Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Controle Social

Maria Valéria Costa Correia

A expressão ‘controle social’ tem origem na sociologia. De forma geral é empregada para designar os mecanismos que estabelecem a ordem social disciplinando a sociedade e submetendo os indivíduos a determinados padrões sociais e princípios morais. Assim sendo, assegura a conformidade de comportamento dos indivíduos a um conjunto de regras e princípios prescritos e sancionados. Mannheim (1971, p. 178) a define como o “conjunto de métodos pelos quais a sociedade influencia o comportamento humano, tendo em vista manter determinada ordem”.

Na teoria política, o significado de ‘controle social’ é ambíguo, podendo ser concebido em sentidos diferentes a partir de concepções de Estado e de sociedade civil distintas. Tanto é empregado para designar o controle do Estado sobre a sociedade quanto para designar o controle da sociedade (ou de setores organizados na sociedade) sobre as ações do Estado.

Nos clássicos da política, expoentes do contratualismo moderno, Hobbes, Locke e Rousseau, jusnaturalistas cujos fundamentos estão guiados pela razão abstrata – o ponto em comum é o conceito de sociedade civil como sinônimo de sociedade política contraposta ao estado de natureza, em que o Estado é a instância que preserva a organização da sociedade, a partir de um contrato social –, diferem quanto à concepção de ‘contrato social’ que funda o Estado.

Hobbes atribuiu ao Estado poder absoluto de controlar os membros da sociedade, os quais lhe entregariam sua liberdade e se tornariam voluntariamente seus ‘súditos’ para acabar com a guerra de todos contra todos e para garantir a segurança e a posse da propriedade.

Locke limitou o poder do Estado à garantia dos direitos naturais à vida, à liberdade e, principalmente, à propriedade. O ‘povo’ – que, para Locke, era a sociedade dos proprietários – mantém o controle sobre o poder supremo civil, que é o legislativo, no sentido de que este cumpra o dever que lhe foi confiado: a defesa e a garantia da propriedade.

Em toda a obra de Rousseau – O Contrato Social – perpassa a idéia do poder pertencente ao povo e/ou sob seu controle. O autor defendeu o governo republicano com legitimidade e sob controle do povo; considerava necessária uma grande vigilância em relação ao executivo, por sua tendência a agir contra a autoridade soberana (povo, vontade geral).

Nesta perspectiva, o ‘controle social’ é do povo sobre o Estado para a garantia da soberania popular. Para algumas análises marxistas, “a burguesia tem no Estado, enquanto órgão de dominação de classe por excelência, o aparato privilegiado no exercício do controle social” (Iamamoto & Carvalho, 1988, p. 108).

Na economia capitalista, o Estado tem exercido o ‘controle social’ sobre o conjunto da sociedade em favor dos interesses da classe dominante para garantia do consenso em torno da aceitação da ordem do capital. Esse controle é realizado através da intervenção do Estado sobre os conflitos sociais imanentes da reprodução do capital, implementando políticas sociais para manter a atual ordem, difundindo a ideologia dominante e interferindo no “cotidiano da vida dos indivíduos, reforçando a internalização de normas e comportamentos legitimados socialmente” (Iamamoto & Carvalho, 1988, p. 109).

A partir do referencial teórico do marxista italiano, Gramsci, em que não existe uma oposição entre Estado e sociedade civil, mas uma relação orgânica, pois a oposição real se dá entre as classes sociais, pode-se inferir que o ‘controle social’ acontece na disputa entre essas classes pela hegemonia na sociedade civil e no Estado. Somente a devida análise da correlação de forças entre as mesmas, em cada momento histórico, é que vai avaliar que classe obtém o ‘controle social’ sobre o conjunto da sociedade. Assim, o ‘controle social’ é contraditório – ora é de uma classe, ora é de outra – e está balizado pela referida correlação de forças.

Na perspectiva das classes subalternas, o ‘controle social’ deve se dar no sentido de estas formarem cada vez mais consensos na sociedade civil em torno do seu projeto de classe, passando do momento ‘econômico-corporativo’ ao ‘ético-político’, superando a racionalidade capitalista e tornando-se protagonista da história, efetivando uma ‘reforma intelectual e moral’ vinculada às transformações econômicas. Esta classe deve ter como estratégia o controle das ações do Estado para que este incorpore seus interesses, na medida que tem representado predominantemente os interesses da classe dominante. Desta forma, o ‘controle social’, na perspectiva das classes subalternas, visa à atuação de setores organizados na sociedade civil que as representam na gestão das políticas públicas no sentido de controlá-las para que atendam, cada vez mais, às demandas e aos interesses dessas classes.

Neste sentido, o ‘controle social’ envolve a capacidade que as classes subalternas, em luta na sociedade civil, têm para interferir na gestão pública, orientando as ações do Estado e os gastos estatais na direção dos seus interesses de classe, tendo em vista a construção de sua hegemonia. A expressão ‘controle social’ tem sido alvo das discussões e práticas recentes de diversos segmentos da sociedade como sinônimo de participação social nas políticas públicas. Durante o período da ditadura militar, o ‘controle social’ da classe dominante foi exercido através do Estado autoritário sobre o conjunto da sociedade, por meio de decretos secretos, atos institucionais e repressão.

