Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Planejamento de Saúde

Francisco Javier Uribe Rivera

O Planejamento de Saúde surge na América Latina na década de 1960, sob a influência da teoria desenvolvimentista da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL). esse último organismo internacional prega a partir de 1950 uma política de substituição de importações para os países da área, como condição para a superação do diagnóstico da deterioração dos termos de troca entre países centrais e periféricos e para o logro do desenvolvimento. Nesse contexto, ao planejamento é atribuído o papel de elemento de racionalização da política substitutiva a ser operada pelo Estado. O desenvolvimento é visto inicialmente como expansão do crescimento econômico, mas a partir de 1960, ao mero crescimento é acrescentado o objetivo da redistribuição por meio do desenho racional e da implementação de políticas sociais. Desse modo, o desenvolvimento integrado é o cenário discursivo em que aparece o Planejamento de Saúde, representado por um esforço metodológico desenvolvido pelo Centro de Desenvolvimento (CENDES), órgão criado na Venezuela (junto à Universidade Central) e apoiado pela Organização Panamericana da Saúde (OPAS).

O método CENDES-OPAS (1965) é um enfoque sistêmico de Programação de Recursos de Saúde, atrelado a uma sorte de análises de custo-benefício. Contempla uma proposta de priorização dos danos à saúde que tende a privilegiar os danos que apresentam um custo relativo menor por morte evitada. O raciocínio básico do método é o da eficiência, evidenciado pela proposta de programação de recursos que consiste em um esforço de normatização econômica dos instrumentos (ou recursos nucleares) que realizam as atividades de saúde. esse processo normatizador visa a aumentar as atividades e, simultaneamente, reduzir os custos, neste último caso, por meio de uma atuação sobre a composição quantitativa dos instrumentos ou sobre a combinação de recursos que compõem os instrumentos.

O método tem vários méritos, como por exemplo, o privilé gio concedido pela proposta de priorização de danos à prevenção; a proposta de uma atuação integrada, sistêmica; o estímulo à formulação de sistemas de custos, etc. Mas, a sua possibilidade de aplicação revelou-se muito precária devido ao baixo poder de interferência do Estado sobre o setor, dominado em boa parte por interesses privados.

A avaliação do método questionou a omissão dos aspectos políticos inerentes à problemática institucional do setor, como o financiamento,  a falta de coordenação dos serviços, a baixa capacidade de regulação do Estado, a baixa capacidade de governo, o nível de privatização, etc. O fato é que esse método foi qualificado como excessivamente tecnocrático, economicista, representando uma ilustração do paradigma normativo do planejamento.

Todos os esforços realizados pelos organismos internacionais de pesquisa e ensino se centraram a partir de então na formulação de enfoques que situaram o planejamento como elemento auxiliar das políticas, como fenômeno político. O primeiro marco dessa evolução está representado pelo documento ‘Formulação de Políticas de Saúde’ (1975) do Centro Panamericano de Planejamento de Saúde (CPPS). Ele concebe o Planejamento como um processo que, embora dominado pelo Estado, supõe a mobilização de vários atores, e, introduz a necessidade da análise de viabilidade política e da estratégia.

O Planejamento normativo cede o lugar ao Planejamento estratégico. Os dois maiores expoentes dessa corrente são: Carlos Matus (1993; 1997) e Mário Testa (1987).

Matus apresenta uma dupla contribuição:

  • O modelo de processamento de problemas e soluções, que corresponde à sua proposta de planejamento estratégico. Apoiado nas teorias da situação, da produção social e da ação interativa, Matus constrói um protocolo de processamento de problemas que supõe 04 momentos: explicativo, normativo estratégico e tático-operacional. Com elementos de cálculo de cenários e um sofisticado instrumental de análise estratégica, o autor propõe um modelo de planejamento criativo, flexível e interativo.
  • Uma proposta de direção estratégica para a administração pública, que consiste na reforma vertical da administração por meio da introdução de uma série conexa de subsistemas de gestão, que priorizam o planejamento criativo, a descentralização dos sistemas de condução e uma abordagem de gestão por objetivos ou operações e, por fim, a alta responsabilidade decorrente do monitoramento, da cobrança e a prestação de contas. essa proposta deriva da formulação de uma teoria das macroorganizações,  na qual a crise do planejamento expressa todo um sistema da baixa responsabilidade que caracteriza a administração pública latino-americana.

Testa acompanhou a evolução do planejamento de saúde desde o CENDES. Responsável, junto com Matus, da crítica ao planejamento normativo, dedicou-se a formular uma proposta de explicação da problemática setorial (epidemiológica e organizativa), de natureza estratégica, que integra um diagnóstico administrativo, um diagnóstico estratégico e um diagnóstico ideológico. Testa evolui, na crítica a Matus, para a defesa de um enfoque de planejamento que não represente um excesso de formalização política. esse enfoque teria um componente fortemente comunicacional, trazendo à tona a teoria do agir comunicativo habermasiano (1987). Testa postula a priorização de um tipo de atuação capaz de acentuar os traços democráticos da instituição, constituindo-se em um crítico contundente de formas autoritárias. O planejamento adota dentro dessa moldura o significado de práticas dialógicas a serviço do estabelecimento de consensos e de acordos sobre compromissos, perdendo a imagem de uma metodologia muito estruturada.

