Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Currículo Integrado

Marise Nogueira Ramos

Santomé (1998) explica que a denominação ‘currículo integrado’ tem sido utilizada como tentativa de contemplar uma compreensão global do conhecimento e de promover maiores parcelas de interdisciplinaridade na sua construção. A integração ressaltaria a unidade que deve existir entre as diferentes disciplinas e formas de conhecimento nas instituições escolares.

A idéia de integração em educação é também tributária da análise de Bernstein (1996) sobre os processos de compartimentação dos saberes, na qual ele introduz os conceitos de classificação e enquadramento. A classificação refere-se ao grau de manutenção de fronteiras entre os conteúdos, enquanto o enquadramento, à força da fronteira entre o que pode e o que não pode ser transmitido numa relação pedagógica. À organização do conhecimento escolar que envolve alto grau de classificação associa-se um currículo que o autor denomina ‘código coleção’; à organização que vise à redução do nível de classificação associa-se um currículo denominado ‘código integrado’.

Segundo Bernstein, a integração coloca as disciplinas e cursos isolados numa perspectiva relacional, de tal modo que o abrandamento dos enquadramentos e das classificações do conhecimento escolar promove maior iniciativa de professores e alunos, maior integração dos saberes escolares com os saberes cotidianos dos alunos, combatendo, assim, a visão hierárquica e dogmática do conhecimento. Em síntese, o autor aposta na possibilidade de os códigos integrados garantirem uma forma de socialização apropriada do conhecimento, capaz de atender às mudanças em curso no mundo do trabalho mediante o desenvolvimento de operações globais. Isso contribuiria para a construção de uma educação mais igualitária, visando à superação de problemas de socialização diante dos sistemas de valores próprios das sociedades industriais avançadas.

Essas análises colocam a necessidade de relacionar o âmbito escolar à prática social concreta. A proposta de ‘currículo integrado’ na perspectiva da formação politécnica e omnilateral dos trabalhadores incorpora essas análises e busca definir as finalidades da educação escolar por referência às necessidades da formação humana. Com isto, defende que as aprendizagens escolares devem possibilitar à classe trabalhadora a compreensão da realidade para além de sua aparência e, assim, o desenvolvimento de condições para transformá-la em benefício das suas necessidades de classe.

Esta proposta integra, ainda, formação geral, técnica e política, tendo o trabalho como princípio educativo. Desse princípio, que se torna eixo epistemológico e ético-político de organização curricular, decorrem os outros dois eixos do ‘currículo integrado’, a saber: a ciência e a cultura. O trabalho é o princípio educativo no sentido ontológico, pelo qual ele é compreendido como práxis humana e a forma pela qual o homem produz sua própria existência na relação com a natureza e com os outros homens. Sob o princípio do trabalho, o processo formativo proporciona a compreensão da historicidade da produção científica e tecnológica, como conhecimentos desenvolvidos e apropriados socialmente para a transformação das condições naturais da vida e a ampliação das capacidades, das potencialidades e dos sentidos humanos.

O sentido histórico do trabalho, que no sistema capitalista se transforma em trabalho assalariado, também traz fundamentos e orienta finalidades da formação, na medida em que expressa as exigências específicas para o processo educativo, visando à participação direta dos membros da sociedade no trabalho socialmente produtivo. Com este sentido, conquanto também organize a base unitária do currículo, fundamenta e justifica a formação específica para o exercício de profissões, entendidas como uma forma contratual socialmente reconhecida do processo de compra e venda da força de trabalho. Como razão da formação específica, o trabalho aqui se configura também como um contexto de formação.

A essa concepção de trabalho associa-se a concepção de ciência: conhecimentos produzidos e legitimados socialmente ao longo da história como resultados de um processo empreendido pela humanidade na busca da compreensão e transformação dos fenômenos naturais e sociais. Nesse sentido, a ciência conforma conceitos e métodos cuja objetividade permite a transmissão para diferentes gerações, ao mesmo tempo em que podem ser questionados e superados historicamente no movimento permanente de construção de novos conhecimentos.

A formação profissional, por sua vez, é um meio pelo qual o conhecimento científico adquire, para o trabalhador, o sentido de força produtiva, traduzindo-se em técnicas e procedimentos, a partir da compreensão dos conceitos científicos e tecnológicos básicos.

Por fim, a concepção de cultura que embasa a síntese entre formação geral e formação específica a compreende como as diferentes formas de criação da sociedade, de tal modo que o conhecimento característico de um tempo histórico e de um grupo social traz a marca das razões, dos problemas e das dúvidas que motivaram o avanço do conhecimento numa sociedade. Esta é a base do historicismo como método (Gramsci, 1991) que ajuda a superar o enciclopedismo – quando conceitos históricos são transformados em dogmas – e o espontaneísmo – forma acrítica de apropriação dos fenômenos que não ultrapassa o senso comum.