Nesse período, a ausência de interlocução com os setores organizados da sociedade, ou mesmo a proibição da organização ou expressão dos mesmos foi a forma que a classe dominante encontrou para exercer o seu domínio promovendo o fortalecimento do capitalismo na sua forma monopolista. Com o processo de democratização e efervescência política e o ressurgimento dos movimentos sociais contrários aos governos autoritários, criou-se um contraponto entre um Estado ditatorial e uma sociedade civil sedenta por mudanças.

Este contexto caracterizou uma pseudodicotomia entre Estado e sociedade civil e uma pseudo-homogeneização desta última como se ela fosse composta unicamente por setores progressistas, ou pelas classes subalternas. A sociedade civil era tratada como a condensação dos setores progressistas contra um Estado autoritário e ditatorial, tornando-se comum falar da necessidade do controle da sociedade civil sobre o Estado (Coutinho, 2002).

No período de democratização do país, em uma conjuntura de mobilização política principalmente na segunda metade da década de 1980, o debate sobre a participação social voltou à tona, com uma dimensão de controle de setores organizados na sociedade civil sobre o Estado. A participação social nas políticas públicas foi concebida na perspectiva do ‘controle social’ no sentido de os setores organizados da sociedade participarem desde as suas formulações – planos, programas e projetos –, acompanhamento de suas execuções até a definição da alocação de recursos para que estas atendam aos interesses da coletividade.

A área da saúde foi pioneira neste processo devido à efervescência política que a caracterizou desde o final da década de 1970 e à organização do Movimento da Reforma Sanitária que congregou movimentos sociais, intelectuais e partidos de esquerda na luta contra a ditadura com vistas à mudança do modelo ‘médico-assistencial privatista’ (Mendes, 1994) para um sistema nacional de saúde universal, público, participativo, descentralizado e de qualidade.

A participação no Sistema Único de Saúde (SUS) na perspectiva do ‘controle social’ foi um dos eixos dos debates da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Nessa conferência, a participação em saúde é definida como “o conjunto de intervenções que as diferentes forças sociais realizam para influenciar a formulação, a execução e a avaliação das políticas públicas para o setor saúde” (Machado, 1987, p. 299). O ‘controle social’ é apontado como um dos princípios alimentadores da reformulação do sistema nacional de saúde e como via imprescindível para a sua democratização.

Esta participação foi institucionalizada na Lei 8.142/90, através das conferências que têm como objetivo avaliar e propor diretrizes para a política de saúde nas três esferas de governo e através dos conselhos – instâncias colegiadas de caráter permanente e deliberativo, com composição paritária entre os representantes dos segmentos dos usuários, que congregam setores organizados, na sociedade civil e nos demais segmentos (gestores públicos, filantrópicos e privados e trabalhadores da saúde), e que objetivam o ‘controle social’.

Vários autores brasileiros vêm trabalhando a temática do ‘controle social’ no eixo das políticas sociais. Para Carvalho (1995, p. 8), “controle social é expressão de uso recente e corresponde a uma moderna compreensão de relação Estado-sociedade, onde a esta cabe estabelecer práticas de vigilância e controle sobre aquele”. Valla (1993) inscreveu o ‘controle social’ dos serviços de saúde em um Estado democrático que vem passando por mudanças no modo de planejar e gerenciar recursos.

Na mesma direção, Barros (1998) trata o ‘controle social’ sobre a ação estatal dentro da perspectiva da democratização dos processos decisórios com vistas à construção da cidadania. Destaca que “ao longo de décadas, os governos submeteram os objetivos de sua ação aos interesses particulares de alguns grupos dominantes, sem qualquer compromisso com o interesse da coletividade” (Barros, 1998, p. 31).

Neste sentido, é que houve a ‘privatização do Estado’. Em contraponto a esta realidade, o autor afirma que a concepção de gestão pública do SUS é essencialmente democrática, devendo ser submetida ao controle da sociedade. Cohn (2000) afirma que o termo ‘controle social’ vem sendo utilizado para designar a participação da sociedade prevista na legislação do SUS. Bravo e Souza (2002) fazem uma análise das quatro posições teóricas e políticas que têm embasado o debate sobre os conselhos de saúde e o ‘controle social’. A primeira, baseia-se no aparato teórico de Gramsci, a segunda na concepção de consenso de Habermas e dos neo-habermasianos que consideram os conselhos como espaço de formação de consensos, através de pactuações. A terceira posição teórica é influenciada pela visão estruturalista althusseriana do marxismo que nega a historicidade e a dimensão objetiva do real, analisando o Estado e as instituições como aparelhos repressivos da dominação burguesa. A quarta posição é a representada pela tendência neoconservadora da política que questiona a democracia participativa, defendendo, apenas a democracia representativa.

