Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



VERBETES




Divisão Técnica do Trabalho em Saúde

Denise Elvira Pires

O uso desta expressão origina-se de análises sobre o processo de trabalho em saúde, que aparecem na literatura brasileira a partir de meados de 1970. Estes estudos buscam entender a organização do trabalho em saúde, utilizando como referencial análises sociológicas (Donangelo, 1975; Gonçalves, 1979; Almeida, 1986; Nogueira, 1977), e identificar semelhanças e diferenças com o trabalho profissional típico da produção artesanal, bem como com a divisão parcelar do trabalho do modo capitalista de produção.

A expressão ‘divisão técnica do trabalho em saúde’ diz respeito a características da ‘divisão técnica ou divisão parcelar do trabalho’ (ver o verbete Divisão Social do Trabalho) presente na forma de organização e produção do cuidado prestado por diversos grupos profissionais a seres humanos com carências de saúde. Refere-se à forma de organização do trabalho coletivo em saúde na qual se identificam a fragmentação do processo de cuidar; a separação entre concepção e execução; a padronização de tarefas distribuídas entre os diversos agentes, de modo que ao cuidador cabe o cumprimento da tarefa, afastando-o do entendimento e controle do processo; a hierarquização de atividades com atribuição de diferentes valores à remuneração da força de trabalho.

Com a mudança do papel dos hospitais para espaço de tratamento e ensino na área da saúde, a partir do final do século XVIII, diferentes grupos profissionais, tais como, físicos (médicos clínicos), boticários, cirurgiões (ofício independente da medicina clínica até meados do século XVIII) e práticos cuidadores, religiosos e leigos (que fazem parte de um conjunto de trabalhos que darão origem, pós Florence Nightingale, ao trabalho profissional de enfermagem) encontram-se no mesmo espaço físico e colaboram para cuidar da saúde de seres humanos (Foucault, 1984; Nogueira, 1977; Pires, 1989). Essa organização do trabalho marca fortemente, até hoje, o trabalho em saúde. Neste processo, ocorre certa perda de autonomia profissional frente aos constrangimentos institucionais e gerenciais.

O modelo da biomedicina que ficou bem caracterizado com o chamado modelo flexneriano, baseado no relatório do mesmo nome e datado de 1910, orientou a organização das escolas médicas nos EUA e contribuiu para a estruturação de um modelo de organização do trabalho que distancia o médico do entendimento do seu objeto de trabalho como seres humanos que são individualidades, biológica e subjetiva, mas também uma totalidade complexa. Esse modelo fragmenta o ser humano, ao focalizar a atenção na ‘parte afetada do corpo’, e influencia não apenas a medicina, mas o conjunto das profissões de saúde, em maior ou menor grau, bem como a organização do trabalho coletivo institucional. A forma de organização do trabalho em saúde, apesar de ter especificidades, é também influenciada pelo macro contexto histórico institucional de cada país e pelos modelos de organização e gestão presentes em outras áreas da produção, bem como em outras atividades do setor de serviços.

As normas institucionais estabelecem os papéis de cada grupo profissional e a coordenação do trabalho coletivo, a qual, ao longo da história, tem cabido aos médicos. Schraiber (1993) e Peduzzi (2001) apontam que, na prática cotidiana, os profissionais de saúde, como sujeitos do trabalho, exercem certa autonomia técnica concebida como liberdade de julgamento e tomada de decisão frente às necessidades de saúde dos usuários. Essa característica ocorre de modo concomitante com as diferenças técnicas especializadas e a desigualdade de valor atribuído a esses distintos trabalhos. A hierarquia de trabalhos e de saberes marca as diferenças de custo da força de trabalho e manifesta-se nas relações de trabalho resultando em tensões entre os diversos agentes, com conflitos explícitos ou não (Peduzzi, 2001; Pires, 1998). Ocorre certa compartimentalização de ações e perda de controle do processo assistencial, no entanto, a gerência da instituição não consegue submeter, de modo rígido, o trabalho da equipe multiprofissional, e “não é possível desenhar um projeto assistencial único e definitivo antes de sua implementação” (Peduzzi, 2001, p. 105). A gerência não consegue dominar a concepção e nem controlar rigidamente os processos de execução do trabalho, há um espaço de autonomia técnica (Peduzzi, 2001; Pires, 1998; Campos, 1997).

