Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Pedagogia de Problemas

Suzana Lanna Burnier Coelho

A idéia da utilização pedagógica de problemas sobre algum assunto a ser resolvido pelos aprendizes não é nova. Stanic e Kilpatrick (1989) recuperam coleções de problemas tanto de manuscritos egípcios de 1650 a.C. quanto de documentos chineses de 1000 a.C. No âmbito da escola moderna, na virada do século XIX para o século XX, principalmente a partir das idéias de John Dewey, que tal proposta começa a ser sistematizada e implantada. Entretanto, sofre certo arrefecimento sendo retomada a partir dos anos 80 do século XX.

No Brasil, apesar do impacto das pedagogias progressistas em torno das décadas de 1950 e 1960 pouco se efetivou em termos de desenvolvimento de propostas e práticas curriculares baseadas em resolução de problemas nos termos propostos por Dewey.  A partir dos anos 90, entretanto, diversas instituições de ensino superior vêm resgatando tal proposta, além de autores diversos nas áreas de didáticas específicas (de matemática, de química, de física etc). Esse movimento dos anos 90 iniciou-se no exterior, nas escolas médicas de McMaster, no Canadá e de Maastricht, na Holanda, e ainda nas escolas de Albuquerque, de Harvard e do Hawai, nos Estados Unidos, entre outras. Mais recentemente, diversas escolas vêm resgatando essa perspectiva pedagógica, tanto na educação básica quanto na profissional e também na educação superior.

Atendo-nos apenas ao desenvolvimento moderno da metodologia, podemos constatar que, ao longo do século XIX, vai-se formando uma postura crítica da concepção dita tradicional de educação, voltada para a formação espiritual e moral do indivíduo. Zanotto e De Rose (2003) identificam quatro autores, representativos de abordagens diversas da problematização como atividade de ensino-aprendizagem: Dewey, Saviani, Paulo Freire e Ausubel. É importante perceber que podem haver diferentes abordagens metodológicas de tal atividade, dependendo da filiação filosófico-ideológica do autor ou de quem aplica tais propostas. 

O pragmatismo de Dewey (1859-1952), grande filósofo americano da educação, que nos anos 30 do século XX propugnava uma educação estreitamente ligada às demandas concretas da vida social. Apesar de não utilizar com freqüência o termo ‘resolução de problemas’, e sim falar de pensamento reflexivo, a ‘pedagogia de problemas’ era, para Dewey, a essência do pensamento humano, uma vez que a

instrução em matéria que não se relacione com qualquer problema já abordado na própria experiência do estudante, ou que não seja apresentado para resolver um problema é pior do que inútil para propósitos intelectuais. Na medida em que não entra em qualquer processo de reflexão, é desnecessária; mantém-se em mente como madeiras e escombros sem préstimo, é uma barreira, um obstáculo no caminho do pensamento efectivo quando o problema surge (Dewey, 1910, p. 199) 

Para Saviani, a problematização deve-se inserir na perspectiva do materialismo histórico-dialético, com seus requisitos de radicalidade, rigor e globalidade, dialeticamente articulados entre si, enfatizando o ‘sujeito cognoscente’.

Já Paulo Freire, mesmo que ressaltando, como Dewey, a origem real dos problemas propostos, destaca a necessidade de um compromisso com a transformação da realidade estudada, pela ação do sujeito. Daí sua ênfase recair sobre o ‘sujeito práxico’, enfatizado pela abordagem sociocultural.

A perspectiva cognitivista, por sua vez, enfatiza o ‘sujeito aprendente’: aquele que aprende a aprender. Dentre outros autores que trabalham nessa perspectiva, Ausubel ressalta a importância do desenvolvimento de capacidades mentais ou cognitivas e defende que a ação de problematizar é passível de aprendizagem e que, nesse processo, desenvolvem-se níveis altamente elaborados de atividade cognitiva. 

