Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Certificação Profissional

Carmen Sylvia Vidigal Moraes

A reestruturação capitalista das últimas décadas introduziu mudanças que atingiram o conjunto da vida social. As inovações tecnológicas, as novas formas de organização do trabalho e a flexibilização levaram à redefinição das qualificações, das identidades profissionais, individuais e coletivas. Ao mesmo tempo, o aumento persistente do desemprego e do emprego informal, da precarização/informalização do trabalho aprofundaram a exclusão social.

Nessa conjuntura, a educação e a formação profissional constituem algumas das principais medidas destinadas, em um primeiro momento, a combater as desigualdades entre empresas, produzidas pela competitividade econômica, por meio da adaptação dos trabalhadores às mudanças técnicas e às condições de trabalho; e, em momento posterior, ao atendimento de categorias e grupos de trabalhadores ameaçados pela desqualificação profissional e pelo desemprego.

Estratégias de ‘adequação formação-emprego’, defendidas pelas abordagens econômicas neoclássicas, marginalistas das teorias do ‘capital humano’ passam a ser dominantes nas recomendações dos organismos internacionais e nas agendas governamentais,as quais difundem programas de formação que visam garantir ‘empregabilidade’, isto é, possibilitar, a cada um, o acréscimo individual de capital humano para sua adaptação às novas condições de trabalho e/ou para o sucesso da empresa. Nessas circunstâncias, a promoção do desenvolvimento das ‘competências’ no trabalho e na formação, assim como sua certificação, constituem elementos-chave da ‘modernização’ econômica e terão amplas implicações na definição e organização das políticas nacionais de educação e formação, no reconhecimento e certificação das atividades profissionais, na oferta dos serviços de formação.

Como indicam documentos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), até os anos 70 do século XX, a certificação de conhecimentos aparecia associada à formação, isto é, era expedida no final de um processo de ensino sistemático, após o aluno ter superado com êxito as provas e exames de avaliação, possuindo legitimidade em todo o país (Cinterfor/OIT, 2006; Pronko, 2005). Será no decorrer da década de 1990 que a temática da ‘formação ao longo da vida’, substituindo o conceito de ‘educação permanente’ (como direito de todos e obrigação do Estado), será introduzida no debate público por algumas organizações internacionais, como a Organização para a Cooperação e a Economia (OCDE), o Banco Mundial e até a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), abrindo espaço para a ‘certificação de competências’.

A noção de competência, que vem substituir a noção de qualificação, afeita ao ‘antigo’ paradigma taylorista, apesar de imprecisa, converge em suas diferentes versões para o significado de performance, de desempenho (verificável) em situação de trabalho, independente da forma de aquisição dos conhecimentos pelo trabalhador. Em alguns países, como é o caso da Inglaterra, sua adoção significou a passagem para um regime referenciado no mercado e a extinção do modelo fundado sobre a ‘negociação social’, isto é, de todas as instâncias públicas de participação social destinadas à definição das políticas públicas de educação e qualificação profissional, e o fim dos acordos entre empregadores e empregados em matéria de aprendizagem. Na França, segmento expressivo da representação dos trabalhadores deste país vem criticando essa modalidade de validação por tentar destruir o conceito de qualificação, reduzir os diplomas a um conglomerado de conhecimentos elementares, fazendo desaparecer a noção de quadros de classificação construídos coletivamente a partir dos níveis de formação profissional. Os trabalhadores apontam o enfraquecimento dos processos de negociação, o afastamento do Estado e o peso crescente dos empregadores na apreciação e reconhecimento das aquisições, cuja única referência é a prática nos ramos profissionais. Enfim, condenam a ruptura da ligação tradicional entre validação e formação, assim como a quebra das regras juridicamente definidas de correspondência entre o diploma escolar e o título/certificado profissional, medidas que, segundo eles, visam satisfazer exigências da flexibilização econômica (Joubier, 1997; Boudet et al., 1998). Em resumo, esta política de certificação de competências tenderia a produzir um rompimento com o sentido universalista das políticas públicas de formação do trabalhador.

