Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Participação Social

Eduardo Navarro Stotz

Conceito genérico usado na Sociologia com o sentido de: a) integração, para indicar a natureza e o grau da incorporação do indivíduo ao grupo, e b) norma ou valor pelo qual se avaliam tipos de organização de natureza social, econômica, política, etc. (Rios, 1987).

O primeiro é o sentido amplo do termo e assinala a importância da adesão dos indivíduos na organização da sociedade. Do ponto de vista sociológico, participação é um conceito relacional e polissêmico, pois remete tanto à coesão social como à mudança social. A participação implica comportamentos e atitudes passivos e ativos, estimulados ou não. Na medida em que a ação mobiliza o sujeito do ponto de vista emocional, intuitivo e racional, a participação pode ser entendida como um princípio diretor do conhecimento, variável segundo os tipos de sociedade em cada época histórica.

No segundo sentido, mais estrito e de caráter político, participação significa democratização ou participação ampla dos cidadãos nos processos decisórios em uma dada sociedade. Representa a consolidação, no pensamento social, de um longo processo histórico. Para os atenienses do século V a.c. a participação na pólis  (cidade) era uma exigência da democracia (governo do povo, demos), independentemente do saber de cada um dos cidadãos sobre os assuntos de governo. Os homens livres que se abstinham de participar eram idiótes (idiotas), pois preferiam recolher-se à vida privada. Uma participação apática também era incompatível com o ideal de comunidade cidadã (Finley, 1988). Não por acaso o filósofo Aristóteles afirmou ser o homem um animal político – zoom politkon; esta concepção, apesar de excluir a história, declara a indissociabilidade de indivíduo, natureza e sociedade, e recusa, portanto, a idéia do indivíduo no estado de natureza, este ser abstrato, livre e racional pressuposto pela teoria do contrato social na época das revoluções burguesas.  O ideal democrático incorporado na cultura política burguesa foi, durante séculos, limitado aos homens de escolarização mais elevada e renda alta. Voto qualificado e associativismo restrito caracterizaram a democracia liberal até que os movimentos operários impuseram, em decorrência de prolongada luta, o regime de sufrágio universal e a liberdade de organização e expressão característica dos regimes democráticos vigentes a partir do século XX.

Participação tem, porém, um sentido especial, formulado por José Arthur Rios nos seguintes termos:

Lema e tópico central em programas e doutrinas reformistas generalizadas a partir dos anos 60, quando se pensou em contrapor à massificação, à centralização burocrática e aos monopólios de poder o princípio democrático segundo o qual todos os que são atingidos por medidas sociais e políticas devem participar do processo decisório, qualquer que seja o modelo político ou econômico adotado (Rios, 1987: 869).

Essa definição deixa patente que em matéria de ciência social todos os conceitos são alvos de interpretação à luz dos contextos nos quais foram gerados. Como adverte Goldmann (1986), se todo fato social é histórico e vice-versa, não há fatos sociais sem as correspondentes doutrinas ou teorias por meio das quais se tornam conscientes. A primeira parte da frase pode ser entendida como uma crítica ao socialismo no contexto da 'guerra fria' (competição tecnológica e equilíbrio baseado no poder nuclear) entre EUA e URSS, países líderes dos dois sistemas, capitalista e socialista, em que se dividiu o mundo entre 1945 e 1989. Contudo, ao se examinar a segunda parte da frase, conclui-se que a crítica é extensiva àqueles países, situados no bloco capitalista, nos quais a burguesia nacional deteve um poder econômico e político tão concentrado que a democracia formal mal conseguia ocultar um governo ditatorial oligárquico em meio à sua situação generalizada de desigualdade e pobreza.