É importante que se faça uma distinção entre uma ‘pedagogia de problemas’ e a adoção da ‘técnica de problemas’ no ensino. Uma ‘pedagogia de problemas’ implicaria, stricto sensu, a construção de um currículo baseado em problemas, ou seja, toda uma proposta de trajetória formativa centrada na resolução de problemas. Essa abordagem seria então o eixo norteador da organização dos tempos e espaços escolares, das disciplinas e das relações sociais no processo educativo. Tal abordagem implica uma organização multidisciplinar do currículo, confrontando os estudantes com situações-problema como as que encontrarão na ‘vida real’. Engel (1991) aponta para a necessidade de escolher conteúdos e métodos adequados a tal proposta, o que levaria à adoção, no currículo, dos seguintes princípios de aprendizagem:

  • a aprendizagem será cumulativa: nenhum tópico será abordado de forma completa e definitiva, mas sim reintroduzido repetidamente;
  • a aprendizagem deve ser integrada: os conteúdos não devem ser apresentados isoladamente, mas disponibilizados para estudo na medida em que se relacionam ao problema;
  • a aprendizagem deverá ser progressiva: as habilidades requeridas vão-se transformando à medida que os alunos amadurecem.
  • a aprendizagem será consistente: os objetivos da aprendizagem baseada em problemas deverão ser operacionalizados nas diversas facetas do currículo, como, por exemplo, na relação entre ensino e avaliação.

Já a ‘técnica de problemas’ é a aplicação mais ou menos esporádica de estratégias, recursos e procedimentos organizados em torno de uma determinada situação-problema, independente do tipo de organização curricular em que tal técnica é aplicada. Entre esses dois pólos, há, obviamente, um gradiente de opções de intensidades e intencionalidades de aplicação da lógica de resolução de problemas como estratégia de ensino-aprendizagem. 

De qualquer forma, é necessária a definição, em primeiro lugar, do que sejam ‘problemas’ pedagogicamente relevantes, diferindo-os de meros ‘exercícios’. Os exercícios seriam atividades de aprendizagem para as quais o sujeito já dispõe das estratégias de solução e então as aplica às situações propostas. Já o ‘problema’ é uma situação apresentada em um estado inicial, que se deseja avançar para outro estágio, mas não havendo, a priori, uma estratégia direta e óbvia para deslocar-se de um estado ao outro (Mayer, 1992). Destaca-se nessa concepção o caráter de ineditismo da situação para o sujeito, segundo o qual, a solução do problema nunca está imediatamente disponível, ainda que, ao se deparar com um problema, o sujeito recorra a esquemas que já possui e que lhe permitem formar uma representação apropriada da situação (Alves & Brito, 2003).

A partir dessa definição, podemos então analisar o processo de desenvolvimento de uma atividade baseada na solução de problemas. É vasta a literatura e são inúmeros os sítios da internet onde se encontra tal tipo de orientação. Dentre as diversas sugestões de procedimentos, encontram-se os famosos ‘Sete passos da aprendizagem baseada em problemas’:

  1. Escolhe-se um coordenador e um secretário para cada sessão. O coordenador e o grupo lêem o problema. O coordenador pergunta se alguém não entendeu algum termo do problema. Tudo deve ser esclarecido nesse momento; 
  2. O coordenador pede ao grupo para expressar como eles compreenderam a apresentação do problema. Nesse momento, os estudantes não têm ainda indícios sobre a profundidade de conhecimentos inerentes à descrição do problema, mas isso ficará mais claro no decorrer do processo. Algumas respostas, assim, poderão ser inadequadas, mas isso não importa agora. O educador deverá resistir ao impulso de oferecer qualquer forma de explicação ou de transmissão de conhecimento, permitindo que as dúvidas invadam o pensamento dos alunos; 
  3. Desenvolve-se uma sessão de brainstorming para avaliar o que é conhecido (ou julgado conhecido) sobre o assunto (conhecimentos prévios); 
  4. Registram-se os pontos-chave do que foi discutido. Elabora-se então uma lista do que é sabido sobre o assunto, o que é desconhecido, o que está pouco claro e que precisa ser investigado em mais detalhes. Tudo isso é feito para ajudar o grupo a compreender os aspectos relativos ao problema; 
  5. O grupo deverá combinar seus objetivos de aprendizagem e tarefas que eles deverão colocar em prática antes do próximo encontro, o que será sistematizado pelo secretário e disponibilizado a todos; 
  6. Estudo individual – os membros do grupo coletam as informações identificadas no item 5. São possíveis dois caminhos: cada aluno se encarrega de algumas das questões a serem estudadas ou então todos se encarregam de todas as questões. A segunda opção demanda mais tempo, entretanto, a primeira opção pode resultar em lacunas na compreensão e aprendizagem de alguns alunos. O educador deverá prover uma lista de referências para orientar os alunos em suas pesquisas; 
  7. O grupo se encontra pela segunda vez. São lidos os objetivos estabelecidos, e cada estudante tem a oportunidade de apresentar sua pesquisa para os demais. O secretário anota todas as informações relevantes. Isso pode ser feito na assembléia ou em pequenos grupos.

