Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Trabalho Simples

Júlio César França Lima Lúcia Maria Wanderley Neves Marcela Alejandra Pronko

Conceito formulado por Karl Marx, no volume 1 de O Capital, em 1867, como par do conceito ‘trabalho complexo’. Ambos os conceitos referem-se à divisão social do trabalho, que existe em qualquer sociedade, mudando de caráter de acordo com os países e os estágios de civilização e, portanto, historicamente determinados. O ‘trabalho simples’, ao contrário do trabalho complexo, caracteriza-se por ser de natureza indiferenciada, ou seja, dispêndio da força de trabalho que “todo homem comum, sem educação especial, possui em seu organismo” (Marx, 1988, p. 51).

Na forma particular que assume o processo de trabalho e de produção no capitalismo, o ‘trabalho simples’ é, ao mesmo tempo, produção de valor de uso e produção de valor. Como produtor de valor de uso, o ‘trabalho simples’ é trabalho concreto e nessa condição deve ser considerado nos seus aspectos qualitativos. Como produtor de valor, o ‘trabalho simples’ é trabalho abstrato e, nessa condição, só é considerado nos seus aspectos quantitativos, servindo de parâmetro de medição do dispêndio do trabalho humano.

Como trabalho concreto, no desenvolvimento do capitalismo, as características do ‘trabalho simples’ vão-se reconfigurando a partir da divisão técnica do trabalho e decorrente hierarquização das funções do trabalhador coletivo. Essa alteração do caráter do ‘trabalho simples’ está relacionada às necessidades do constante aumento da produtividade do processo de trabalho. Como trabalho abstrato, esse aumento de produtividade se realiza sob condições de dominação e de exploração para a extração de mais-valia.

O ‘trabalho simples’, no capitalismo industrial, tende a ser cada vez mais racionalizado à medida que a produção material e simbólica da existência se racionaliza pelo emprego diretamente produtivo da ciência, especificamente, no processo de trabalho e, de forma geral, no processo de produção da vida. Nos primórdios do capitalismo industrial, o ‘trabalho simples’ tinha um caráter predominantemente prático. A organização científica do trabalho, no capitalismo monopolista, vai paulatinamente demandando do ‘trabalho simples’ elementos teóricos gerais e básicos na sua execução. As atuais mudanças do processo de trabalho tendem a generalizar sua racionalização.

Enquanto o trabalho simples possuía um caráter predominantemente prático, o local de trabalho era ao mesmo tempo o local de sua formação. O aumento da racionalidade do processo de trabalho passa a exigir um local específico para a sua formação: a escola. A escola dividida em graus e modalidades é inerente à hierarquização que se estabelece na produção capitalista de mercadorias e da própria especificidade do trabalho na cultura urbano-industrial, de natureza flexível, baseado na variação do trabalho, isto é, na fluidez das funções e na mobilidade do trabalhador.

Existe um patamar mínimo de escolarização para o ‘trabalho simples’ em cada estágio de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção industriais, em cada formação social concreta. Existem também diferenciações na execução das atividades produtivas que exigem conhecimentos sistematizados (escolarizados) e diferentes experiências de trabalho e de vida.

Do ponto de vista do capital, a formação para o ‘trabalho simples’ destina-se à preparação técnica e ético-política da mão-de-obra, visando a aumentar a produtividade do trabalho sob a direção capitalista. Dessa forma, a formação do trabalho simples assume um caráter unilateral.

O grau de generalização da formação do ‘trabalho simples’, em cada formação social concreta, depende do lugar ocupado por essa formação na divisão internacional do trabalho, especialmente, da divisão entre países produtores de conhecimento e países adaptadores do conhecimento e, também, do estágio da luta de classes em cada momento histórico específico.

No Brasil, até os anos iniciais do século XX, a formação para o ‘trabalho simples’ era realizada, na maior parte dos casos, no próprio processo de trabalho. Com o desenvolvimento da urbanização e da industrialização, essa formação passou a requerer graus crescentes de sistematização fora do local de trabalho, sendo realizada nas instituições de educação escolar elementar e nos centros de formação técnico-profissional.