O ato assistencial em saúde envolve um conhecimento sobre o processo que não é dominado pela administração da instituição, e nem existe uma equipe de técnicos e gerentes que determine qual é a tecnologia assistencial que será empregada e qual o papel de cada trabalhador, como pode ocorrer nas empresas da produção material. Os profissionais envolvidos dominam os conhecimentos para o exercício das atividades específicas de sua qualificação profissional, aproximando-se, desta forma, das características do trabalho profissional.

O ato assistencial em saúde, até hoje, pode ser realizado de forma independente/autônoma, numa relação direta profissional de saúde-cliente, mantendo características do trabalho profissional e da pequena produção. No entanto, face à complexidade dos problemas, dos conhecimentos acumulados no campo da saúde e do instrumental envolvido na assistência, grande parte da mesma desenvolve-se em instituições públicas e/ou privadas, no espaço intra ou extra-hospitalar, com estruturas e níveis de complexidade diversos. Majoritariamente, o assistir/cuidar em saúde envolve um trabalho coletivo no qual é possível identificar duas características básicas – as da divisão técnica ou parcelar do trabalho e as do trabalho do tipo profissional. Trabalho profissional, no sentido de trabalho especializado e reconhecido socialmente como necessário para a realização de determinadas atividades, entendendo profissão como uma forma de trabalho portadora de características semelhantes as do ‘trabalho artesanal’ desenvolvido na Idade Média, na Europa – aquele trabalho desenvolvido nas corporações de artífices por produtores que tinham controle sobre o seu processo de trabalho, controlavam o ritmo, eram proprietários dos instrumentos, tinham controle sobre o produto, bem como, da produção e reprodução dos conhecimentos relativos ao seu trabalho (Braverman, 1981; Marglin, 1980; Marx, 1982; Machado, 1995).

Neste sentido, a divisão de atividades entre os diferentes profissionais de saúde assemelha-se à ‘divisão social do trabalho’ (ver o verbete Divisão Social do Trabalho), por envolver ações assistenciais realizadas por grupos de trabalhadores especializados, ou seja, que dominam os conhecimentos e técnicas especiais, para assistir indivíduos ou grupos populacionais com problemas de saúde ou com risco de adoecer, desenvolvendo atividades de cunho investigativo, preventivo, curativo, de cuidado, de conforto ou com o objetivo de reabilitação, quando os indivíduos ou grupos sociais não podem fazer por si mesmos ou sem essa ajuda profissional. O ‘trabalho coletivo em saúde’ aproxima-se da ‘divisão técnica do trabalho’ quando os participantes da equipe de saúde distanciam-se do entendimento do seu objeto de trabalho, têm menor domínio sobre o seu processo de trabalho de modo que têm menos instrumental tanto para intervir na concepção do trabalho quanto para intervir criativamente no agir cotidiano. Assim, distanciam-se do entendimento da finalidade do seu trabalho e ficam mais submetidos às decisões gerenciais. Quanto maior o controle sobre o processo de trabalho mais próximo da divisão social do trabalho; e quanto menor o domínio sobre o processo de trabalho maior aproximação com a divisão técnica ou parcelar do trabalho.

Em algumas profissões da saúde, como, por exemplo, enfermagem, fisioterapia, farmácia, nutrição e, também, certas práticas da odontologia, o trabalho é desenvolvido por trabalhadores com graus diferenciados de escolaridade. A coordenação do trabalho, dentro do grupo profissional, é exercida pelos profissionais de nível superior que concebem o trabalho e delegam atividades parcelares aos demais participantes da equipe. Majoritariamente, a organização do trabalho reproduz a fragmentação taylorista, mas é possível encontrar diferenciações, com maior ou menor aproximação com um trabalho cooperativo, mais criativo e menos alienado.

Pires, Gelbcke e Matos (2004) identificam, no trabalho da enfermagem, algumas características da divisão técnica do trabalho e da sua sistematização realizada por Taylor, conhecida como ‘organização científica do trabalho’ (OCT). Estas se evidenciam quando o mesmo é organizado com base no chamado ‘modelo funcional’, no qual o foco é a realização da tarefa distanciando o trabalhador do controle do seu processo de trabalho e da interação com o sujeito cuidado. O trabalho é mais repetitivo, com pouca autonomia e pouco espaço para ações criativas e para participação no processo decisório do cuidar. Aos enfermeiros e enfermeiras cabe o gerenciamento da assistência de enfermagem, com maior aproximação e controle sobre a concepção e o processo de cuidar; e aos demais trabalhadores que compõem a equipe cabe a execução de tarefas delegadas.