No Brasil, autores como Mehry (1995) assinalam a existência de 04 correntes de planejamento/gestão em saúde:

  • A corrente da gestão estratégica do Laboratório de Planejamento (LAPA) da Faculdade de Medicina de Campinas. essa corrente defende um modelo de gestão colegiada e democrática, caracterizado pelas seguintes premissas: forte autonomia, colegiados de gestão, comunicação lateral e ênfase na avaliação para aumentar a responsabilidade. A proposta de um modelo de planejamento é a de uma caixa de ferramentas, que inclui o Pensamento Estratégico de Testa, o Planejamento Estratégico-situacional de Matus, elementos da Qualidade Total, a Análise Institucional, etc. Apesar da ênfase que a escola atribui ao Atendimento Básico, ela tem uma boa experiência na parte hospitalar, na qual tentaram implementar seu modelo de gestão. Mais recentemente, a corrente introduziu com base na Saúde Mental os conceitos de acolhimento e vínculo, tão caros a uma política de humanização. Crescentemente preocupada com os microprocessos de trabalho assistencial, a escola introduziu novos instrumentos de análise como os fluxogramas analisadores. Finalmente, é importante citar os aportes à integralidade que a escola faz por meio da formulação do conceito de Clínica do Sujeito, que integraria o melhor da clínica não degradada, um olhar voltado para a subjetividade dos usuários e outro para o contexto social de proveniência  da problemática individual.
  • A corrente do Planejamento Estratégico Comunicativo, representado por núcleos do Departamento de Administração e Planejamento de Saúde (DAPS) da Ensp/Fiocruz. essa escola adere ao Planejamento Estratégico-situacional, mas não se limita a ele. Incorpora um enfoque de planejamento/gestão estratégica de hospitais, adaptado da França, especificamente de Michel Crémadez (1997). Também desenvolve toda uma reflexão de componentes de uma gestão pela escuta, como a liderança, a prática de argumentação ligada à negociação e à questão cultural, com alguma influência da escola da organização que aprende e de um ramo da Filosofia da Linguagem aplicada à gestão organizacional, representado por Flores (1989) e Echeverria (1994). O termo Comunicativo alude a uma aplicação da Teoria do Agir Comunicativo (TAC) de Habermas (1987) sob a forma de parâmetro de crítica do paradigma estratégico.
  • A corrente da Vigilância à Saúde. Representada por um grupo heterogêneo do ponto de vista geográfico, essa escola postula um modelo de vigilância à saúde fortalecido de modo a se poder pensar numa inversão do modelo  assistencial. esse modelo combate a velha atomização dos programas verticais da saúde pública, e defende a necessidade de uma sorte de integração horizontal dos vários componentes do sanitarismo. Em grande parte, essa possibilidade de coordenação seria ensejada pela utilização do planejamento situacional, oriundo de Matus, no processamento de problemas transversais. A Vigilância à Saúde se caracterizaria por esse tipo de integração, mas também pela busca de uma atuação intersetorial, na linha da promoção à saúde, que seria o paradigma básico da Vigilância, alternativo ao paradigma flexeriano da Clínica. Contemplaria como um dos seus alicerces assistenciais a rede básica de atendimento, e primordialmente o modelo de Médico de Família. Hoje em dia, uma das principais contribuições da escola é a proposta de Sistemas de Microrregionalização Solidária, como célula de um sistema regionalizado que avance na possibilidade de constituir sistemas integrados de saúde por oposição aos sistemas fragmentados.
  • A escola da Ação Programática da Faculdade de Medicina da USP: esta corrente se evidencia pelas práticas experimentais de modificações das práticas assiste nciais da rede básica de atendimento, enfatizando formas multidisciplinares de trabalho em equipe. Em relação à técnica de programação, a escola sustenta a necessidade de uma abertura programática por grupos humanos amplos, para além de um recorte patológico estanque. Enseja assim condições para uma abordagem mais integrada do atendimento.  A problemática da integração e da coordenação é destacada. Atribui-se, tal como na escola da Vigilância, uma importância crucial ao uso inteligente da Epidemiologia Clínica e Social, como disciplina útil na possibilidade de programação das práticas de serviços, incluindo os clínicos. Alguns professores dessa escola tê m desenvolvido, da mesma forma que a escola da Ensp, uma preocupação importante pelo ramo da filosofia da linguagem dentro da vertente comunicativa de Habermas. A escola considera que a busca da integração entre serviços básicos e hospitalares depende do estabelecimento de uma rede eficaz de conversações, ou seja, de processos comunicativos.
Para saber mais

CRÉMADEZ, M. Le Management Stratégique Hospitalier. Paris: Intereditions, 1997.

ECHEVERRIA, R. Ontologia del Lenguaje. Santiago: Dolmen, 1994.

FLORES, F. Inventando la empresa del Siglo XXI. Santiago: Hataché, 1989.

HABERMAS, J. Teoria de la Acción Comunicativa. Madrid: Taurus, 1987.

OPS-OMS. Problemas conceptuales y metodológicos de la programación de la salud. Publicación Científica  nº 111. Washington: CENDES-Venezuela, 1965.

OPS-CPPS. Formulación de Políticas de Salud. Santiago: CEPAL/ILPES, 1975.

MEHRY, E. E. Planejamento como tecnologia de gestão: tendências e debates sobre planejamento de saúde no Brasil. In: GALLO, E. Razão e Planejamento. Reflexões sobre Política, Estratégia e Liberdade. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 1995.

MATUS, C. Política, Planejamento e Governo. Brasília: IPEA, 1993.

MATUS, C. Adeus, Sr. Presidente. Governantes e Governados. São Paulo: FUNDAP, 1997.

TESTA, M. Estrategia, coherencia y poder en las propuestas de salud. Cuadernos Médico-Sociales. Rosario, n. 38 (1ª parte) y 39 ( 2ª parte), 1987.

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