Em todos os encontros cada aluno deverá entregar uma folha com resumo de suas pesquisas e anotações para avaliação. O educador também pode identificar outros critérios para avaliar o aluno: participação nas discussões, papel como secretário ou coordenador, qualidade da pesquisa individual realizada, e outros. Para evitar ausência, a presença poderá ser valorizada na avaliação final.

Ao final do processo, o secretário prepara uma súmula da investigação e das conclusões, que deve ser disponibilizada para cada membro do grupo. Se houveram diversos grupos de solução de problemas (muitas instituições subdividem as turmas em grupos com cerca de 12 alunos), poderá haver uma apresentação das descobertas de cada grupo. Nesse momento é interessante fazer uma discussão sobre os motivos de se ter chegado a diferentes soluções para o mesmo problema e o que se pode aprender de cada uma dessas diferentes soluções. O tutor pode, nesse momento, fazer uma exposição demonstrando como conceitos relativos a aspectos diversos do problema podem ser usados para analisá-lo. Essa exposição pode ajudar os estudantes a observar como conhecimentos relacionados a uma situação-problema podem ser transferidos para outras situações. O ciclo continua então com a apresentação de outro problema estimulante.

Vê-se, assim, que a proposta tem grandes potencialidades. Diversos artigos publicados em periódicos tanto na área da educação como em outras áreas de formação que também vêm utilizando a metodologia relatam experiências bem sucedidas com a mesma. Entretanto, como qualquer proposta pedagógica, a aprendizagem baseada em problemas tem suas limitações. Em primeiro lugar, os estudantes, habituados às aulas expositivas tradicionais podem se sentir pouco confortáveis diante da proposta. Está a cargo dos professores convencê-los de que eles são pesquisadores em busca de informações e soluções para problemas que não têm, obrigatoriamente, uma ‘resposta certa’. Por isso é importante preparar os professores para adotar novas perspectivas em sala de aula, quando trabalhando com ambientes de ensino-aprendizagem baseados em problemas. Além disso, o ritmo do trabalho nessa perspectiva é diferente, o que traz de volta a velha tensão pedagógica entre volume de conhecimentos trabalhados e qualidade da aprendizagem. Há diversas maneiras de contornar essa limitação, provendo volume de conhecimentos, ainda que menos aprofundados, através de outras estratégias paralelas.

Do ponto de vista dos professores, transitar por novas abordagens pedagógicas pode gerar incertezas e certamente eles se verão diante de situações de imprevisibilidade e risco. Se os estudantes não são familiarizados com a metodologia, eles aprenderão menos no início, e essa familiaridade pode levar um ano e gastar mais energia do professor. Professores que se iniciam nessa abordagem poderão se sentir tentados a oferecer aos estudantes as variáveis-chave, excessiva informação ou uma simplificação de problemas, mas descobrirão que cenários e problemas complexos aumentam o engajamento dos estudantes com a questão. Por outro lado, os professores se verão agora num ambiente de sala de aula estimulante, significativo, recompensador e que pode se transformar numa das experiências mais gratificantes dos docentes. Outros desafios são a construção de um banco de problemas relevantes e o gerenciamento de pessoas e grupos, uma vez que as turmas não são mais platéias que escutam, mas grupos que interagem ativamente com vistas a um resultado. O professor deve ser preparado para todas essas ações em sala.