Nesse último contexto, a participação insere-se na proposta do governo dos Estados Unidos da América de ajuda econômica e social para a América Latina, efetuada entre os anos 1961 e 1970, na chamada Aliança para o Progresso. Como aponta Victor Vincent Valla, o programa reformista previa formas de participação voltadas para incluir populações no processo de industrialização e urbanização de países capitalistas periféricos e dependentes, de modo a ampliar o mercado consumidor, aumentar a coesão social e atalhar, preventivamente, soluções revolucionárias como a tomada do poder pelos trabalhadores em Cuba, no ano de 1959, e a instauração do socialismo em 1961 (Valla, 1986). Durante esse período são cunhadas e encaminhadas diversas modalidades de participação, como ‘modernização’, ‘integração de grupos marginalizados’, ‘mutirão’ e ‘desenvolvimento comunitário’. Durante a ditadura militar no Brasil (1964-1984), foi criada pelo Exército a estratégia das Ações Cívico-Sociais, de atendimento às carências das populações ‘marginalizadas’ do desenvolvimento econômico permanente até nossos dias. Nos anos 1980, emerge a participação popular, distinta das anteriores por não estar mais vinculada ao processo de desenvolvimento capitalista e sim à formulação e implementação de políticas públicas afetas às classes trabalhadoras (Valla e Stotz, 1989; Valla, 1993).

Para esses autores, definir participação social implica entender as múltiplas ações que diferentes forças sociais desenvolvem com o objetivo de “influenciar a formação, execução, fiscalização e avaliação de políticas públicas na área social (saúde, educação, habitação, transporte, etc.)”. Tais ações expressam, simultaneamente, concepções particulares “da realidade social brasileira e propostas específicas para enfrentar os problemas da pobreza e exploração das classes trabalhadoras no Brasil” (Valla e Stotz, 1989, p. 6).

Percebe-se, portanto, como o conceito de participação, inclusive em sua acepção social, é solidário da problemática do poder, sob diferentes perspectivas políticas, mas sempre envolvendo uma ampliação ou restrição das necessidades individuais e coletivas dos que vivem às custas de seu próprio trabalho.

No sistema capitalista, o monopólio dos meios de produção estabelece uma distribuição primária da riqueza produzida que reproduz as condições de desigualdade, inclusive entre os próprios trabalhadores. A redistribuição da renda e a atenuação da desigualdade ocorrem apenas com a intervenção do Estado, diretamente como agente econômico ou indiretamente mediante impostos e taxas, tal como aconteceu na Europa no final da II Guerra Mundial sob o chamado Estado de Bem-Estar Social. Desde o final da década de 1970, porém, em decorrência da recessão econômica mundial e da ascensão eleitoral de governos conservadores com o argumento de que o Estado de Bem-Estar, ao atender as demandas sociais, deprimia a capacidade de investimento e, conseqüentemente minava a base do sistema capitalista (Offe, 1984), esta situação praticamente foi revertida em benefício dos capitalistas. O sucesso deveu-se, dentre outras medidas denominadas neoliberais, ao primado novamente concedido às forças de mercado, à desestatização de setores econômicos, à descentralização da política pública para subníveis nacionais e à redução do gasto social.

O caso brasileiro parecia estar na contramão dessas tendências nos anos 1980-90, pois a Constituição de 1988 incorporou em seu texto demandas de cunho universalista em matéria de proteção social, a exemplo do direito à saúde. A convergência entre recessão econômica e democratização política, marcada pela onda de greves operárias entre 1978 e 1980, e pela participação em massa da população nas ruas entre 1982 e 1984, inviabilizou a adesão ao neoliberalismo por parte do primeiro governo civil após 20 anos de ditadura militar.  Mas os avanços na universalização ficaram bastante comprometidos principalmente a partir de 1998, quando o governo de Fernando Henrique Cardoso introduziu a estabilização fiscal como princípio para ordenar o gasto social.

A propósito da participação social na saúde deve ser ressaltado que o texto da Constituição de 1988 é bastante limitado, pois ao se referir às diretrizes de organização do Sistema Único de Saúde (SUS), menciona apenas 'participação da comunidade' que, na História do Brasil, faz parte de um ideário de participação limitada. O enfrentamento dessa limitação do texto constitucional evidencia-se na Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, que “dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde - SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde”. Ao atribuir aos conselhos de saúde a função de atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde, o texto legal retoma a perspectiva ideológica da 8ª Conferência (Brasil, 1990). Esse processo é, na verdade, a culminação das lutas que caracterizaram o período da redemocratização política num amplo leque de experiências e reflexões de profissionais de saúde e lideranças populares, que nos anos 1976-1984 caracterizam a vertente popular da luta pelo direito à saúde (Stotz, 2005).