Abreu (1999, p. 61) analisa, a partir da categoria gramsciana de Estadoampliado (relação orgânica entre sociedade política e sociedade civil), a dimensão política dos ‘conselhos de direitos’, e tem como hipótese central que, com o formato atual, “se identificam muito mais com as estratégias do controle do capital do que com a luta da classe trabalhadora no sentido da transformação da correlação das forças, tendo em vista a sua emancipação econômica, política e social”. Correia (2002) também parte do conceito gramsciano de Estado e considera o campo das políticas sociais como contraditório, pois, através deste o Estado controla a sociedade, ao mesmo tempo em que apreende algumas de suas demandas. O ‘controle social’ envolve a capacidade que os movimentos sociais organizados na sociedade civil têm de interferir na gestão pública, orientando as ações do Estado e os gastos estatais na direção dos interesses da maioria da população.

Conseqüentemente, implica o ‘controle social’ sobre o fundo público (Correia, 2003). Observa-se que os autores supracitados, apesar de utilizarem referenciais teóricos diferentes nas suas análises, têm em comum tratar o ‘controle social’ dentro da relação Estado e sociedade civil, apresentando os conselhos ‘gestores’, ou ‘de gestão setorial’, ou ‘de direitos’, como instâncias participativas, resultado do processo de democratização do Estado brasileiro. As três últimas autoras deixam clara a opção por uma análise desta temática a partir de uma perspectiva classista, problematizando o ‘controle social’ dentro das contradições da sociedade de classes.

Além dos conselhos e conferências de saúde, a população pode recorrer a outros mecanismos de garantia dos direitos sociais, em especial o direito à saúde, por exemplo, o ministério público, a comissão de seguridade social e/ou da saúde do Congresso Nacional, das assembléias legislativas e das câmaras de vereadores, a Promotoria dos Direitos do Consumidor (Procon), os conselhos profissionais etc. A denúncia através dos meios de comunicação – rádios, jornais, televisão e internet – também é um forte instrumento de pressão na defesa dos direitos.

Para saber mais

ABREU, M. M. A relação entre o Estado e a sociedade civil: a questão dos conselhos de direitos e a participação do serviço social. Serviço Social & Movimento Social, 1(1): 61- 76, jul.-dez., 1999.

BARROS, M. E. D. O controle social e o processo de descentralização dos serviços de saúde. In: Incentivo à Participação Popular e Controle Social no SUS: textos técnicos para conselheiros de saúde. Brasília: IEC, 1998. BRASIL. Lei n. 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde - SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área de saúde e outras providências. Brasília: Ministério da Saúde, 1990.

BRASIL. Relatório Final da XI Conferência Nacional de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2000.

BRASIL. Relatório Final da XII Conferência Nacional de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br.

BRAVO, M. I. S. & SOUZA, R. de O. Conselhos de saúde e serviço social: luta política e trabalho profissional. Ser Social, 10: 15-27, 2002.

CARVALHO, A. I. de. Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro: Fase/Ibam, 1995.

CARVALHO, G. I. & SANTOS, L. dos. Das formas de controle social sobre ações e os serviços de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 1992. v. I. (Cadernos da Nona)

COHN, A. Cidadania e formas de responsabilização do poder público e do setor privado pelo acesso, eqüidade, qualidade e humanização na atenção à saúde. Cadernos da XI Conferência Nacional de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2000.

CORREIA, M. V. C. Que controle social na política de assistência social? Serviço Social & Sociedade, Ano XXIII, 72: 43-60, 2002.

CORREIA, M. V. C. Que Controle Social? Os conselhos de saúde como instrumento. 1a. reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.

CORREIA, M. V. C. A relação estado e sociedade e o controle social: fundamentos para o debate. Serviço Social & Sociedade, Ano XXIV, 77: 22-45, 2004.

CORREIA, M. V. C. Desafios para o Controle Social: subsídios para a capacitação de conselheiros. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.

COUTINHO, C. N. Gramsci e a sociedade civil, 2002. Disponível em: http://www.gramsci.org/. Acesso em: 20 nov. 2003.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere: Maquiavel - notas sobre o Estado e a política. Edição e Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. V.3

IAMAMOTO, M. V. & CARVALHO, R. de. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 6.ed. São Paulo: Cortez/Celats, 1988.

LACERDA, E. (Org.) O SUS e o Controle Social: guia de referência para conselheiros municipais. Brasília: Ministério da Saúde, 1997.

MACHADO, F. de A. Participação social em saúde. Anais da VIII Conferência Nacional de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 1987.

MANNHEIM, K. Sociologia Sistemática: uma introdução ao estudo de sociologia. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1971.

MENDES, E. V. Distrito Sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1994.

VALLA, V. V. (Org.) Participação Popular e os Serviços de Saúde: o controle social como exercício da cidadania. Rio de Janeiro: Pares, 1993.

© 2009 Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Todos os direitos reservados.
Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio.
Av. Brasil - 4365 - Manguinhos - Rio de Janeiro - RJ - CEP 21040-900 Brasil - Tel.: (21) 3865.9797