Acompanhando os processos de reconversão produtiva, o discurso da ‘competência’ foi introduzido no Brasil e em alguns países da América Latina pelos empresários e também pelos governos, estimulados pelos organismos multilaterais. O processo de institucionalização da noção de competência em nosso país, que lhe confere caráter oficial, realizou-se principalmente mediante as reformas educacionais promovidas pelo governo Fernando Henrique Cardoso na Educação Básica, Profissional e Superior, e na Classificação Brasileira das Ocupações (CBO). Coerente com a visão predominante naquele período, no final de 2002, o MEC encaminhou para discussão, no Conselho Nacional de Educação (CNE), o documento “Organização de um Sistema Nacional de Certificação Profissional baseado em Competências”, propondo a criação de um Sistema Nacional de Certificação Profissional baseada em Competências. Apesar de originário do MEC, seu propósito maior consistiu em dar cobertura legal às atividades de ‘certificação profissional’ realizadas fora do âmbito do MEC. Com essa perspectiva, propõe separar, e não apenas distinguir, a certificação escolar (de conhecimentos) da ‘certificação profissional’, entendida como certificação da pessoa (desempenho), e é omisso em relação à certificação de conhecimentos para fins de continuidade de estudos (Moraes et al., 2003). Tal documento foi retirado do Conselho Nacional de Educação no começo do governo Lula, quando a temática, em novo encaminhamento, passou a ser debatida com representantes dos segmentos sociais.

É importante mencionar que, desde a década de 1980, o Centro Interamericano de Investigación y Documentación sobre Formación Profesional/Cinterfor/OIT realizou inúmeros estudos sobre certificação ocupacional visando delinear uma política para a América Latina a respeito da matéria. Na década de 1990, a denominação do tema direcionou-se para as chamadas ‘competências laborais’ (Vargas Zúñiga, 2002). A difusão, no comércio internacional, das exigências de normas ISO, como a série ISO 9000 (qualidade) e a ISO 14000 (ambiental), implicou o desenvolvimento de ações no sentido de vincular o reconhecimento/certificação de conhecimentos dos trabalhadores à certificação de produtos e processos de trabalho. No Brasil, no âmbito das políticas de qualidade e produtividade, a Lei Federal n. 9933, de 1999, reformula as atribuições do Conselho Nacional de Metrologia Qualidade Industrial (Conmetro) e do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro), autarquia vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, criado em 1973, autorizando-os a conceder a marca de conformidade a produtos, processos e serviços.

De acordo com o decreto n. 4.630, de 2003, que aprova a estrutura regimental do Inmetro como órgão executivo do Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial/Sinmetro, é sua finalidade “coordenar a certificação compulsória e voluntária de produtos, de processos, de serviços e a certificação voluntária de pessoas” (Anexo I, cap. I, inciso VIII). Este dispositivo delega ao Inmetro a atribuição de realizar o credenciamento de instituições para certificação (voluntária) de pessoal no âmbito das avaliações de qualidade/ conformidade, tendo como base os critérios elaborados por organismo privado, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), o que deu origem a interpretações tendenciosas por parte dos defensores da organização e um sistema privado de certificação profissional, os quais viram, no dispositivo, a oportunidade de constituição de tal sistema.

É possível notar, portanto, que houve, na última década, uma ofensiva do empresariado no sentido de criar um sistema de certificação (de competências) que transferisse a responsabilidade do Estado para o setor privado e excluísse a participação negociada com a representação dos trabalhadores. Como resultado, tais políticas de certificação realizam-se hoje de forma isolada, desvinculadas das políticas de educação profissional e de certificação de escolaridade.

Visando intervir nesse quadro político e social complexo, em consonância com o Plano Plurianual 2004-2007 do Governo Lula, a “política pública de qualificação social e profissional” do MTE propõe criar, no país, um marco nacional das qualificações com o objetivo de regulamentar o mercado de formação e de ‘certificação profissional’ existente. Define a ‘qualificação profissional e social’ como direito dos trabalhadores brasileiros, cuja universalização pressupõe o atendimento dos segmentos considerados mais vulneráveis econômica e socialmente, os que apresentam maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, que têm sido alvo de processos de exclusão e discriminação sociais – como as de gênero e etnia, além das geracionais e de pessoas portadoras de necessidades especiais (Plano Nacional de Qualificação/PNQ/ MTE, 2003 -2004).