Uma avaliação inicial do processo de institucionalização do controle social do SUS com base nas conferências de saúde e da criação e atuação dos conselhos de saúde, feita por Stotz (2006) aponta para as dificuldades das conferências de saúde se constituírem em instâncias populares para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos três níveis de governo (municipal, estadual e federal) conforme os termos da Lei no. 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Tais dificuldades devem-se principalmente ao processo de sua convocação a partir do Estado e do encaminhamento ascendente de suas deliberações sem lograr consensos para a ação em cada nível de organização (municipal, estadual, federal). Quanto aos conselhos de saúde, a maioria não conseguiu cumprir a função de atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente. Essa tem sido essencialmente uma função dos secretários municipais e estaduais de saúde. O formato das conferências contribui também para esse resultado.

Por outro lado, em que pesem os interesses e tentativas de capacitação de conselheiros para a fiscalização das políticas, principalmente no que diz respeito ao gasto em saúde, ainda se trata de um tema fora do alcance dos conselhos de saúde. Sabemos que a regulação na saúde, tanto do setor público como do privado, se dá à margem das instâncias de controle social do SUS: é uma atribuição das comissões intergestoras bipartites (secretarias municipais e estaduais de saúde) e tripartites (secretarias municipais e estaduais e Ministério da Saúde).

As limitações apontadas têm como pano de fundo uma conjuntura adversa aos movimentos populares. Nos anos da década de 1990, houve uma desmobilização relativa desses movimentos num contexto de fragmentação das lutas e 'demissão' do Estado (Bourdieu, 2001). Entretanto, foi nessa conjuntura que aconteceu a criação de 90% dos conselhos de saúde no país, num processo de instituição do controle social a partir do Estado. Lembre-se, a propósito, que a criação dos conselhos de saúde passou a ser uma condição legal para a municipalização dos serviços com a transferência de recursos por meio dos fundos públicos (Carvalho, 1995).

As conferências de saúde e a estrutura dos conselhos, apesar das dificuldades e limitações apontadas, constituem um campo político que expressa, nas circunstâncias da conjuntura da saúde, uma aliança entre profissionais de saúde e usuários em contraposição à ofensiva neoliberal tal como referida na experiência da Inglaterra por Desmond S. King (1988).

Para saber mais

BOURDIEU, P. Contrafogos 2: por um movimento social europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, 53 p.

BRASIL. Lei nº 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/legislacao/index.htm.. Acesso em 04/12/2007.

CARVALHO, A.  I. de. Conselhos de saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro: Fase; IBAM, 1995, p. 19-33.

FINLEY, M.  I. Democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, 192 p.

FREIRE, P. A educação na cidade. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.

GOLDMANN, L. Ciências Humanas e Filosofia. O que é a Sociologia? 10ª ed. São Paulo: DIFEL, 1986, 118 p.

KING, D. S. O Estado e as Estruturas Sociais de Bem-Estar em Democracias Industriais Avançadas. Novos Estudos, 22: 53-76, out. 1988.

OFFE, C. A 'ingovernabilidade': sobre o renascimento das teorias conservadoras da crise. In: OFFE C.  Problemas estruturais do estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 235-260.

RIOS, J. A. Participação. In: SILVA, B. (coordenador geral). Dicionário de Ciências Sociais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1987, p. 869-70.

STOTZ, E. N. A educação popular nos movimentos sociais da saúde: uma análise da experiência nas décadas de 1970 e 1980. Trabalho, Educação e Saúde, v.3, n1. p. 9-30, 2005. Disponível em http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/. Acesso em 04/12/2007.

____________. Trajetórias, limites e desafios do controle social do SUS. Saúde em Debate, 30 (73/74): 149-160, 2006.

VALLA, V. V. Educação e favela: políticas para as favelas do Rio de Janeiro, 1940-1985. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: ABRASCO,1986, 212 p.

____________. Participação popular e saúde: a questão da capacitação técnica no Brasil. In: VALLA, V. V. e STOTZ E. N.  (Orgs.). Participação popular, educação e saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993, p 55-86

___________ e STOTZ, E. N. Participação popular e saúde. Série Saúde e Educação. Petrópolis: Centro de Defesa de Direitos Humanos; Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina. 1989, 39 p.

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