Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



VERBETES




Integralidade em Saúde

Roseni Pinheiro

Integralidade como princípio do direito à saúde

Aintegralidade’ é um dos princípios doutrinários da política do Estado brasileiro para a saúde – o Sistema Único de Saúde (SUS) –, que se destina a conjugar as ações direcionadas à materialização da saúde como direito e como serviço. Suas origens remontam à própria história do Movimento de Reforma Sanitária brasileira, que, durante as décadas de 1970 e 1980, abarcou diferentes movimentos de luta por melhores condições de vida, de trabalho na saúde e pela formulação de políticas específicas de atenção aos usuários.

Mattos (2005a) sistematizou três conjuntos de sentidos sobre a ‘integralidade’ que têm por base a gênese desses movimentos, quais sejam: a ‘integralidade’ como traço da boa medicina, a ‘integralidade’ como modo de organizar as práticas e a ‘integralidade’ como respostas governamentais a problemas específicos de saúde.

No primeiro conjunto de sentidos, a ‘integralidade’, um valor a ser sustentado, um traço de uma boa medicina, consistiria em uma resposta ao sofrimento do paciente que procura o serviço de saúde e em um cuidado para que essa resposta não seja a redução ao aparelho ou sistema biológico deste, pois tal redução cria silenciamentos. A ‘integralidade’ está presente no encontro, na conversa em que a atitude do médico busca prudentemente reconhecer, para além das demandas explícitas, as necessidades dos cidadãos no que diz respeito à sua saúde. A ‘integralidade’ está presente também na preocupação desse profissional com o uso das técnicas de prevenção, tentando não expandir o consumo de bens e serviços de saúde, nem dirigir a regulação dos corpos.

No segundo conjunto de sentidos, a ‘integralidade’, como modo de organizar as práticas, exigiria uma certa ‘horizontalização’ dos programas anteriormente verticais, desenhados pelo Ministério da Saúde, superando a fragmentação das atividades no interior das unidades de saúde. A necessidade de articulação entre uma demanda programada e uma demanda espontânea aproveita as oportunidades geradas por esta para a aplicação de protocolos de diagnóstico e identificação de situações de risco para a saúde, assim como o desenvolvimento de conjuntos de atividades coletivas junto à comunidade.

Por último, há o conjunto de sentidos sobre a ‘integralidade’ e as políticas especialmente desenhadas para dar respostas a um determinado problema de saúde ou aos problemas de saúde que afligem certo grupo populacional. 

Com a institucionalização do SUS, mediante a lei 8.080-90, deflagrou-se um processo marcado por mudanças jurídicas, legais e institucionais nunca antes observadas na história das políticas de saúde do Brasil. Com a descentralização, novos atores incorporaram- se ao cenário nacional, e esse fato, junto à universalidade do acesso aos serviços de saúde, possibilitou o aparecimento de ricas e diferentes experiências locais centradas na ‘integralidade’. 

A ‘integralidade’ como definição legal e institucional é concebida como um conjunto articulado de ações e serviços de saúde, preventivos e curativos, individuais e coletivos, em cada caso, nos níveis de complexidade do sistema. Ao ser constituída como ato em saúde nas vivências cotidianas dos sujeitos nos serviços de saúde, tem germinado experiências que produzem transformações na vida das pessoas, cujas práticas eficazes de cuidado em saúde superam os modelos idealizados para sua realização. 

Milhares de gestores, profissionais e usuários do SUS, na busca pela melhoria de atenção à saúde, vêm apresentando evidências práticas do inconformismo e da necessidade de revisão das idéias e concepções sobre saúde, em particular dos modelos tecno-assistenciais. A busca pela implantação de políticas públicas mais justas no país por esses atores tem-se destacado pela sua ‘ação criativa’, como sujeitos em ação que, na luta pela construção de um sistema de saúde universal, democrático, acessível e de qualidade, vêm possibilitando o surgimento de inúmeras inovações institucionais, seja na organização dos serviços de saúde, seja na incorporação e/ou desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais de atenção aos usuários do SUS.