Segundo Graça com base em Liu (1983), em “Les nouvelles logiques em organisation du travail”, a OCT assenta-se nas seguintes idéias-chave: ‘parcelarização’ – cada trabalhador responsabiliza-se por uma tarefa ou um conjunto específico de tarefas simples; especialização – cada trabalhador executa sempre a mesma tarefa, ligada a um determinado posto de trabalho, não há espaço para troca na equipe; individualização – uma tarefa, um posto de trabalho, um trabalhador; controle de tempos e movimentos – tempo de trabalho, pausas e descanso são definidos pela gerência; separação entre as funções de controle e de concepção das funções de execução – “quem executa não controla ou avalia os resultados (...) quem executa, não concebe, não decide, não planeja, não programa, não organiza, não coordena”.

No ‘modelo dos cuidados integrais’, cada membro da equipe de enfermagem presta todo o conjunto diversificado de cuidados que o sujeito necessita, considerando-se os cuidados prescritos por médicos e enfermeiros(as) para cada dia de trabalho. Neste modo de organização do trabalho, ocorre uma maior aproximação do trabalhador do entendimento e do controle sobre o processo de cuidar, possibilitando uma relação mais criativa e humana entre o cuidador e o sujeito cuidado. Há certa possibilidade de o trabalhador identificar mudanças no quadro clínico ou reações individuais do sujeito cuidado e assim intervir diretamente, ou buscar colaboração, para atender às necessidades dos doentes ou pessoas com carências em relação à saúde. E, mesmo que os enfermeiros e enfermeiras continuem com o papel gerencial na equipe, esse modelo afasta-se mais das características da divisão técnica do trabalho que o modelo dos ‘cuidados funcionais’ (Pires, 1998; Matos & Pires, 2002).

Para saber mais

ALMEIDA, M. C. P. de. O Saber de Enfermagem e sua Dimensão Prática. São Paulo:Cortez, 1986.

BRAVERMAN, H. Trabalho e Capital Monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. (1.ed., 1974)

CAMPOS, G. W. de S. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre os modos de gerenciar o trabalho em equipes de saúde. In: MERHY, E. E. &ONOCKO, R. (Orgs.) Praxis en salud: undesafio para lo público. Buenos Aires/São Paulo: Lugar Editorial/Hucitec, 1997.

DONNANGELO, M. C. F. Medicina e Sociedade. São Paulo: Pioneira, 1975.

FOUCAULT, M.. Microfísica do Poder. 4.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

GONÇALVES, R. B. M. Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico, 1979. Dissertação de Mestrado, São Paulo: Pós-Graduação em Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.

LIU, M. Les nouvelles logiques en organisation du travail. Révue Française de Gestion, 41: 15-19, 1983.

MACHADO, M. H. Sociologia das profissões: uma contribuição ao debate teórico. In: MACHADO, M. H. (Org.) Profissões de Saúde: uma abordagem sociológica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995.

MARGLIN, S. A. Origem e funções do parcelamento das tarefas. Para que servem os patrões? In: GORZ, A. (Org.) Crítica da Divisão do Trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 1980. (1.ed., 1973)

MARX, K. O Capital. 8.ed. São Paulo: Difel, 1982. Livro 1, v.1. (1.ed., 1867) MATOS, E. & PIRES, D. A organização do trabalho da enfermagem na perspectiva dos trabalhadores de um hospital escola. Texto &Contexto Enfermagem, 11(1): 187 - 205, 2002.

NOGUEIRA, R. P. Medicina Interna e Cirurgia: a formação social da prática médica, 1977. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da Uerj.

PEDUZI, M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Revista Saúde Pública, 35(1): 103-109, 2001.

PIRES, D. Hegemonia Médica na Saúde e a Enfermagem. São Paulo: Cortez, 1989.

PIRES, D. Reestruturação Produtiva e Trabalho em Saúde no Brasil. São Paulo: AnnaBlume/ CNTSS, 1998.

PIRES, D. Relationship between new technologies and the health of health care professionals: a study in a Dutch hospital. Amsterdam, 2004. (Research Report)

PIRES, D; GELBCKE, F; & MATOS, E. Organização do trabalho em enfermagem: implicações no fazer e viver dos trabalhadores de nível médio. Revista Trabalho Educação e Saúde, 2(2): 311-325, 2004.

SCHRAIBER, L. B. O Médico e seu Trabalho. Limites da liberdade. São Paulo: Hucitec, 1993.

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