O patamar mínimo de escolarização para a formação do ‘trabalho simples’ foi-se estendendo ao longo do século XX da educação primária, realizada em quatro séries de escolaridade, até o ensino de 1o. grau, de oito anos de escolaridade, cuja obrigatoriedade foi estabelecida inicialmente pela lei 5.692/71. A lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 redefiniu a estrutura da educação escolar, estabelecendo dois níveis de educação: a educação básica e a educação superior. A educação básica, por sua vez, foi subdividida em três etapas: educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, mantendo, no entanto, a obrigatoriedade do ensino fundamental, de oito anos de escolaridade, embora prescreva a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio, explicitando assim um alargamento do patamar mínimo de escolarização para o ‘trabalho simples’, em tempos de automação flexível e de relações capitalistas neoliberais.

Por sua vez, a formação técnico-profissional para o trabalho simples foi-se diversificando em relação a tipos de cursos e de instituições, e exigindo, tendencialmente, como pré-requisitos, patamares progressivamente mais elevados de escolarização para os setores produtivos mais racionalizados. A formação técnico-profissional do ‘trabalho simples’ hoje, denominada educação profissional pela atual LDB, é desenvolvida por meio de cursos e programas de formação inicial e de educação profissional técnica de nível médio (Decreto n. 5.154/04).

Na área de saúde, até a primeira metade do século passado, não era claramente estabelecido o patamar mínimo de escolaridade dos trabalhadores técnicos. Com a expansão dos serviços médicos hospitalares a partir da segunda metade do século XX, que acompanhou o processo de urbanização e industrialização no país, o ‘trabalho simples’ se diversificou, diferenciando os tempos de formação e as tarefas concretamente desempenhadas. Na área de enfermagem, maior contingente da força de trabalho no setor, ficou claramente definida a diferenciação entre atendentes, auxiliares e técnicos em enfermagem. Para os atendentes, o patamar mínimo de escolarização foi estabelecido nas quatro primeiras séries do ensino fundamental (antigo ensino primário). Para os auxiliares, por sua vez, passou-se a requerer o ensino fundamental completo. Já para os técnicos em enfermagem foi prescrito o ensino médio.

No final do século XX e nos anos iniciais deste século, após a denominada terceira revolução industrial, uma nova divisão técnica do ‘trabalho simples’ em saúde vem-se configurando, exigindo tendencialmente a homogeneização do patamar mínimo de escolarização de todas as categorias de trabalhadores técnicos em saúde no nível médio de ensino.

Por sua vez, a formação técnico-profissional para o ‘trabalho simples’ em saúde ao longo da primeira metade do século XX se processou majoritariamente no próprio local de trabalho. Entre os anos de 1950 e 1980, com a expansão da rede hospitalar privada, cursos de formação inicial e de educação profissional técnica de nível médio passaram a ser desenvolvidos predominantemente em instituições privadas de ensino. Nas duas últimas décadas, após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), inversamente, esta formação vem-se dando em larga escala nas escolas técnicas de saúde do SUS.

Para saber mais

ALMEIDA, M. C. P. de. O Saber de Enfermagem e sua Dimensão Prática. São Paulo: Cortez, 1986.

LIMA, J. C. F. L. et al. Educação profissional em enfermagem: uma releitura a partir do Censo Escolar 2001. Revista Formação, 2(6): 37-54, set.-dez., 2002.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. (Livro Primeiro, v.1)

NAVILLE, P. Essai sur la qualification du travail. Paris: Librairie Marcel Rivière et Cie., 1956.

NEVES, L. M. W. A Hora e a Vez da Escola Pública? Um Estudo sobre os Determinantes da Política Educacional do Brasil de hoje, 1991. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: Faculdade de Educação/Centro de Filosofia e Ciências Humanas/ Universidade Federal do Rio de Janeiro.

NEVES, L. M. W. Brasil 2000: Nova divisão de trabalho em educação. São Paulo: Xamã, 2000.

VIEIRA, M. et al. A inserção das ocupações técnicas nos serviços de saúde no Brasil: acompanhando os dados de postos de trabalho pela pesquisa. Revista Formação, 3(8): 29-46, mai.-ago., 2003.

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