Essas experiências, fruto de iniciativas municipais e estaduais, têm implicado o repensar dos aspectos mais importantes do processo de trabalho, da gestão, do planejamento e, sobretudo, da construção de novos saberes e práticas em saúde, resultando em transformações no cotidiano das pessoas que buscam e dos profissionais e gestores que oferecem cuidado de saúde. 

Entende-se que a experiência não é apreendida para ser repetida simplesmente e passivamente transmitida, ela acontece para migrar, recriar, potencializar outras vivências, outras diferenças. Há uma constante negociação para que ela exista e não se isole. Aprender com a experiência é, sobretudo, fazer daquilo que não somos, mas poderíamos ser, parte integrante de nosso mundo. A experiência é mais vidente que evidente, criadora que reprodutora. 

É a partir da experiência que temos as bases de uma ética particular e concreta, em que a obra e vida se nutrem sem se reduzirem uma a outra. A partir dela a ética seria o desdobramento da politização dos sujeitos em suas lutas e conquistas no presente, no mundo que vivemos.

As experiências de ‘integralidade’ identificam que conceitos, definições e noções vêm sendo repensados, reconstruídos, formando um verdadeiro amálgama dos demais princípios norteadores do SUS. Pensar o cuidado em saúde como uma tecnologia, por exemplo, e não somente como objeto de práticas de saúde realizadas em determinado nível de atenção, e sim nos demais níveis de atenção especializada, nos quais a complexidade não seja dada pelo grau de hierarquização dos espaços e procedimentos por ela definidos, mas pelos recursos cognitivos, materiais e financeiros que reúnem.

Na experiência a ‘integralidade’ ganha o sentido mais ampliado de sua definição legal, ou seja, pode ser concebida como uma ação social que resulta da interação democrática entre os atores no cotidiano de suas práticas, na oferta do cuidado de saúde, nos diferentes níveis de atenção do sistema. A ‘integralidade’ das ações consiste na estratégia concreta de um fazer coletivo e realizado por indivíduos em defesa da vida. 

Integralidade como meio de concretizar o direito à saúde

A ‘integralidade’ como eixo prioritário de uma política de saúde, ou seja como meio de concretizar a saúde como uma questão de cidadania, significa compreender sua operacionalização a partir de dois movimentos recíprocos a serem desenvolvidos pelos sujeitos implicados nos processos organizativos em saúde: a superação de obstáculos e a implantação de inovações no cotidiano dos serviços de saúde, nas relações entre os níveis de gestão do SUS e nas relações destes com a sociedade.

Esses dois movimentos consistem nos principais nexos constituintes da ‘integralidade’ como meio de concretizar o direito à saúde da população, do qual emergem um conjunto de questões consideradas relevantes para sua apropriação conceitual e prática no campo da saúde coletiva. E essas questões estão diretamente relacionadas, muitas vezes de forma contraditória, com as políticas econômicas e sociais adotadas no país nas últimas décadas – políticas excludentes que concentram riqueza e fragilizam a vida social, aumentando de forma exponencial a demanda da população brasileira por ações e serviços públicos de saúde.

Se, de um lado, a forma de organização de nossa sociedade, baseada no capitalismo, tem favorecido inúmeros avanços nas relações de produção, sobretudo no que diz respeito à crescente sofisticação e progresso de tecnologias em diferentes campos, inclusive da saúde, o mesmo não se pode dizer das relações sociais. Estas revelam o sofrimento difuso e crescente de pessoas que são cotidianamente submetidas a padrões de profundas desigualdades, expressos pelo acirramento do individualismo, pelo estímulo à competitividade desenfreada e pela discriminação negativa, com desrespeito às questões de gênero, raça, etnia e idade.

Na contramão desse processo, temos a Constituição Federal, que, ao criar e estabelecer as diretrizes para o SUS, oferece os elementos básicos para o reordenamento da lógica de organização das ações e serviços de saúde brasileiros, de modo a garantir ao conjunto dos cidadãos as ações necessárias à melhoria das condições de vida da população.

