Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Tecnologia

Gaudêncio Frigotto

Mais do que tratar da compreensão etimológica ou do senso comum do termo ‘tecnologia’, torna-se crucial, no atual contexto histórico do capitalismo, entendê-la como uma prática social cujo sentido e significado econômico, político, social, cultural e educacional se definem dentro das relações de poder entre as classes sociais. Isto nos permite compreender porque a promessa iluminista do poder da ciência, técnica e ‘tecnologia’ – para libertar o gênero humano da fome, do sofrimento e da miséria – não se cumpriu para grande parte da humanidade e, no mesmo sentido, nos permite compreender o caráter mistificador e falso do determinismo tecnológico tão em voga atualmente na propalada sociedade globalizada e do conhecimento. Da mesma forma, entender a ‘tecnologia’ como uma prática social nos permite, também, não cair no sentido oposto mediante uma visão de pura negatividade da ‘tecnologia’ por ter-se tornado, nas atuais condições do capitalismo, cada vez mais privatizada pelo capital e, conseqüentemente, mais excludente e destrutiva.  

Vamos tratar, inicialmente, das diferentes acepções que assume o termo ‘tecnologia’ e a não necessária linearidade entre ciência, técnica e ‘tecnologia’. Em seguida, abordaremos a dupla dimensão da ‘tecnologia’: sua dominante negatividade dentro do capitalismo hoje existente e sua virtualidade se liberada de sua concepção e uso como propriedade do capital.  

Numa extensa obra sobre o conceito de ‘tecnologia’ o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (2005) nos elucida a complexidade do tema e o desafio de apreender as diferentes mediações e significados. Destaca, este autor, quatro sentidos mais usuais do conceito de ‘tecnologia’. O primeiro e mais geral é seu sentido etimológico: ‘tecnologia’ como o ‘logos’ ou tratado da técnica. Estariam englobados, nesta acepção, “a teoria, a ciência, a discussão da técnica, abrangidas nesta última acepção as artes, as habilidades do fazer, as profissões e, generalizadamente, os modos de produzir alguma coisa” (Pinto, 2005, p. 2219). O segundo sentido de ‘tecnologia’ é tomado, no senso comum e no linguajar corrente, como sinônimo de técnica ou de know-how. O terceiro sentido, que também aparece freqüente, relaciona-se ao ‘conjunto de técnicas de que dispõe uma sociedade’. Refere-se mais especificamente ao grau de desenvolvimento das forças produtivas de uma determinada sociedade. Por fim, um quarto sentido, ligado a este último, que é o de ‘tecnologia’ como ‘ideologia da técnica’. 

Estes diferentes sentidos tendem, em nossa cultura, a serem tomados de forma fragmentária e linear. Assim, passa-se a idéia de que a ciência se constituiria como um conhecimento puramente racional de onde emanaria o saber tecnológico, e este, como explicita a primeira acepção anteriormente exposta, se constituiria na epistemologia das diferentes técnicas, estas mais ligadas ao fazer humano prático. Tal linearidade, como mostra Carlos Paris, partindo das raízes biológicas da técnica, não procede. Pelo contrário, há entre ciência, técnica e ‘tecnologia’ uma relação complexa, uma unidade do diverso. Anaxágoras já nos trazia esta perspectiva dialética quando afirmou: “somos inteligentes porque temos mãos”. Ou seja, o “homo faber não só vai dilatando o âmbito e a perfeição de sua técnica, mas iluminando o homo sapiens” (Paris, 2002, p. 104).

Seguindo o fio condutor traçado por Marx desde os Manuscritos Econômicos e Filosóficos nos quais indica que “o homem nasce de sua própria atividade vital, objeto de sua vontade e de sua consciência” (Marx, 1972, p. 111), tendo, na práxis, a categoria da unidade dialética entre ação e pensamento e teoria e atividade prática, a análise de Paris nos conduz a uma síntese, na qual saber técnico, tecnológico e científico, em suas especificidades, relacionam-se e fecundam-se dialeticamente. 

