito à dimensão microscópica do cotidiano do trabalho em saúde, ou seja, à prática dos trabalhadores/ profissionais de saúde inseridos no dia-a-dia da produção e consumo de serviços de saúde. Contudo, é necessário compreender que neste processo de trabalho cotidiano está reproduzida toda a dinâmica do trabalho humano, o que torna necessário introduzir alguns aspectos centrais do trabalho que é a grande categoria de análise da qual deriva o conceito de ‘processo de trabalho em saúde’.

O trabalho constitui o processo de mediação entre homem e natureza, visto que o homem faz parte da natureza, mas consegue diferenciar-se dela por sua ação livre e pela intencionalidade e finalidade que imprime ao trabalho. Portanto, o trabalho é um processo no qual os seres humanos atuam sobre as forças da natureza submetendo- as ao seu controle e transformando- as em formas úteis à sua vida, e nesse processo de intercâmbio, simultaneamente, transformam a si próprios. Todo trabalho produz algo que tem utilidade e pode ser trocado por outros produtos necessários. Contudo, no processo de produção da sociedade capitalista, são tornados radicalmente distintos o valor de uso e o valor de troca. O valor de uso é produzido no trabalho concretamente realizado ou chamado trabalho concreto, o qual dá o sentido qualitativo do produto. O valor de troca corresponde ao valor que o produto adquire como mercadoria colocada em mercado, o que só se revela quando se contrapõem mercadorias de valores de usos diversos, pois o valor de troca não é algo inerente à mercadoria. O valor de troca faz aflorar a dimensão de trabalho abstrato, na qual o produto do trabalho perde sentido (utilidade) e assume um significado quantitativo de coisas produzidas em quantidade. É nesta dimensão que o agente de trabalho torna-se alienado do sentido desse trabalho, do produto dele e de si próprio como agente dessa produção. O trabalho é, portanto, uma transformação não só de objetos, mas do próprio trabalhador, e, nesse sentido, um movimento dialético de exploração/alienação e de criação/emancipação (Antunes, 1995, 1999, 2005).

Desenvolvimento histórico

Embora o conceito de ‘processo de trabalho em saúde’ tenha sido desenvolvido inicialmente com base no trabalho médico desde o início dos anos 80, passa a ser utilizado para o estudo de processos de trabalho específicos de outras áreas profissionais em saúde. Dentre estes, destaca-se a área de enfermagem que inicia a análise do processo de trabalho de enfermagem com a tese de Doutorado de Maria Cecília Puntel de Almeida, de 1984 (Almeida & Rocha, 1986), seguida de várias outras pesquisas com esta abordagem até a atualidade.

Embora Mendes Gonçalves tenha apontado para a categoria ‘necessidades’ e a categoria ‘saber’ como elementos do processo de trabalho desde sua formulação original, ao longo do desenvolvimento do conceito, este mesmo autor retoma estas categorias. Em seu texto de 1992, analisa a consubstancialidade entre trabalho e necessidades humanas, de modo que os processos de trabalho são também ‘re-produção’ das necessidades, ou seja, tanto reiteram as necessidades de saúde e o modo como os serviços se organizam para atendê-las quanto podem criar novas necessidades e respectivos processos de trabalho e modelos de organização de serviços. Já na categoria ‘saber’, o autor mostra que, ao expressar a intermediação entre ciência e trabalho, remete à dimensão tecnológica deste. Formula, então, o saber como o recurso que põe em movimento os demais componentes do processo de trabalho. Será, pois, saber operante ou tecnológico – saber que tem sua origem ‘no’ e ‘através do’ processo de trabalho, fundamentando intervenção em saúde (Mendes Gonçalves, 1994; Schraiber, 1996; Peduzzi, 1998).

Um último aspecto a ser desenvolvido por Mendes Gonçalves e que terá muitas repercussões no campo da saúde, refere-se aos aspectos dinâmicos e relacionais do ‘processo de trabalho em saúde’. Se os primeiros estudos buscam, na referência da sociabilidade e historicidade do trabalho em saúde, suas articulações na estrutura social, a articulação do estudo do ‘processo de trabalho em saúde’ com abordagens teóricas, como Canguilhem (1982), Heller (1991) e a escola de Frankfurt (Habermas, 1994, 2001), permitirá, no dizer de José Ricardo Ayres (2002), tratar mais positiva e produtivamente os aspectos relacionais do trabalho em saúde, necessários para pensá-lo não apenas como estrutura de sociabilidade, mas como prática social. 

Ao introduzir a análise da micropolítica do trabalho vivo em ato na saúde e a tipologia das tecnologias em saúde (leve, leve-dura e dura), Emerson Elias Merhy (Merhy, 1997, 2002; Merhy & Chakhour, 1997) parte das contribuições de Mendes Gonçalves e de autores como Cornelius Castoriades, Felix Guatarri e Gilles Delleuze, da escola de análise institucional. Recuperando de Marx a concepção de trabalho vivo e trabalho morto, define este último como todos os produtos-meio que estão envolvidos no processo de trabalho e que são resultado de um trabalho anteriormente realizado, e aquele outro como trabalho instituinte, buscando compreender a potencialidade de esse trabalho vivo em ato questionar, no próprio processo de trabalho, a intencionalidade e a finalidade do trabalho em saúde e de seus modos de operar os modelos tecno-assistencias. A dimensão processual e transformadora do trabalho vivo em ato na saúde é atribuída à característica desse trabalho que tem a sua essencialidade na ação. E como tal será fonte de tecnologias, na medida em que o trabalho em ato pode abrir linhas de fuga no já instituído.