Surgem experiências inovadoras e exitosas, em diferentes estados e municípios do país, cujos contextos nem sempre são favoráveis. Contudo, nessas experiências, podemos identificar os atributos habilitadores da ‘integralidade’, na medida em que revelam o campo das práticas como espaço privilegiado para o surgimento de inúmeras inovações institucionais na organização da atenção à saúde. Inovações que são construídas cotidianamente por permanentes interações democráticas dos sujeitos nos e entre os serviços de saúde, sempre pautadas por valores emancipatórios fundamentados na garantia da autonomia, no exercício da solidariedade e no reconhecimento da liberdade de escolha do cuidado e da saúde que se deseja obter.

Daí nasce o entendimento de sujeitos coletivos “resultantes da intersubjetividade que somos”, vivendo em espaços públicos, ainda carentes de um agir político compartilhado e sociabilizado – os serviços de saúde.

Experiências de organização da atenção à saúde efetivam a construção do SUS também no cotidiano dos usuários e trabalhadores, oferecendo diferentes padrões de eqüidade e ‘integralidade’ forjados por práticas de gestão, de cuidados e de controle social. A saúde, como direito de cidadania e defesa da vida, exige análises compreensivas, a fim de identificá-la como uma categoria da prática portadora de padrões móveis e progressivos, e o sistema de saúde, sua organização e o conjunto de práticas no seu interior devem ter a capacidade de acompanhá-los e, mesmo, construir sempre novas possibilidades, em um movimento renovado de ‘integralidade’ com eqüidade. Torna-se necessário exercer, no limite, todas as combinações possíveis de forças técnicas, políticas e administrativas existentes em cada realidade local – com a necessidade tal como expressa pelos usuários e como é percebida por meio de indicadores que a razão técnica analisa para o planejamento, com a gerência dos serviços e com as práticas dos trabalhadores – em arranjos dinâmicos que, a partir de cada conquista realizada, pressionem e organizem as condições para novos avanços.

Para entendermos a ‘integralidade’ como meio para concretizar o direito à saúde é importante atentar para as três dimensões que a constituem: a organização dos serviços, os conhecimentos e práticas de trabalhadores de saúde e as políticas governamentais com participação da população.

Integralidade como fim na produção da cidadania do cuidado

A ‘integralidade’ como fim na produção de uma cidadania do cuidado refere-se ao ato de cuidar integral que tem as práticas de saúde como eixos políticos-organizativos, formas de construir inovações e novas tecnologias de atenção aos usuários no SUS.

A ‘integralidade’ como fim na produção de uma cidadania do cuidado se dá pelo modo de atuar democrático, do saber fazer integrado, em um cuidar que é mais alicerçado numa relação de compromisso ético-político de sinceridade, responsabilidade e confiança entre sujeitos, reais, concretos e portadores de projetos de felicidade.

Entende-se o sujeito como ser real, que produz sua história e é responsável pelo seu devir. Respeita-se o saber das pessoas (saber particular e diferenciado), esses saberes históricos que foram silenciados e desqualificados, que representam uma atitude de respeito que possa expressar compromisso ético nas relações gestores/profissionais/ usuários.

Desta forma, ‘integralidade’ existe em ato e pode ser demandada na organização de serviços e na renovação das práticas de saúde, sendo reconhecida nas práticas que valorizam o cuidado e que têm em suas concepções a idéia-força de considerar o usuário como sujeito a ser atendido e respeitado em suas demandas e necessidades. Essa idéia-força constitui o cerne da cidadania do cuidado.

A ‘integralidade’ ganha visibilidade quando se atinge a resolubilidade da equipe e dos serviços, por meio de discussões permanentes, capacitação, utilização de protocolos e reorganização dos serviços. Como exemplo, tem-se o acolhimento/usuário centrado e a democratização da gestão do cuidado pela participação dos usuários nas decisões sobre a saúde que se deseja obter. 

Nesse sentido, é preciso reconhecer nas estratégias de melhoria de acesso e desenvolvimento de práticas integrais, como o acolhimento, o vínculo e a responsabilização. Franco, Bueno e Merhy (1999) destacam, historicamente centrados na oferta e no profissional médico, um modelo centrado no usuário.

O acolhimento é assim concebido como dispositivo para interrogar processos intercessores que constroem relações nas práticas de saúde, buscando a produção da responsabilização clínica e sanitária e a intervenção resolutiva, reconhecendo que, sem acolher e vincular, não há produção dessa responsabilização.