Deste modo, “os instrumentos adquirem uma nova função a serviço não da ação, mas do conhecimento, da dilatação do âmbito de nossos sentidos e de uma maior precisão” (Paris, 2002, p. 2001). “(...) o conhecimento fundamenta as possibilidades da técnica, e esta, por sua vez, leva ao conhecimento humano conceitos, experiências e materiais, como os aparatos científicos que contribuem para o desenvol-vimento do saber” (2002, p. 222). 

A não linearidade não elide a existência de especificidade entre as atividades humanas. Assim, pode-se estabelecer uma clara distinção entre inovações técnicas e tecnológica.

As primeiras pressupõem um aperfeiçoamento numa linha estabelecida de energia e de materiais – como ilustraria o desenvolvimento da navegação à vela; as segundas implicam saltos qualitativos, pela introdução de recursos energéticos e materiais novos – assim na arte de navegar, o aparecimento dos navios a vapor e depois os movidos por combustíveis fósseis e por energia nuclear. (Paris, 2002, p. 119) 

Tomando a ‘tecnologia’ como uma relação e prática social e tendo como horizonte que até o presente, como assinalava Marx em sua obra, a humanidade vive sua pré-história humana marcada pela desigualdade de classes, impõe-se uma dupla superação: o fetiche do determinismo tecnológico e da pura negatividade da ‘tecnologia’ sob o capitalismo. 

O fetiche do determinismo tecnológico consiste exatamente no fato de tomar-se a ‘tecnologia’ como força autônoma das relações sociais, das relações, portanto, de poder e de classe. A forma mais apologética deste fetiche aparece, atualmente, sob as noções de ‘sociedade pós-industrial’,‘sociedade do conhecimento’ e ‘era tecnológica’ que expressam a tese de que a ciência, a técnica e as ‘novas tecnologias’ nos conduziram ao fim do proletariado e a emergência do ‘cognitariado’, e, conseqüentemente, à superação da sociedade de classes sem acabar com o sistema capital, mas, pelo contrário, tornando-o um sistema eterno. 

Como sinaliza Carlos Paris, a manipulação ideológica do avanço tecnológico pretende nos apresentar a imagem de um mundo em que os grandes problemas estão resolvidos, e, para gozar a vida, o cidadão só precisa apertar diversos botões ou manejar objetos de apoio (Paris, 2002, p. 175). Mas, como prossegue o autor, na verdade, se trata de uma epiderme embelezada que encobre uma imensa maioria de seres humanos que sequer conseguem satisfazer suas necessidades elementares. Esta manipulação ideológica, por outro lado, passa a idéia que o desenvolvimento dos países dependentes e subdesenvolvidos é mera questão de comprar dos países centrais a ‘tecnologia’ produzida ou desenvolver capital humano (Landes, 1969; Altvater, 1995; Arrighi, 1998). 

Todavia, como observa Marx, “a máquina, triunfo do ser humano sobre as forças naturais, converte-se, nas mãos dos capitalistas, em instrumento de servidão de seres humanos a estas mesmas forças”; “(...); a máquina, meio infalível para encurtar o trabalho cotidiano, o prolonga, nas mãos do capitalista (...)”; “a máquina, varinha de condão para aumentar a riqueza do produtor, o empobrece, em mãos do capitalista” (Marx apud Paris, 2002, p. 235). 

Sob esta lógica, a ‘tecnologia’, de possibilidade de dilatação da vida, tem-se transformado, de forma cada vez mais brutal, em monstruosa Esfinge de nosso tempo que vorazmente destrói o direito e ameaça as bases da vida:

“Essa nova e Esfinge não é já a natureza indômita, hostil revestida de símbolos matriarcais, que assaltava o cidadão Édipo fora dos muros da cidade, mas a própria técnica que se ergue ameaçadora no recinto do mundo que acreditávamos haver forjado para nosso bem-estar” (Paris, 2002, p. 162). 

A ‘tecnologia’, como força dominantemente do capital, acaba atuando numa lógica crescente de ‘produção destrutiva’. Para manter-se e para prosseguir, o sistema capital funda-se cada vez mais num metabolismo do desperdício, da ‘obsolescência planejada’, na produção de armas, no desenvolvimento do complexo militar, na destruição da natureza, e na produção de ‘trabalho supérfluo’, vale dizer desemprego em massa (Mèszàros, 2002). 