O conceito de marco nacional das qualificações, introduzido pela Recomendação 195 da Conferência Internacional do Trabalho da OIT, de 2004, é de uso recente e sua adoção expressa o compromisso da realização de uma política nacional para promover o desenvolvimento, a aplicação e o financiamento de um mecanismo transparente de avaliação, certificação e reconhecimento dos saberes profissionais obtidos por uma pessoa via educação formal ou informal (Cinterfor/ OIT, 2006).

Para suprir a ausência de uma política pública nacional de ‘certificação profissional’ de conhecimentos, que normatize e regule experiências, propostas, programas e projetos de ‘certificação profissional’ vinculados aos diversos ministérios, órgãos federais, entidades e segmentos sociais, o MTE, desde 2003, vem desenvolvendo esforços em conjunto com diversos agentes governamentais e sociais, com vistas a organizar institucionalmente a ‘certificação profissional’ como atribuição do Sistema Público de Emprego e articulado aos Sistemas Nacional de Educação. Para tanto, foi instituída, em 2004, a Comissão Interministerial sobre Qualificação e Educação Profissional, composta pelos Ministérios da Educação, do Trabalho e Emprego, da Saúde, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, do Ministério do Turismo e pelos Conselhos Nacionais de Educação e do Trabalho, sob a coordenação-geral, exercida alternadamente, do Ministério da Educação e do Ministério do Trabalho e Emprego.

A iniciativa nasce, sobretudo, segundo o Termo de Referência para elaboração de instrumento legal de criação do Sistema Nacional de Certificação Profissional (MTE/OIT, 2004),

da preocupação em criar um marco regulatório integrado que valide os processos e certificação existentes, realizados por instituições públicas ou privadas, no âmbito das relações de trabalho, na relação e equivalência com os diferentes níveis de escolarização e das normas de conformidade, buscando dirimir sobreposições de competências e dispersão de atribuições entre diferentes órgãos governamentais.

No âmbito do MTE, a qualificação social e profissional é definida como uma construção social e, portanto, histórica, ou seja, “como relação social construída pela interação dos agentes sociais do trabalho em torno da propriedade, significado e uso do conhecimento” (Lima & Lopes, 2005). Dessa maneira, o conceito ressalta a importância de outros contextos socioculturais para além dos espaços de trabalho, e a natureza individual e coletiva da qualificação profissional. Trata-se de um processo de construção/reconstrução contínua de aquisição de saberes, representações, procedimentos necessários para fazer frente às situações e condições de trabalho, em geral suscetíveis de modificação ao longo do tempo e de sociedade para sociedade. Existe, portanto, no processo de construção da qualificação social e profissional, dimensões de ordem psicocomportamental e sociocultural com recortes de gênero, etnia, classe etc. Há dimensões de racionalidade e subjetividade, elementos de construção de identidades (individuais e coletivas).

O Sistema Nacional de Certificação Profissional (SNCP) concebe a ‘certificação profissional’ como “processo negociado pelas representações sociais e regulado pelo Estado”, por meio do qual se “identifica, avalia e valida conhecimentos, habilidades e aptidões profissionais do(a) trabalhador(a) adquiridos na freqüência a cursos ou atividades educacionais ou na experiência de trabalho”. Ao contrário do programa de certificação do Inmetro, em que os certificados emitidos são exclusivamente profissionais, não existindo correspondência com escolaridade, a certificação proposta pelo MTE é considerada como parte do processo de orientação e formação profissional, e não pode “se opor, sobrepor ou substituir” a formação profissional.