Merhy (1997) propõe refletir como têm sido nossas práticas nos diferentes momentos de relação com I os usuários. O autor afirma que uma das traduções de acolhimento é a relação humanizada, acolhedora, que os trabalhadores e o serviço, como um todo, têm de estabelecer com os diferentes tipos de usuários. Em nossa busca prévia pelos conceitos atribuídos aos termos acolhimento e vínculo, recorremos a alguns dicionários de língua portuguesa, a fim de verificar concordância, além de observar o nexo lexical. 

No Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, o termo acolhimento está relacionado ao “ato ou efeito de acolher; recepção, atenção, consideração, refúgio, abrigo, agasalho”. E acolher significa: “dar acolhida ou agasalho a; hospedar, receber; atender; dar crédito a; dar ouvidos a; admitir, aceitar; tomar em consideração; atender a”. Já vínculo é “tudo o que ata, liga ou aperta; ligação moral; gravame, ônus, restrições; relação, subordinação; nexo, sentido”.

No Dicionário Houaiss, o termo acolhimento não existe, porém acolher significa “oferecer ou obter refúgio, proteção ou conforto físico. Ter ou receber (alguém) junto a si. Receber, admitir, aceitar, dar crédito, levar em consideração”. Já vínculo é definido como “aquilo que ata, liga ou aperta: que estabelece um relacionamento lógico ou de dependência, que impõe uma restrição ou condição”. É interessante notar que os sentidos atribuídos às palavras não se correlacionam diretamente às questões de saúde, mas podemos identificar alguns de seus significados, como: “atenção, consideração, abrigo, receber, atender, dar crédito a, dar ouvidos a, admitir, aceitar, tomar em consideração, oferecer refúgio, proteção ou conforto físico, ter ou receber alguém junto a si”, atributos de atenção integral à saúde, enfim, da ‘integralidade’. 

Os valores implícitos nessas palavras nos permitem realizar diferentes aproximações com as distintas produções sobre ‘integralidade’ no cuidado, que se refere sobretudo, na definição de responsabilidades entre serviços e população, à humanização das práticas da saúde, ao estabelecimento de um vínculo entre profissionais de saúde e a população, ao estímulo à organização da comunidade para o exercício do controle social e ao reconhecimento da saúde como direito de cidadania.

A construção da ‘integralidade’ como fim na produção da cidadania do cuidado, implica, necessariamente, a disponibilidade em trabalhar a partir de um plano aberto de possíveis, aspecto que torna essa categoria tão particularmente polissêmica e polifônica. Tal característica, ao contrário de indicar uma limitação ou negatividade, é antes o que nos faz tomar a ‘integralidade’ como um campo de disputa política e produção de real social menos determinado pelas configurações institucionais e normativas e, portanto, especialmente constituído e materializado através da textura conflituosa dos encontros de diversos sujeitos e instituições.

A ‘integralidade’ é assim concebida como uma construção coletiva, que ganha forma e expressão no espaço de encontro dos diferentes sujeitos implicados na produção do cuidado em saúde.   

Para saber mais

FRANCO, T. B.; BUENO, W. S. &  MERHY, E. E. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: Betim, Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 2(15): 345-353, 1999. 

MATTOS, R. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R. (Orgs.) Os Sentidos da Integralidade na Atenção e no Cuidado em Saúde. 4.ed. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/Uerj/Abrasco, 2005a. 

MERHY, E. E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: MERHY, E. E. &  ONOCKO, R. (Orgs.) Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. 

PINHEIRO, R. & MATTOS, R. Construção da Integralidade: cotidiano, saberes, práticas em saúde. 3.ed. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/ Uerj/Abrasco, 2004. 

PINHEIRO, R. & MATTOS, R. Os Sentidos da Integralidade na Atenção e no Cuidado em Saúde. 4.ed. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/ Uerj/Abrasco, 2005a. 

PINHEIRO, R. & MATTOS, R. Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/Uerj/Abrasco, 2005b. 

PINHEIRO, R. & MATTOS, R. Construção Social da Demanda: direito à saúde, trabalho em equipe e participação em espaços públicos. 1.ed. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/Uerj/ Abrasco, 2005c.

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