Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Profissão

Naira Lisboa Franzoi

A dificuldade de precisar conceitualmente o termo ‘profissão’ deve-se ao fato de que o mesmo assume diferentes conotações de acordo com a área de conhecimento e a tradição nacional e idiomática em que é empregado. Quando utilizado na sociologia anglo-americana, o termo (profession) é reservado para as profissões ditas sábias, ou seja, que pressupõem formação universitária, distinguindo-se de occupations – o conjunto dos empregos. Diferentemente, tanto na língua francesa quanto na portuguesa, o termo, sem o qualificativo liberal (ou libérales), designa tanto as ‘profissões sábias’ quanto o conjunto dos empregos reconhecidos na linguagem administrativa, principalmente nas classificações dos recenseamentos promovidos pelo Estado. 

No Ocidente, as ‘profissões sábias’ e os ‘ofícios’ têm uma origem comum nas corporações, e o termo ‘profissão’ é tributário da ‘profissão de fé’ – juramento que faziam aqueles que passavam a pertencer à corporação. O trabalho, considerado uma arte, reunia nas corporações, onde se ‘se professava uma arte’, trabalhadores manuais e intelectuais, artistas e artesãos. Na rígida hierarquia da sociedade medieval, a oposição se dava entre aqueles que pertenciam às corporações de ofícios juramentados e os jornaleiros, que trabalhavam por dia. É só com a expansão e a consolidação das universidades que se passa a fazer esta distinção entre as ‘profissões’, derivadas das septem artes liberales, aí ensinadas, e os ofícios, derivados das ‘artes mecânicas’ (Dubar, 1997).

Subjacente a essa oposição semântica está, de fato, uma oposição associada a “um conjunto de distinções socialmente estruturantes e classificadoras que se reproduziram através dos séculos: cabeça/mão, intelectuais/manuais, alto/baixo, nobre/vilão etc. (Dubar, 1997, p. 124). Ou seja, tratase de uma disputa de poder na sociedade que se configura como uma luta política e ideológica pela distinção e pela classificação. 

Pode-se considerar também, que, mais recentemente, o Taft Hartley Act, promulgado em 1947, nos EUA, foi, em parte, responsável pela consolidação dessa diferenciação, ao distinguir, por lei, as ‘profissões’ das ‘meras ocupações’. Enquanto as últimas davam apenas o direito organização sindical, as primeiras contemplavam um estatuto e o direito de organização em ‘associações profissionais’.

É a esse mesmo registro que se pode atribuir a distinção entre profissões e ocupações na sociologia das profissões tradicional, de inspiração funcionalista, fortemente referida nos estudos sobre a profissão médica. Alimentada por tal tendência, a sociologia das ‘profissões’, até a década de 1960, de forma geral, apresentava os grupos profissionais como: a) comunidades homogêneas reunidas em torno dos mesmos valores e de um mesmo código de ética; b) detentores de um poder assentado sobre um conhecimento científico tomado como absoluto e dado. 

Foi a partir dessa década que boa parte da literatura sobre as ‘profissões’ começou a esclarecer o caráter histórico e social do processo de hierarquização intra e entre grupos profissionais. Essa literatura permite um novo enfoque, que busca, nas ‘profissões sábias’ e nas ocupações em geral, o que têm de comum, e não tanto sua diferenciação. As novas abordagens passam a entender a formação dos grupos profissionais como uma disputa pelo monopólio de mercado, inserida na divisão social do trabalho, mostrando também que o caráter ‘mais’ ou ‘menos científico’ do conhecimento monopolizado por cada grupo profissional não é dado, mas socialmente construído.

O conhecimento formal e o papel legitimador que a ciência assume nas sociedades modernas definem a relação de poder que se estabelece entre as esferas de criação, transmissão e aplicação do conhecimento formal. A educação formal requerida para o emprego em determinadas posições distingue as profissões das ocupações. Este sistema de credenciamento funciona como mecanismo de reserva de mercado de trabalho para os membros da profissão e exclusão dos demais. Portanto, as diferentes formas de acesso/controle do saber produzem as diferenças entre o profissional e o leigo e as hierarquias no interior do grupo profissional (Freidson, 1998).