Emprego do conceito na área da saúde na atualidade

O estudo do ‘processo de trabalho em saúde’ representou desde sua origem e continua representando importante abordagem teórico-conceitual para as questões sobre recursos humanos em saúde. Segundo Nogueira (2002), a noção clássica de trabalho e de processo de trabalho constitui relevante categoria interpretativa nos estudos sobre recursos humanos em saúde. Nesse sentido, destaca-se o Projeto Capacitação em Desenvolvimento de Recursos Humanos de Saúde – CADRHU –, implantado em 1987, que, em sua primeira unidade didática, previa a caracterização da problemática de recursos humanos de saúde como parte do processo produtivo do setor saúde, em especial, como processo de trabalho (Santana & Castro, 1999).

A partir dos anos 90, um conjunto de questões novas estabelece um divisor de águas para a reflexão e pesquisa sobre o ‘processo de trabalho em saúde’: por um lado, aparecem questões relacionadas às novas formas de trabalho flexível e/ou informal e da regulação realizada pelo Estado, com foco nos mecanismos institucionais de gestão do trabalho; por outro, as questões da integralidade do cuidado e da autonomia dos sujeitos, cujo foco de análise se desloca para o plano da interação envolvendo a relação profissional - usuário ou as relações entre os profissionais (Nogueira, 2002). No que se refere especificamente ao cuidado em saúde, destacam-se as contribuições do estudo sobre o trabalho vivo em ato (Merhy, 1997, 2002; Merhy & Chakhour, 1997) e sobre a intersubjetividade e a prática dialógica (Ayres, 2001, 2002).

Assim, na atualidade, o conceito ‘processo de trabalho em saúde’ é utilizado no estudo dos processos de trabalho específicos das diferentes áreas que compõem o campo da saúde, permitindo sua abordagem como práticas sociais para além de áreas profissionais especializadas. Também é utilizado nas pesquisas e intervenções sobre atenção à saúde, gestão em saúde, modelos assistenciais, trabalho em equipe de saúde, cuidado em saúde e outros temas, permitindo abordar tanto aspectos estruturais como aspectos relacionados aos agentes e sujeitos da ação, pois é nesta dinâmica que se configuram os processos de trabalho.

Questões bem atuais referentes ao ‘processo de trabalho em saúde’ abordam as mudanças do mundo do trabalho que se iniciam em meados dos anos 70 e suas repercussões no setor saúde, particularmente: a crescente incorporação tecnológica, o desemprego estrutural, a flexibilização e precarização do trabalho, entre outros fenômenos que ocorrem no mundo do trabalho em geral e se reproduzem no setor saúde com especificidades (Peduzzi, 2003; Nogueira, Baraldi & Rodrigues, 2004; Antunes, 2005b).   

Para saber mais

ALMEIDA, M. C. P. & ROCHA, J. S. Y. O Saber da Enfermagem e sua Dimensão Prática. São Paulo: Cortez, 1986. 

ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. 

ANTUNES, R. O Caracol e sua Concha: ensaios sobre a morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005. 

ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho? Ensaios sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho. São Paulo/Campinas: Cortez/ Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1995. 

AYRES, J. R. C. M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 6(1): 63-72, 2001. 

AYRES, J. R. C. M. Do Processo de Trabalho em Saúde à Dialógica do Cuidado: repensando conceitos e práticas em saúde coletiva, 2002. Tese de Livre Docência, São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 

CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. 

DONNANGELO, M. C. F. Medicina e Sociedade. São Paulo: Pioneira, 1975. 

DONNANGELO, M. C. F. & PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976. 

HABERMAS, J. Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: Edições 70, 1994. 

HABERMAS, J. Teoria de la Acción Comunicativa, I. Espanha: Taurus, 2001. 

HELLER, A. Sociologia de la Vida Cotidiana. Barcelona: Pennsula, 1991. 

MARX, K. O Capital. 14.ed. São Paulo: Difel, 1994. v.1. 

MENDES GONÇALVES, R. B. Medicina e História: raízes sociais do trabalho médico, 1979. Dissertação de Mestrado, São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 

MENDES GONÇALVES, R. B. Práticas de Saúde: processos de trabalho e necessidades. São Paulo: Centro de Formação dos Trabalhadores em Saúde da Secretaria Municipal da Saúde, 1992. (Cadernos Cefor, 1 – Série textos) 

MENDES-GONÇALVES, R. B. Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. 

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MERHY, E. E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: MERHY, E. E. & ONOCKO, R. (Orgs.) Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. 

MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. 

MERHY, E. E. & CHAKKOUR, M. Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em saúde: a informação e o dia a dia de um serviço, interrogando e gerindo trabalho em saúde. In: MERHY, E. E. & ONOCKO, R. (Orgs.) Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. 

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NOGUEIRA, R. P. O trabalho em saúde: novas formas de organização. In: NEGRI, B.; FARIA, R. & VIANA, A. L. D. (Orgs.) Recursos Humanos em Saúde: política, desenvolvimento e mercado de trabalho. Campinas: Unicamp/IE, 2002. 

NOGUEIRA, R. P.; BARALDI, S. & RODRIGUES, V. A. Limites críticos das noções de precariedade e desprecarização do trabalho na administração pública. In:  BARROS, A. F. R. (Org.) Observatório de Recursos Humanos em Saúde no Brasil: estudos e análises. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. (Série B. Textos Básicos de Saúde) 

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SANTANA, J. P. & CASTRO, J. L. (Orgs.) Capacitação em Desenvolvimento de Recursos Humanos de Saúde: CADRHU. Brasília/Natal: Ministério da Saúde/Organização Pan-Americana da Saúde/EDUFRN, 1999. 

SCHRAIBER, L. B. Ciência, trabalho e trabalhado