Uma outra variante dessa metodologia é a da ‘problematização’ (Berbel, 1998). Sua especificidade é que, nesse caso, o problema não é apresentado aos alunos pelo professor ou tutor, mas sistematizado pelos próprios alunos a partir da observação da realidade social. Ainda que seja definido um tópico de estudo referente ao qual a ida dos alunos a campo será organizada, são os próprios alunos que identificarão dificuldades, carências, discrepâncias a serem transformadas em problemas que serão, por sua vez, analisados à luz da teoria, dando origem a projetos de intervenção prática. Essa metodologia tem como ponto de destaque sua capacidade de preparar o estudante para tomar consciência de seu mundo e atuar intencionalmente para transformá-lo, sendo assim uma das aplicações da pedagogia de Paulo Freire, já mencionada. 

Optando-se pela ‘problematização’ ou pela aprendizagem baseada em problemas como metodologia estruturante de toda a proposta curricular ou, em outro caso, pela utilização esporádica e individualizada da técnica de problemas, possibilitamos, como foi visto, em distintos graus e direções, o desenvolvimento de inúmeras capacidades dos estudantes dificilmente estimuláveis através do método expositivo tradicional. Cabe a cada projeto pedagógico definir em que nível de abrangência a perspectiva será adotada e compete ainda prover a capacitação docente e os recursos (tempos, espaços e materiais) necessários à sua implementação que deve ser cuidadosamente planejada e avaliada. 

Para concluir, não podemos deixar de lembrar os sérios alertas que nos faz Duarte (2001) quando, analisando as pedagogias do “aprender a aprender”, alerta para os riscos de se tomar tal perspectiva como a solução para os graves desafios da sociedade contemporânea e do mercado de trabalho. Duarte denuncia o uso de perspectivas pedagógicas por aqueles que pretendem manter o modelo social atual, excludente e concentrador, fora da crítica, centrando as discussões em propostas milagrosas de formação de indivíduos que estariam, a partir disso, capacitados para alcançarem sucesso na sociedade e no mercado de trabalho. Duarte também denuncia o velho risco de se enfatizarem as metodologias em detrimento do acesso a sólidos conteúdos teóricos e reafirma a necessidade de se integrarem conteúdo e forma e de que tal integração deve ter como referência as reais contradições da sociedade capitalista e de seu cada vez mais precário e reduzido mercado de trabalho.   

Para saber mais

ALVES, E. V. & BRITO, M. R. F. Algumas considerações sobre a solução de problemas. In: Encontro Brasileiro de Estudantes de Pós-graduação em Educação Matemática, 2003, Rio Claro. Anais…Rio Claro, 2003. 

BERBEL, N. A. N. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos? Interface – comunicação, saúde e educação, 1(2): 139-154, fev., 1998. 

DEWEY, J. How We Think. Boston: Heath, 1910. 

DUARTE, N. Sociedade do Conhecimento ou Sociedade das Ilusões? Quatro Ensaios Crítico- Dialéticos em Filosofia da Educação. Campinas: Autores Associados, 2003. 

ENGEL, C. E. Nor just a method but a way of learning. In: BOUD, D. &  FELETTI, G. (Eds.) The Challenge of Problem-Based Learning. London: Kogan Page, 1991. 

GAGNÉ, R. M. Como se Realiza a Aprendizagem. Tradução de T. M. R. Tovar. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1974. 

MAYER, R. E. Thinking, Problem Solving, Cognition. New York: W. H. Freeman and Company, 1992. 

STANIC, G. M. A. & KILPATRICK, J. Historical perpectives on problem solving mathematics curricula. In: CHARLES, R. I. & SILVER, E. A. (Eds.) The Teaching and Assessment of Mathematical Problem Solving. Reston, VA: NCTM e Lawrence Erlbaum, 1989. 

ZANOTTO, M. A. do C. & DE ROSE, T. M. S. Problematizar a própria realidade: análise de uma experiência de formação contínua. Educ. Pesqui., 29(1): 45-54, jan.- jun., 2003.  

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