Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Pedagogia das Competências

Marise Nogueira Ramos

A noção de competências é de tal forma polissêmica que poderíamos arrolar aqui um conjunto de definições a ela conferida. Uma das definições comumente usadas considera a ‘competência’ como o conjunto de conhecimentos, qualidades, capacidades e aptidões que habilitam o sujeito para a discussão, a consulta, a decisão de tudo o que concerne a um ofício, supondo conhecimentos teóricos fundamentados, acompanhados das qualidades e da capacidade que permitem executar as decisões sugeridas (Tanguy & Ropé, 1997). Outras definições, propostas por Zarifian (1999, p. 18-19) em sua principal obra sobre o tema são: “a competência é a conquista de iniciativa e de responsabilidade do indivíduo sobre as situações profissionais com as quais ele se confronta”; “a competência é uma inteligência prática das situações que se apóiam sobre os conhecimentos adquiridos e os transformam, com tanto mais força quanto a diversidade das situações aumenta”; “competência é a faculdade de mobilizar os recursos dos atores em torno das mesmas situações, para compartilhar os acontecimentos, para assumir os domínios de corresposabilidade”.

Ao ser utilizada no âmbito do trabalho, essa noção torna-se plural – ‘competências’ –, buscando designar os conteúdos particulares de cada função em uma organização de trabalho. A transferência desses conteúdos para a formação, orientada pelas competências que se pretende desenvolver nos educandos, dá origem ao que chamamos de ‘pedagogia das competências’, isto é, uma pedagogia definida por seus objetivos e validada pelas competências que produz. 

A emergência da ‘pedagogia das competências’ é acompanhada de um fenômeno observado no mundo produtivo – a eliminação de postos de trabalho e redefinição dos conteúdos de trabalho à luz do avanço tecnológico, promovendo um reordenamento social das profissões. Este reordenamento levanta dúvidas sobre a capacidade de sobrevivência de profissões bem delimitadas, ao mesmo tempo em que fica diminuída a expectativa da construção de uma biografia profissional linear, do ponto de vista do conteúdo, e ascendente, do ponto de vista da renda e da mobilidade social. Pode-se falar da crise do valor dos diplomas, os quais perdem importância para a qualificação real do trabalhador, promovida pelo encontro entre as competências requeridas pelas empresas e adquiridas pelo trabalhador, capazes de serem demonstradas na prática (Paiva, 1997).

Enquanto o conceito de qualificação se consolidou como um dos conceitos-chave para a classificação dos empregos, por sua multidimensionalidade social e coletiva, apoiando-se especialmente, mas sem rigidez, na formação recebida inicialmente, as competências aparecem destacando os atributos individuais do trabalhador. Segundo o discurso contemporâneo das empresas, o apelo às competências requeridas pelo emprego já não está ligado (ao menos formalmente) à formação inicial. Ou, em outras palavras, as práticas cognitivas dos trabalhadores, necessárias e relativamente desconhecidas, podem não ser representadas pelas classificações profissionais ou pelos certificados escolares. Essas competências podem ter sido adquiridas em empregos anteriores, em estágios, longos ou breves, de formação contínua, mas também em atividades lúdicas, de interesse público fora da profissão, atividades familiares etc.

As competências, a partir de procedimentos de avaliação e de validação, passam a ser consideradas como elementos estruturantes da organização do trabalho que outrora era determinada pela profissão. Enquanto o domínio de uma profissão, uma vez adquirido, não pode ser questionado (no máximo, pode ser desenvolvido), as competências são apresentadas como propriedades instáveis dentro e fora do exercício do trabalho. Isso quer dizer que uma gestão fundada nas competências encerra a idéia de que um assalariado deve se submeter a uma validação permanente, dando constantemente provas de sua adequação ao posto de trabalho e de seu direito a uma promoção. Tal gestão pretende conciliar o tempo longo das durações de atividades dos assalariados com o tempo curto das conjunturas do mercado, das mudanças tecnológicas, tendo em vista que qualquer ato de classificação pode ser revisado. Assim, a extensão das práticas de avaliação e de validação executadas por especialistas detentores de técnicas relativamente independentes da atividade avaliada efetua-se por referência à instituição escolar, dela separando-se simultaneamente, de uma maneira radical: com efeito, o diploma é um título definitivo, mesmo que seu valor possa variar no mercado, ao passo que a validação das aquisições profissionais – as competências – é sempre incerta e temporária (Tanguy & Ropé, 1997).

