Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



VERBETES




Dualidade Educacional

Ana Margarida Campello

Em ‘Crítica ao programa de Gotha’, no qual o Partido Operário Alemão exige ‘Educação popular geral e igual a cargo do Estado’, Marx (s.d.) contra-argumenta: “Educação popular igual? O que se entende por isto? Acredita-se que na sociedade atual... a educação pode ser igual para todas as classes?” Refletir sobre a escola com base nessas perguntas é questionar a possibilidade de, na sociedade capitalista, a educação ser igual para todas as classes sociais.

A dualidade estrutural expressa uma fragmentação da escola a partir da qual se delineiam caminhos diferenciados segundo a classe social, repartindo-se os indivíduos por postos antagonistas na divisão social do trabalho, quer do lado dos explorados, quer do lado da exploração. Baudelot e Establet (1971), entre outros teóricos do crítico-reprodutivismo, desvendam a ilusão ideológica da unidade da escola e da existência de um tipo único de escolaridade. Para essa teoria, a escola não é única, nem unificadora, mas constituída pela unidade contraditória de duas redes de escolarização: a rede de formação dos trabalhadores manuais (rede primário-profissional ou rede PP) e a rede de formação dos trabalhadores intelectuais (rede secundário-superior ou rede SS). O dualismo da escola no modo capitalista de produção se manifesta como resultado de mecanismos internos, pedagógicos, de destinação de ‘uns e não outros’ (Souza e Silva, 2003) para os estudos longos em suas fileiras nobres como mecanismo de reprodução das classes sociais. Nessa concepção, para apreender a dualidade estrutural característica da escola capitalista é necessário colocar-se do ponto de vista daqueles que são dela excluídos. A repetência, o abandono, a produção do retardo escolar são mecanismos de funcionamento da escola e que fazem parte de suas características. É sua função discriminar, e isto desde o início da escolarização, na própria escola primária, que também não é única e que também divide. “Seus ‘defeitos’ ou ‘fracassos’ são, em verdade, a realidade necessária de seu funcionamento” (Baudelot & Establet, id., p. 269).

No Brasil, essa diferenciação se concretizou pela oferta de escolas de formação profissional e escolas de formação acadêmica para o atendimento de populações com diferentes origens e destinação social. Durante muito tempo o atual ensino médio ficou restrito àqueles que prosseguiriam seus estudos no nível superior, enquanto a educação profissional era destinada aos órfãos e desvalidos, os ‘desfavorecidos da fortuna’.

A análise do fluxo escolar, no Brasil, neste início de século XXI, aponta para a expulsão da escola de uma imensa parcela da população: apesar da quase universalização do acesso a 1ª série do Ensino Fundamental, apenas 45% dos jovens brasileiros concluem o Ensino Médio. Percebe-se claramente a constituição de dois grupos: aqueles que permanecem no interior da escola e os que dela vão sendo excluídos. Entre os que permanecem, uma nova diferenciação se produz pela desigualdade das condições de escolarização e pela precarização dos programas pedagógicos que conduzem a uma certificação desqualificada, para ‘uns e não outros’.

A dualidade estrutural confirma-se nos limites das classes sociais e da dicotomia histórica entre os estudos de natureza teórica e os estudos de natureza prática. A ‘escola do dizer’ e a ‘escola do fazer’ são, nas palavras de Nosella (1995), as divisões estruturais do sistema educativo no modo capitalista de produção. A escola de formação das elites e a escola de formação do proletariado. Nessa concepção está implícita a divisão entre aqueles que concebem e controlam o processo de trabalho e aqueles que o executam. A educação profissional destinada àqueles que estão sendo preparados para executar o processo de trabalho, e a educação científico-acadêmica destinada àqueles que vão conceber e controlar este processo. Essa visão que separa a educação geral, propedêutica da educação específica e profissionalizante, reduz a educação profissional a treinamentos para preenchimento de postos de trabalho.

Nas análises sobre a dualidade da escola brasileira focaliza-se principalmente o ensino médio:

A literatura sobre o dualismo na educação brasileira é vasta e concordante quanto ao fato de ser o ensino médio sua maior expressão. ... Neste nível de ensino se revela com mais evidência a contradição entre o capital e o trabalho, expressa no falso dilema de sua identidade: destina-se à formação propedêutica ou à preparação para o trabalho? (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005, p. 31).

A história do ensino médio no Brasil é a história do enfrentamento da tensão entre educação geral e educação específica, em decorrência de sua própria natureza de mediação entre a educação fundamental e a formação profissional stricto sensu. Sua dupla função – preparar para a continuidade dos estudos e para o mundo do trabalho – lhe confere ambigüidade, “uma vez que esta não é uma questão apenas pedagógica, mas política, determinada pelas mudanças nas bases materiais de produção, a partir do que se define a cada época uma relação peculiar entre trabalho e educação. (Kuenzer, 2007, p. 9).

Na década de 1980, o campo educacional brasileiro atravessou um intenso processo de disputa em cujo centro estava a reestruturação de nosso sistema educacional profundamente reformulado durante os mais de vinte anos que durou a ditadura instituída pelo golpe militar de 1964. Difundiu-se um clima de democratização, de participação social que levou à mobilização de educadores e políticos, visando à elaboração de uma nova Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional. Em termos de educação profissional, a meta era avançar na direção do ensino politécnico. A apresentação de uma proposta alicerçada na concepção de politecnia indica a possibilidade senão de uma superação, ao menos de um enfrentamento, da dualidade estrutural que historicamente marca as concepções e práticas educativas no Brasil (Rodrigues, 2005), especialmente no que diz respeito ao Ensino Médio.