No campo da educação escolar, duas novas medidas do MEC convergem com os objetivos propostos pelo MTE. O decreto n. 5154, de 2004, que revogou o decreto n. 2208, de 1997, resgata as bases unitárias do ensino médio, e, em consonância com reivindicações de entidades de educadores e do movimento popular, dispõe sobre a oferta da formação profissional inicial e continuada (a antiga educação profissional básica) em todos os níveis de escolaridade, por meio de itinerários formativos. Introduz, pela primeira vez, a definição de itinerário formativo, considerado como “o conjunto de etapas que compõem a organização da educação profissional em uma determinada área, possibilitando o aproveitamento contínuo e articulado dos estudos” (art. 3.). Tais regulamentações legais foram complementadas pelo decreto 5.840, de 2006, que institui, no âmbito federal, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com Educação Básica, na modalidade de Educação de Jovens e Adultos/Proeja. Em seu artigo 7, estabelece que as instituições ofertantes poderão “aferir, reconhecer, mediante avaliação individual, conhecimentos e habilidades obtidos em processos formativos extra-escolares”.

Embora esteja prevista no marco nacional de qualificações a elaboração negociada de uma normativa, de um ‘repertório nacional de qualificações’ como base da definição de perfis ocupacionais e de construção de itinerários formativos, isso ainda não foi feito. A elaboração de novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica e de uma nova CBO, bem como a construção do repertório nacional de qualificações, de acordo com as atuais orientações políticas, constituem as providências mais urgentes a serem tomadas, respectivamente, pelo MEC e MTE, para fazer avançar, no país, a realização do ideal de uma política pública de formação e ‘certificação profissional’ democrática e emancipatória.

Para saber mais

BOUDET. A. et al. Rapport e contextualisation: France. In: CEREQ (Orgs.) Dispositif d’ Observation des Innovations dans le Champ de la Certification, de la Validation et de la Reconnaissance des Qualifications. Rapport Intermediaire. Marseille: Ministère de l’Éducation Nationale, de l’Enseignement Supérieur et de la Recherche/Ministère des Affaires Sociales, 1998, p. 37-49.

CINTERFOR/OIT. La Nueva Recomendación 195 de OIT. Montevideo: Cinterfor, 2006.

INMETRO. (s. d.). Guia Prático de Certificação de Pessoas. Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade. Comissão Técnica de Pessoal.

JOUBIER, J.-M. Formation professionnelle: ouvrir largement le débat. Analyses & documents economiques. Cahiers du Centre Conféderal d’Études Économiques et Sociales de la CGT, 71: 4-10, mars, 1997.

LIMA, A. & LOPES, F. Diálogo Social e Qualificação Profissional: experiências e propostas. Brasília: TEM/SSPE/DEQ, 2005. (v.1. – Construindo diálogos sociais)

MORAES, C. S. V. & LOPES NETO, S. Educação, formação profissional e certificação de conhecimentos: considerações sobre uma política pública de certificação profissional. In: Educação e Sociedade, 26(93): 1435-1469, set.-dez., 2005.

MORAES, C. S. V. et al. Considerações sobre a organização de uma política nacional de certificação profissional. In: Para discutir Certificação (Texto Subsídio ao Seminário de Educação Profissional MEC/Semtec/ Proep, Brasília, 16 a 18 de junho de 2003)

PRONKO, M. Recomendación 195 de OIT: questiones históricas y actuales. Montevideo: Cinterfor/OIT, 2005.

RAINBIRD, H. La construction sociale de la qualification. In: JOBERT, A.; MARRY, C. & TANGUY, L. (Orgs.) Éducation et Travail en Grande-Bretagne, Allemagne et Italie. Paris: Armand Colin, 1995.

VARGAS ZÚÑIGA, F. Clasificaciones de ocupaciones, competencias y formación profesional: ¿paralelismo o convergencia? (Documento de discussão no Seminário Internacional “Mercado de Trabalho e Dinâmica Ocupacional”, organizado pelo Senai-DN em Belo Horizonte/MG, junho de 2002). Disponível em: http://www.cinterfor.org.uy/public/spanish/region/ampro/cinterfor/publ/sala/vargas/clasific/index.htm .

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