A abordagem profissional pelas competências pretende, então, liberar a classificação e a progressão dos indivíduos das classificações dos postos de trabalho, a partir da construção de um conjunto de instrumentos destinados a objetivar e a medir uma série de dados necessários à aplicação dessa lógica. Com isso, a evolução das situações de trabalho e a definição dos empregos ocorrem muito mais em função dos arranjos individuais do que das classificações ou da gestão dos postos de trabalho a que se referiam as qualificações. As potencialidades do pessoal são colocadas no centro da divisão do trabalho, tornando-se um instrumento indispensável das políticas da empresa. 

Esse deslocamento da qualificação para as competências no plano do trabalho produziu, no plano pedagógico, outro deslocamento, a saber: do ensino centrado em saberes disciplinares para um ensino definido pela produção de competências verificáveis em situações e tarefas específicas e que visa a essa produção, que caracteriza a ‘pedagogia das competências’. Essas competências devem ser definidas com referência às situações que os alunos deverão ser capazes de compreender e dominar. A ‘pedagogia das competências’ passa a exigir, então, tanto no ensino geral quanto no ensino profissionalizante, que as noções associadas (saber, saber-fazer, objetivos) sejam acompanhadas de uma explicitação das atividades (ou tarefas) em que elas podem se materializar e se fazer compreender, explicitação esta que revela a impossibilidade de dar uma definição a essas noções separadamente das tarefas nas quais elas se materializam.

A afirmação desse modelo no ensino técnico e profissionalizante é resultado de um conjunto de fatores que expressam o comprometimento dessa modalidade de ensino com o processo de acumulação capitalista, que impõe a necessidade de justificar a validade de suas ações e de seus resultados. Além disso, espera-se que seus agentes (professores, gestores, estudantes) não mantenham a mesma relação com o saber que os professores de disciplinas academicamente constituídas, de modo que a validade dos conhecimentos transmitidos seja aprovada por sua aplicabilidade ao exercício de atividades na produção de bens materiais ou de serviços. A ‘pedagogia das competências’ é caracterizada por uma concepção eminentemente pragmática, capaz de gerir as incertezas e levar em conta mudanças técnicas e de organização do trabalho às quais deve se ajustar.

Essa redefinição pedagógica somente ganha sentido mediante o estabelecimento de uma correspondência entre escola e empresa. Para isso constroem- se os chamados referenciais, em alguns países, a exemplo da França, chamados de referenciais de diploma, para a escola, e de referenciais de emprego ou de atividades profissionais, para a empresa. No Brasil, esses referenciais se equivalem às diretrizes e aos referenciais curriculares nacionais produzidos pelo Ministério da Educação para a escola, enquanto no mundo do trabalho aplica-se a Classificação Brasileira de Ocupações, produzida pelo Ministério do Trabalho.  Tais referenciais, que tomam as competências como base, são, supostamente, as ferramentas de comunicação entre os agentes da instituição escolar e os representantes dos meios profissionais. Constituem-se também como suportes principais de avaliação tanto na formação inicial e continuada quanto no ensino técnico, com o intuito de permitir a correlação estreita entre a oferta de formação e a distribuição das atividades profissionais.

Além de atender o propósito de reordenar a relação entre escola e emprego, a ‘pedagogia das competências’ visa também a institucionalizar novas formas de educar os trabalhadores no contexto político-econômico neoliberal, entremeado a uma cultura chamada de pós-moderna. Por isto, a ‘pedagogia das competências’ não se limita à escola, mas visa a se instaurar nas diversas práticas sociais pelas quais as pessoas se educam. Nesse contexto, a noção de competência vem compor o conjunto de novos signos e significados talhados na cultura expressiva do estágio de acumulação flexível do capital, desempenhando um papel específico na representação dos processos de formação e de comportamento do trabalhador na sociedade. 

Assim, o desenvolvimento de uma pedagogia centrada nessa noção possui validade econômico-social e também cultural, posto que à educação se confere a função de adequar psicologicamente os trabalhadores aos novos padrões de produção. O novo senso comum, de caráter conservador e liberal, compreende que as relações de trabalho atuais e os mecanismos de inclusão social se pautam pela competência individual. 

A competência, inicialmente um aspecto de diferenciação individual, é tomada como fator econômico e se reverte em benefício do consenso social, envolvendo todos os trabalhadores supostamente numa única classe: a capitalista; ao mesmo tempo, forma-se um consenso em torno do capitalismo como o único modo de produção capaz de manter o equilíbrio e a justiça social. Em síntese, a questão da luta de classe é resolvida pelo desenvolvimento e pelo aproveitamento adequado das competências individuais, de modo que a possibilidade de inclusão social subordina-se à capacidade de adaptação natural às relações contemporâneas. A flexibilidade econômica vem acompanhada da psicologização da questão social.