Essa proposta, no entanto, não conseguiu ser implantada e, no final dos anos 1990, ainda no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei no 9.394/96), por meio das reformas do Ensino Médio e da Educação Profissional foi proibido o desenvolvimento integrado do ensino médio e técnico, obrigando-se a constituição de sistemas paralelos de educação básica e educação profissional. Na análise dessas reformas, evidencia-se um retorno à dualidade estrutural da educação brasileira estabelecida pela Reforma Capanema, que, em 1942, por meio das chamadas ‘leis’ orgânicas, criou ramos de ensino: de um lado, o ensino secundário, propedêutico, para a formação de intelectuais; de outro, os ramos técnicos (agrícola, industrial, comercial e normal) para a formação de trabalhadores instrumentais. Os egressos dos ramos técnicos não tinham então direito de acesso ao ensino superior. Esse direito só lhes foi plenamente assegurado em 1961, com a promulgação da Lei no 4.024 que estabeleceu a equivalência entre o ensino secundário, atual ensino médio, e o ensino técnico, para fins de prosseguimento dos estudos.

Ao fazer a crítica do caráter de classe da escola burguesa, a proposta escolar de Gramsci afirma a concepção de politecnia na construção de uma escola unitária:

Escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo (Gramsci, 1995, p. 118).

Para Gramsci, o surgimento da escola unitária não se restringe aos limites da educação escolar, mas diz respeito a toda a vida cultural e social. O advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho manual, não apenas na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário, por isso, refletir-se-á em todos os organismos de cultura, transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo. A escola unitária elementar e média deve educar de forma conjunta para as atividades intelectuais e manuais, e propiciar uma orientação múltipla em relação às futuras atividades profissionais, sem predeterminar escolhas (Manacorda, 1990).

É possível superar a dualidade da educação na sociedade capitalista, ou a “unitariedade inscreve-se no campo da utopia a ser construída através da superação do capitalismo”? (Kuenzer, 2004, p. 90).

É preciso, ao reconhecer que a escola contribui para a reprodução das classes sociais, ressaltar a contradição como aspecto fundamental do dinamismo histórico. Se por um lado a escola reproduz (os valores dominantes da exploração e do poder), por outro alimenta o movimento de superação do estado de coisas existente. A esse respeito, afirma Frigotto (1989, p. 24):

A escola ao explorar (...) as contradições inerentes à sociedade capitalista é ou pode ser um instrumento de mediação na negação dessas relações sociais de produção. Mais que isto, pode ser um instrumento eficaz na formulação das condições concretas da superação dessas relações sociais que determinam uma separação entre capital e trabalho, trabalho manual e trabalho intelectual, mundo da escola e mundo do trabalho.

A escola única, politécnica, ao tomar o trabalho como princípio educativo, busca a articulação ente teoria e prática e a negação da separação entre cursos teóricos e cursos práticos, entre ensino propedêutico e ensino profissionalizante. Coloca-se, aqui, o conceito de escola unitária, ou de unitariedade, tendo em vista o princípio da união dos contrários e para estabelecer uma relação dialética com dualidade escolar no sentido da construção de uma escola que não se diferencia em função das classes sociais e que, por isto, significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho manual, não apenas na escola, mas também na vida social, no sentido da superação da sociedade de classes.

Para saber mais

BAUDELOT, C. & ESTABLET, R. L’École capitaliste en France. Paris: Librairie François Maspero, 1971.

FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das relações entre educação e estrutura econômico-social e capitalista. 3.ed. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989.

FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. & RAMOS, M. (Orgs.) Ensino médio integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 1.

GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

KUENZER, A. Exclusão includente e inclusão excludente: a nova forma de dualidade estrutural que objetiva as novas relações entre educação e trabalho. In: LOMBARDI, J. C.; SAVIANI, D. & SANFELICE, J. L. (Orgs.) Capitalismo, trabalho e educação. 2. ed. rev. – Campinas, SP: Autores Associados, HISTEDBR, 2004.

KUENZER, A. Z. Ensino médio e profissional: as políticas do estado neoliberal. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

MANACORDA, M. A. história da educação: da antiguidade aos nossos dias. 4.ed. São Paulo: Cortez, 1995.

MANACORDA, M. A. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

MARX, K. Crítica ao programa de Gotha. In: MARX, K. & ENGELS, F. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, s.d.

NOSELLA, P. Prefácio. In: MANACORDA, M.(Org.)História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1995.

RODRIGUES, J. Ainda a educação politécnica: o novo decreto da educação profissional e a permanência da dualidade estrutural. Trabalho, Educação e Saúde, 3 (2): 259-282, 2005.

SAVIANI, D.O choque teórico da politecnia. Trabalho, Educação e Saúde, 1(1): 131-152, 2003.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 9 ed. São Paulo: Autores Associados, 2005.

SOUSA e SILVA, J. Por que uns e não outros?: Caminhada de jovens pobres para a universidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

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