A história é rica em exemplos que ilustram essa construção social da legitimidade e hierarquia dos grupos profissionais. Na Idade Média, a linha que divide trabalhadores mais ou menos reconhecidos deixa de um lado os sapateiros e alfaiates, pertencentes a corporações, e de outro seus correspondentes femininos – costureiras e chapeleiras.

A história da constituição das profissões de saúde é emblemática. Antes da unificação da profissão, os médicos se dividiam entre os físicos, os cirurgiões e os apotecários. Os primeiros tinham seus estudos desenvolvidos nas universidades e dedicavam-se exclusivamente às consultas e prescrição de tratamentos; os segundos provinham das corporações de ofícios dos cirurgiões-barbeiros e açougueiros, e seu trabalho envolvia purgas e sangrias, além das cirurgias; além disso, tinham originalmente como atividades a fabricação e comercialização de medicamentos. Esta divisão criava uma hierarquização dentro do grupo, de acordo com a maior ou menor ligação com o conhecimento erudito ou com a aplicação prática do conhecimento e com o comércio. 

O atual debate sobre o projeto de lei, que ficou conhecido como “ato médico” (ver as indicações de sítios na internet que tratam do tema), o qual pretende diferenciar as atribuições específicas dos médicos das de outros profissionais da saúde, põe em evidência o caráter histórico de que se reveste a hierarquização entre os grupos profissionais da área.

No processo de constituição das profissões, as instituições de formação, nos seus diferentes níveis e com seus diferentes mecanismos, assumem importante papel de legitimação, sendo o Estado um ator central na pactuação e regulação através, dentre outras ações, do reconhecimento dessas instituições e das credenciais por ele emitidas.

No caso do Brasil, o Estado pós- 1930 investe na regulamentação das ocupações/profissões para, a partir dela, definir aqueles que seriam sujeitos de direitos, constituindo o que Santos (1979) chama de “cidadania regulada. Para as ‘profissões regulamentadas’, a posse do diploma era suficiente. Para as não-regulamentadas, era necessária a comprovação na prática da competência, ou seja, “o ‘fechamento’ do mercado de prestação de serviços profissionais era, e continua a ser, o do credenciamento educacional, a posse do diploma de nível superior (Coelho, 2003). O que definia que uma ‘profissão’ fosse regulamentada era a mobilização de seus praticantes, através de uma associação, da persuasão de setores da sociedade de sua importância e da capacidade de lobby junto ao Congresso para a apresentação e a aprovação de projeto de lei de regulamentação.

É importante salientar que, pela legislação do país, os cursos de graduação em medicina, em odontologia e em psicologia, são os únicos, além dos cursos jurídicos, cuja criação, pelo Ministério da Educação, deve ser submetida manifestação do conselho da área, o Conselho Nacional de Saúde.

Desvelados esses processos, é possível ampliar o conceito de ‘profissão’, como o faz Hughes (1994), para quem o termo ‘profissional’ deve ser tomado como categoria da vida cotidiana ‘que não é descritivo, mas implica julgamento de valor e de prestígio’. O autor enfatiza a divisão do trabalho como ponto de partida de qualquer análise sociológica do trabalho humano, pois não se pode separar uma atividade do conjunto daquelas onde ela se insere e dos procedimentos de distribuição social. 