Cabe, todavia, ressaltar que isso não pode nos conduzir ao viés, também freqüente, de uma visão de ‘pura negatividade da tecnologia’ em face à sua subordinação aos processos de exploração e alienação do trabalhador e como força cada vez mais diretamente produtiva do metabolismo e da reprodução ampliada do capital. Isto conduz a uma armadilha para aqueles que lutam pela superação do sistema capital de relações sociais por encaminhar o embate para um âmbito exclusivamente ideológico e/ou por reforçar a tese de que a travessia para o socialismo se efetiva pela indignação em face à degradação e miséria social – ‘tese do quanto pior melhor’. 

Os dois vieses – o fetiche do determinismo tecnológico e a pura negatividade da ‘tecnologia’ sob o capitalismo – decorrem de uma análise que oculta o fato de que a atividade humana, que produz a ‘tecnologia’ e seus vínculos imediatos ou mediatos com os processos produtivos, define-se e assume o sentido de alienação e exploração ou de emancipação no âmbito das relações sociais determinadas historicamente. Ou seja, a forma histórica dominante da ‘tecnologia’ que se constitui como força produtiva destrutiva e alienadora do trabalho e do trabalhador, sob o sistema capital, não é uma determinação a ela intrínseca, mas, como a mesma, é dominantemente decidida, produzida e apropriada na lógica da propriedade privada e da reprodução ampliada do capital. 

Esta compreensão nos conduz, então, ao fato de que a ciência, a técnica e a ‘tecnologia’ são alvo de uma disputa de projetos de modos de produção sociais da existência humana antagônicos. A superação do capitalismo somente pode ser arrancada pela luta de classes, partindo da identificação e exploração, no plano histórico, de suas insanáveis e cada vez mais profundas contradições. O conhecimento científico, técnico e tecnológico é parte crucial desta disputa hegemônica e condição sine qua non, da sociedade socialista ou sociedade com democracia de fato. 

Seria possível dizer que o marxismo é a teoria e a prática socialistas de sociedades especificamente tecnológicas. Ou seja, se o trabalho humano que transforma a natureza tendo em vista objetivos coletivos humanos é de importância fundamental para concepção marxista de PRÁXIS, a tecnologia é o produto: artefatos que encerram valor e têm valor de uso (...) Marx ressalta que é a tecnologia, e não a natureza, que tem importância fundamental: “a natureza não fabrica máquinas, locomotivas, ferrovias, telégrafo elétrico, máquina de fiar automática, etc. Tais coisas são produtos da indústria humana; material natural transformado em órgãos da vontade humana que se exerce sobre a natureza ou da participação humana na natureza. São órgãos do cérebro humano, criados pela mão humana: o poder do conhecimento objetificado” (Grundrisse apud Botto-more, 1998, p. 371). 

O embate é, pois, para a superação da propriedade privada apropriada dos meios e instrumentos de produção e de vida pelo sistema capital para que a ‘tecnologia’ signifique não meio de ampliação da exploração do trabalho, de mutilação de direitos, devidas e do meio-ambiente, mas possa se constituir efetivamente em extensão de sentidos e membros humanos para dilatar o tempo livre; vale dizer, tempo para desenvolvimento das qualidades propriamente humanas para todos os humanos. Uma ‘tecnologia’ de cuidado com a vida e, por conseqüência com as bases materiais e ambientais da mesma.   

Para saber mais

ALTVATER, E. O Preço da Riqueza: pilhagem ambiental e a nova (des)ordem mundial. São Paulo: Unesp, 1995. 

ARRIGHI, G. A Ilusão do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. 

BOTTOMORE, T. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. 

GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. 

LANDES, D. Prometeu Desacorrentado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1969. 

MARX, K. Manuscritos de Economia y Filosofia. Madri: Alianza, 1972. 

MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 

MÈSZÀROS, I. Para Além do Capital. Campinas: Boitempo, 2002. 

PARIS, C. O Animal Cultural. São Carlos: Editora da UFSCAr, 2002. 

PINTO, A. V. O Conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Editora Contraponto,2005. v I e II.

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