No ‘currículo integrado’, conhecimentos de formação geral e específicos para o exercício profissional também se integram. Um conceito específico não é abordado de forma técnica e instrumental, mas visando a compreendê-lo como construção histórico-cultural no processo de desenvolvimento da ciência com finalidades produtivas. Em razão disto, no ‘currículo integrado’ nenhum conhecimento é só geral, posto que estrutura objetivos de produção, nem somente específico, pois nenhum conceito apropriado produtivamente pode ser formulado ou compreendido desarticuladamente das ciências e das linguagens.

O currículo formal exige a seleção e a organização desses conhecimentos em componentes curriculares, sejam eles em forma de disciplinas, módulos, projetos etc., mas a integração pressupõe o reestabelecimento da relação entre os conhecimentos selecionados. Como o currículo não pode compreender a totalidade, a seleção é orientada pela possibilidade de proporcionar a maior aproximação do real, por expressar as relações fundamentais que definem a realidade. Segundo Kosik (1978), cada fato ou conjunto de fatos, na sua essência, reflete toda a realidade com maior ou menor riqueza ou completude. Por esta razão, é possível que um fato deponha mais que um outro na explicação do real. Assim, a possibilidade de conhecer a totalidade a partir das partes é dada pela possibilidade de identificar os fatos ou conjunto de fatos que deponham mais sobre a essência do real; e, ainda, de distinguir o essencial do assessório, assim como o sentido objetivo dos fatos. Isto dá a direção para a definição de componentes curriculares.

O método histórico-dialético define que é a partir do conhecimento na sua forma mais contemporânea que se pode compreender a realidade e a própria ciência na sua historicidade. Os processos de trabalho e as tecnologias correspondem a momentos da evolução das forças materiais de produção e podem ser tomados como um ponto de partida histórico e dialético para o processo pedagógico. Histórico porque o trabalho pedagógico fecundo ocupa-se em evidenciar, juntamente aos conceitos, as razões, os problemas, as necessidades e as dúvidas que constituem o contexto de produção de um conhecimento. A apreensão de conhecimentos na sua forma mais elaborada permite compreender os fundamentos prévios que levaram ao estágio atual de compreensão do fenômeno estudado. Dialético porque a razão de estudar um processo de trabalho não está na sua estrutura formal e procedimental aparente, mas na tentativa de captar os conceitos que o fundamentam e as relações que o constituem. Estes podem estar em conflito ou ser questionados por outros conceitos.

O ‘currículo integrado’ organiza o conhecimento e desenvolve o processo de ensino-aprendizagem de forma que os conceitos sejam apreendidos como sistema de relações de uma totalidade concreta que se pretende explicar/compreender. No trabalho pedagógico, o método de exposição deve restabelecer as relações dinâmicas e dialéticas entre os conceitos, reconstituindo as relações que configuram a totalidade concreta da qual se originaram, de modo que o objeto a ser conhecido revele-se gradativamente em suas peculiaridades próprias (Gadotti, 1995).

A interdisciplinaridade, como método, é a reconstituição da totalidade pela relação entre os conceitos originados a partir de distintos recortes da realidade; isto é, dos diversos campos da ciência representados em disciplinas. Isto tem como objetivo possibilitar a compreensão do significado dos conceitos, das razões e dos métodos pelos quais se pode conhecer o real e apropriá-lo em seu potencial para o ser humano.

Para saber mais

BERNSTEIN, B. A Estruturação do Discurso Pedagógico: classe, código e controle. Petrópolis: Vozes, 1996.

FRIGOTTO. G. A interdisciplinaridade como necessidade e como problema nas ciências sociais. In: JANTSCH, A. P. &

BIANCHETTI, L. (Orgs.) A Interdisciplinaridade: para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995.

FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. &RAMOS, M. (Orgs.) Ensino Médio Integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

GADOTTI, M. Concepção Dialética da História. São Paulo: Cortez, 1995.

GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

KOSIK, K. Dialética do Concreto. Petrópolis: Vozes, 1978.

MARX, K. Introdução. In: MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: s.n., 1977. (Temas de Ciências Humanas)

MÉSZÁROS, I. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

RAMOS, M. N. A Pedagogia das Competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez Editora, 2001.

RAMOS, M. N. O “novo ensino médio” à luz de antigos princípios: trabalho, ciência e cultura. Boletim Técnico do Senac, 29(2): 19- 27, maio-ago., 2003.

SANTOMÉ, J. Globalização e Interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

SAVIANI, D. Sobre a Concepção de Politecnia. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 1989.

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