Para sustentar seu argumento, Hughes mostra que o profissional é aquele que possui um ‘diploma’ (licence) e um ‘mandato’ que lhe são atribuídos pela sociedade. O diploma é a autorização legal para exercer atividades que outros não podem, através da qual o profissional é separado dos demais. O mandato é a obrigação legal de assegurar uma função específica, através do qual lhe é confiada uma missão. Esses dois atributos conferem ao profissional um poder sagrado e constituem as bases da divisão moral do trabalho, que implica uma separação entre funções essenciais (sagradas) e secundárias (profanas). Esse profissional detém um segredo, pelo qual deve se responsabilizar. Mas a ciência é apenas uma falsa justificativa para assegurar o poder dos profissionais e de suas associações – instituições destinadas a proteger o diploma e a manter o mandato de seus membros. Embora as figuras do médico e do advogado sejam emblemáticas, é possível estender essas características a um vasto leque de profissionais. O autor estende essa mesma compreensão para aqueles cuja ocupação não adquiriu o status de ‘profissão’, mostrando que estes também reivindicam e a eles são atribuídos uma licença e um mandato. Assim, estabelece- se uma analogia entre ‘ocupações’ e ‘profissões’ e pode-se estender a noção de socialização profissional para as atividades assalariadas ‘comuns’. Esse tratamento dado ao conceito por Hughes e seus pares da assim chamada Escola de Chicago, ou interacionistas, é um avanço em relação sociologia clássica das ‘profissões’.

Ainda assim, Dubar (1997) considera que tal abordagem insuficiente para compreender o processo de socialização dos trabalhadores de forma geral, em especial, dos assalariados menos qualificados da grande empresa. O conceito de formas identitárias formulado pelo autor, no diálogo com as teorias anteriores, permite ampliar a compreensão da relação dos indivíduos, ou grupo de indivíduos, com o seu trabalho. Abre-se, assim, um profícuo caminho de estudos sobre o tema, pois, como alerta Freidson (1998), a complexidade do conceito não deve ser empecilho para tais estudos, cuja estratégia de análise é tomar as ocupações mais como casos empíricos individuais que como espécimes de algum conceito fixo e mais geral.

No caminho aberto pelos autores, é possível verificar, mesmo dentre trabalhadores com inserção precria no mercado de trabalho, seu auto-reconhecimento como profissionais, na medida em que se identificam com determinados grupos e que consideram seus saberes e seu trabalho úteis socialmente (Franzoi, 2006).

Para saber mais

BARBOSA, M. L. de O. A sociologia das profissões: em torno da legitimidade de um objeto. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, 36: 3-30, 2. sem. 1993. 

BECKER, H. S. The nature of a profession. In: BECKER, H. S. (Ed.) Sociological Work: method and substance. New Brunswick, NJ: Transaction Books, 1970. 

CASTEL, R. As Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 2003. 

COELHO, E. C. As profissões Imperiais: medicina, engenharia e advocacia. Rio de Janeiro: Record, 2003. 

DUBAR, C. A Socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Porto: Porto Editora, 1997. 

DURKHEIM, É. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 

FRANZOI, N. L. Entre a formação e o trabalho: trajetórias e identidades profissionais. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2006. 

FREIDSON, E. Renascimento do Profissionalismo: teoria, profecia e política. São Paulo: Edusp, 1998. 

HUGUES, E. C. On work, Race and the Sociological Imagination. Chicago: The University of Chicago Press, 1994. 

MACHADO, M. H. (Org.) Profissões de Saúde: uma abordagem sociológica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1995. 

MERTON, R. K. The Student-Physician: an introductor y studies in the sociology of medical education. Cambrigde: Harvard University, 1957. 

PARSONS, T. Ensayos de teoría sociologica. Buenos Aires: Paidós, 1967. 

SANTOS, W. G. dos. Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979.

http://www.portalmedico.org.br/atomedico. Acesso em: 27 ago. 2006.

http://www.portalcofen.gov.br. Acesso em: 27 ago. 2006.

http://www.sedes.org.br/Instituto. Acesso em: 27 ago. 2006.

© 2009 Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Todos os direitos reservados.
Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio.
Av. Brasil - 4365 - Manguinhos - Rio de Janeiro - RJ - CEP 21040-900 Brasil - Tel.: (21) 3865.9797