Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



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Itinerários Formativos

Marise Nogueira Ramos

A expressão ‘itinerário formativo’, no nível macro, refere-se à estrutura de formação escolar de cada país, com diferenças marcadas, nacionalmente, a partir da história do sistema escolar, do modo como se organizaram os sistemas de formação profissional ou do modo de acesso à profissão. As bases organizativas dos currículos, se contínuas ou modulares, definirão, em parte, os tipos de ‘itinerários formativos’ que podem ser seguidos pelos estudantes, em coerência com a organização e as normas dos sistemas de ensino e de formação profissional. 

O princípio da continuidade é próprio do currículo. Ele significa que a estruturação dos sistemas de ensino e a programação das atividades educacionais devem garantir o progressivo avanço do aluno no seu processo de aprendizagem e escolarização, evitando- se interrupções e repetições de conteúdos e de experiências. Significa também permitir que não haja divisões que impeçam o educando de dar continuidade a seus estudos, a cada etapa vencida, não comprometendo, assim, as perspectivas de uma formação permanente e ao longo da vida. Nesse sentido, a organização curricular, quer seja em séries, quer em ciclos ou módulos, pode e deve preservar esse princípio.

Módulos são definidos como unidades temáticas autônomas, com caráter de terminalidade, sancionáveis por exames e certificados, podendo ser acumuladas para fins de obtenção de diplomas. Podem ser previstas ou atender demandas emergentes, abranger uma única ou mais disciplinas, contar ou não com pré-requisitos. Tal organização curricular permite ao aluno imprimir ritmo e direção ao seu percurso formativo, dando-lhe alguma independência e flexibilidade para retardar, acelerar, interromper e retomar seus estudos; atender a demandas individuais e a novas exigências profissionais, facilitando a integração daqueles com defasagens e dificuldades de aprendizagem. Entretanto, o grau de liberdade dos alunos para influir nesse processo é um assunto para negociações. Sobretudo, é preciso garantir que a estruturação do currículo siga critérios psicopedagógicos e que leve em conta os graus de complexidade, a seqüenciação, a complementaridade dos conteúdos e a dinâmica dos processos de assimilação e aprendizagem, considerando, principalmente, os históricos heterogêneos dos alunos, suas experiências formativas anteriores e planos futuros para sua trajetória de estudos (Machado, 2005).

A principal discussão que se trava sobre esta questão está ligada ao confronto entre os sistemas de formação mais generalistas e os sistemas profissionais que formam qualificações a serem imediatamente utilizadas em certos postos de trabalho (Crivellari, 2005). A relação linear e imediata entre a educação, especialmente a profissional, e as necessidades do mercado de trabalho, foi o principal fundamento da economia da educação dos anos 70, protagonizada pela Teoria do Capital Humano e das medidas designadas como man power approach. Críticas contundentes e fundamentadas a essa abordagem foram realizadas tanto pelo seu aspecto ideológico quanto por sua insuficiência empírica. Não obstante, sob a crise contemporânea do emprego e das qualificações, essa abordagem muitas vezes é resgatada para justificar políticas de formação e de requalificação mais afinadas com as configurações ocupacionais do mercado de trabalho.

A discussão sobre os ‘itinerários formativos’ não escapa a essa abordagem. A lógica de organização dos itinerários formativos tem dois fundamentos. O primeiro é a previsão de que as qualificações obtidas por meio de cursos, etapas ou módulos correspondentes a ocupações de uma família ocupacional ou área profissional possam redundar numa titulação de nível superior a essas qualificações. O segundo considera que tais cursos, etapas ou módulos, nos seus respectivos níveis, correspondam a ocupações existentes no mercado de trabalho. Com isto, as experiências formativas dos trabalhadores teriam um potencial de aproveitamento, tanto para o trabalhador quanto para o empregador, em duas direções: a) verticalmente, porque um conjunto de qualificações de níveis menores pode levar a titulações de níveis superiores; b) horizontalmente, porque a cada qualificação corresponderia uma ocupação reconhecida nas classificações ocupacionais. 

Se a perspectiva de organização de ‘itinerários formativos’ ascendentes, em que as formações intermediárias sejam tanto possibilitadas pela oferta de cursos quanto validadas por um sistema de certificação, constituiu-se numa oportunidade e num direito do trabalhador, não se pode cair, por outro lado, no pressuposto de regular a oferta formativa de acordo com os postos de trabalho existentes, ao estilo do citado modelo de man power approach. Isto voltaria a fragmentar e a limitar a formação dos trabalhadores aos requisitos econômicos, técnicos e procedimentais da oferta de postos de trabalho, retirando-se, mais uma vez, o trabalhador de sua condição de sujeito para objetivá-lo a fator descartável da produção.

A maneira de enfrentar essa questão relaciona-se com a concepção de qualificação que embasa os parâmetros definidores dos títulos profissionais e dos ‘itinerários formativos’. Esses parâmetros podem ser restritos às ocupações e características dos postos de trabalho, ou configurados com base numa compreensão da qualificação como unidade integrada de conhecimentos científicos e técnicos que possibilitem ao trabalhador atuar em processos produtivos complexos, com suas variações tecnológicas e procedimentais, associados a uma formação política que permita uma inserção profissional não subordinada e alienada na divisão social do trabalho.