A noção de competência situa-se, então, no plano de convergência entre a teoria integracionista da formação do indivíduo e da teoria funcionalista da estrutura social. A primeira demonstra que a competência torna-se uma característica psicológico-subjetiva de adaptação do trabalhador à vida contemporânea. A segunda situa a competência como fator de consenso necessário à manutenção do equilíbrio da estrutura social, na medida em que o funcionamento desta última ocorre muito mais por fragmentos do que por uma seqüência de fatos previsíveis.

O processo de construção do conhecimento pelo indivíduo, por sua vez, seria o próprio processo de adaptação ao meio material e social. Nesses termos, o conhecimento não resultaria de um esforço social e historicamente determinado de compreensão da realidade para, então, transformá-la, mas sim, das percepções e concepções subjetivas que os indivíduos extraem do seu mundo experiencial. O conhecimento ficaria limitado aos modelos viáveis de inteiração com o meio material e social, não tendo qualquer pretensão de ser reconhecido como representação da realidade objetiva ou como verdadeiro. 

A validade do conhecimento assim compreendido é julgada, portanto, por sua viabilidade ou por sua utilidade. Predomina, então, uma conotação utilitária e pragmática do conhecimento. Suas viabilidade e utilidade, muito além de serem consideradas históricas, são tidas como contingentes. Ou seja, não existe qualquer critério de objetividade, de totalidade ou de universalidade para julgar se um conhecimento ou um modelo representacional é válido, viável ou útil.

Com isto, o carácter histórico-ontológico do conhecimento é substituído pelo caráter experiencial. Essa concepção de conhecimento, às vezes chamada de epistemologia experiencial ou epistemologia socialmente construtivista é, na verdade, uma epistemologia ‘adaptativa’, visto que seu fundamento axiológico vincula-se a essa função. As categorias objetivo e subjetivo se fundem indistintamente no processo de inteiração, superando proposições de certeza e de universalidade em beneficio da particularidade, da indeterminação e da contingência do conhecimento. Em outras palavras, o sentido e o valor de qualquer representação do real dependeria do ponto a partir do qual se vê o real – relativismo – e de quem o vê – subjetivismo. Isto implica romper com a epistemologia moderna em favor de uma epistemologia que compõe o universo ideológico pós-moderno.

A ‘pedagogia das competências’ reconfigura, então, o papel da escola. Se a escola moderna comprometeu-se com a sustentação do núcleo básico da socialização conferido pela família e com a construção de identidades individuais e sociais, contribuindo, assim, para a identificação dos projetos subjetivos com um projeto de sociedade; na pós-modernidade a escola é uma instituição mediadora da constituição da alteridade e de identidades autônomas e flexíveis, contribuindo para a elaboração dos projetos subjetivos no sentido de torná-los maleáveis o suficiente para se transformarem no projeto possível em face da instabilidade da vida contemporânea. Atuar na elaboração dos projetos possíveis é construir um novo profissionalismo que implica preparar os indivíduos para a mobilidade permanente entre diferentes ocupações numa mesma empresa, entre diferentes empresas, para o subemprego, para o trabalho autônomo ou para o não-trabalho Em outras palavras, a ‘pedagogia das competências’ pretende preparar os indivíduos para a adaptação permanente ao meio social instável da contemporaneidade.   

Para saber mais

CARDOSO, A. et al. Trajetórias ocupacionais, desemprego e empregabilidade. Há algo de novo na agenda dos estudos sociais do trabalho no Brasil? Contemporaneidade e Educação, Ano II, 1: 52- 67, maio, 1997. 

CASALI, A. et al. Empregabilidade e Educação: novos caminhos no mundo do trabalho. São Paulo: Educ, 1997. 

DELUIZ, N. Formação do Trabalhador: produtividade & cidadania. Rio de Janeiro: Shape Ed., 1995. 

DESAULNIERS, J. B. R. Formação & Trabalho & Competências. Rio Grande do Sul: Edipucrs, 1998. 

HIRATA, H. Da polarização das qualificações ao modelo da competência. In: FERRETI, C. et al. (Orgs.) Tecnologias, Trabalho e Educação: um debate multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1994. 

PAIVA, V. Desmistificações das profissões: quando as competências reais moldam as formas de inserção no mundo do trabalho. Contemporaneidade e Educação, Ano II, 1: 19- 37, maio, 1997. 

RAMOS, M. N. Pedagogia das Competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001. 

TANGUY, L. & ROPÉ, F. (Orgs.) Saberes e Competências: o uso de tais noções na escola e na empresa. São Paulo: Papirus, 1997. 

ZARIFFIAN, P. Objective Comptence. Paris: Liasion, 1999.  

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