A realidade concreta dos sujeitos adultos trabalhadores que retornam a processos formativos sejam de educação básica, sejam de qualificação profissional, não pode ser ignorada. De fato, esse retorno se dá, na maioria das vezes, de forma fragmentada e sazonal, intercalando-se períodos formais de estudo com outros somente de trabalho, períodos de emprego com os de desemprego. Essa realidade, que não pode ser avaliada sob princípios morais, deve ser compreendida como um produto da história de exclusão desses sujeitos. É preciso, então, que as políticas de educação dos trabalhadores não ignorem essa realidade e, ao contrário, proporcionem meios para que nenhuma dessas experiências seja perdida. Se os ‘itinerários formativos’ são estruturados de modo articulado, com possibilidades de ingresso, conclusão e retorno a etapas formativas, mediante critérios de reconhecimento e validação de saberes, os adultos devem ser incentivados a construir sua formação enfrentando as adversidades das condições concretas pelas quais produz sua existência. Para isto, entretanto, são necessárias políticas públicas que integrem formação, certificação, orientação e inserção profissional.

É nesse contexto que é preciso considerar a importância da organização de um projeto de educação integral de trabalhadores com base em ‘itinerários formativos’, referentes às etapas que podem ser seguidas por um indivíduo no seu processo de formação profissional. Do ponto de vista das políticas de emprego, a identificação das possíveis trajetórias ocupacionais e a construção dos ‘itinerários formativos’, além de permitir melhor correspondência entre os requisitos demandados nas atividades de trabalho e os perfis construídos no processo educativo, podem possibilitar aos trabalhadores adequar, de acordo com suas possibilidades e condições, o ‘itinerário formativo’ ao itinerário profissional (Moraes & Neto, 2005).

A coerência e organicidade interna perseguidas no desenvolvimento da educação integral dos trabalhadores mediante ‘itinerários formativos’ se opõem à justaposição de cursos específicos já existentes, transformados em módulos de grandes cursos e à oferta fragmentada e pontual de cursos básicos de qualificação profissional de curta duração. Ao contrário, um plano de formação continuada deve-se organizar em etapas seqüenciais, progressivas e flexíveis, estruturadas de forma a abarcar vários níveis de conhecimentos – dos básicos e técnicos gerais de uma área até os profissionais mais específicos, incluindo-se aí os saberes mais abrangentes, novos conhecimentos e conceitos relevantes na atualidade, que permitam visão ampla do processo produtivo e dos avanços e conhecimentos culturais, científicos e tecnológicos e que possibilitem a inserção/intervenção na sociedade contemporânea (Moraes & Neto, 2005). 

Não se pode ignorar a existência de uma contradição de fundo na configuração de ‘itinerários formativos’. A organização da educação profissional em ‘itinerários formativos’ flexíveis seria plenamente adequada para uma população que tenha a educação básica universalizada. Nesses termos, a educação de adultos e a educação profissional se fundiriam como política de educação continuada. Nem a primeira seria uma modalidade da educação básica voltada para aqueles que a ela não tiveram acesso em idade apropriada, como é o caso do Brasil, nem a segunda poderia ter uma finalidade compensatória em relação à falta da educação básica. 

Não obstante, é exatamente em uma sociedade em que isto não acontece, que mais se evidencia a necessidade de a educação profissional, integrada à educação básica, ser organizada em ‘itinerários formativos’ para se viabilizar a educação de adultos trabalhadores por reconhecimento e superação dialética de seus saberes construídos em tantas outras experiências diferentes da escolar. Reconhecendo- se essa contradição como própria de uma realidade de exclusão, admiti-la só faz sentido mediante o compromisso ético-político com a travessia em direção a um tipo de sociedade não excludente. Ignorar essa necessidade levaria a ignorar os próprios adultos trabalhadores como sujeitos de conhecimento ou a retificar as alternativas até agora existentes (cursos supletivos e cursos básicos de qualificação profissional de curta duração) como as únicas possíveis. Seria, então, cristalizar a exclusão. 

Por este compromisso, é preciso, ainda, da perspectiva político-pedagógica, atentar para que a condição autônoma conferida aos cursos, etapas e módulos não acabe fragmentando o conhecimento em compartimentos que simplificam a formação profissional, transformando o conhecimento em mero domínio de um conjunto de técnicas isoladas, de caráter unicamente instrumental, ao invés de se constituir em estratégia de organização da educação integral dos trabalhadores de forma continuamente ascendente, na construção e validação de seus saberes. 

Para seguir flexivelmente um ‘itinerário formativo’, o trabalhador pode cursar diferentes cursos, etapas ou módulos que culminem numa qualificação ou habilitação profissional em diferentes instituições ou programas. Neste caso, há que se garantir a organicidade da ação dessas próprias instituições e programas numa política integrada, bem como um sistema de certificação democrático, construído sob bases permanentes de participação e níveis crescentes de autonomia de decisão dos trabalhadores. Afinal, poder-se-ia perguntar: que responsabilidade teria cada uma das instituições com a totalidade da formação dos trabalhadores e com o diagnóstico, a avaliação e o reconhecimento de seus conhecimentos? Essas são questões que não podem ser ignoradas; ao contrário, devem ser analisadas e respondidas à luz da problemática social, educacional e existencial que abordamos neste momento.   

Para saber mais

CRIVELLARI, H. Itinerário Formativo Profissional. São Paulo: IIEP, 2005 (Mimeo.) 

IIEP. Currículo em Bases Modulares. São Paulo: IIEP, 2005 (Mimeo.) 

IIEP. Itinerário Formativo: expectativas dos alunos e realidade. São Paulo: IIEP, s.d. (Mimeo.) 

MACHADO, L. Currículo em Bases Contínuas. São Paulo: IIEP, 2005 (Mimeo.) 

MORAES, C. & NETO, S. A Certificação de Conhecimentos e Saberes como Parte do Direito à Educação e Formação. São Paulo, 2005 (Mimeo.)

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