Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Trabalho Imaterial

Sérgio Lessa

A expressão ‘trabalho imaterial’ tem sido empregada com conteúdos tão diversos que o mais seguro, em um verbete, é afirmar que o uso que dela fazem Antonio Negri, Maurizzio Lazzarato e Michael Hardt está longe de ser consensual.

Para tais autores, o conceito de trabalho imaterial seria a superação da concepção materialista de Marx que eles denominam de “objetivista e determinista” (Cleaver, 1991, p.19-26 ), segundo a qual a transformação da natureza nos meios de produção e de subsistência seria a categoria fundante do mundo dos homens. Trata-se, portanto, de um confronto em toda a linha com a concepção ontológica marxiana e, conseqüência por eles assumida explicitamente, também com sua concepção revolucionária. Uma das características dessa vertente teórica é o seu proselitismo e a sua forma rebuscada, quase rococó de apresentar as idéias – forma que talvez, por vezes, evite que se perceba o quão simplórias são suas teses centrais. Todas elas se articulam ao redor da proposição segundo a qual as transformações que marcam a passagem do feudalismo aos nossos dias não seriam predominantemente causadas, como quer a tradição marxista, pelo desenvolvimento das forças produtivas. Não seria, argumentam, o desenvolvimento das relações mercantis, no contexto da Acumulação Primitiva e, em seguida, das Revoluções Burguesas e da Revolução Industrial, o fundamento da gênese e desenvolvimento da sociabilidade contemporânea. Segundo eles, o motor desse longo processo histórico seria o “amor pelo tempo por se constituir” (Negri, 1994, p. 391).

Para fazermos curta uma longa história, é o ‘amor pelo tempo por se constituir’ que faz com que, nos nossos dias, os operários se rebelem contra o capitalismo, abandonem as fábricas (o desemprego é, para eles, o resultado da recusa operária do trabalho fabril e não o resultado da expulsão do trabalho vivo da produção) (Lazzarato, 1992, p. 57 e ss.; Negri, 1993; Hardt e Negri, 1984, p. 272 e ss.) e se lancem na construção de uma nova sociabilidade que eles denominam de ‘comunismo’. Para tais autores, o ‘comunismo’ seria uma sociabilidade que não mais conheceria a distinção entre a ‘produção’ e a ‘fruição’, entre a produção e o consumo, entre a produção e a circulação: toda a vida, agora, seria igualmente produtiva. Nas suas palavras, a produção teria se ‘desterritorializado’ e se expandido a toda sociabilidade. As classes sociais, evidentemente, estariam desaparecendo. Operariado e burguesia seriam coisas do passado. Todavia, surpreendentemente, a função de controle da produção não se ‘desterritorializaria’ para toda a sociedade: ficaria concentrada nas mãos dos “empresários políticos” (Negri, 1999, p. 61).

Nessas novas circunstâncias, não haveria mais sentido em manter o trabalho, intercâmbio orgânico com a natureza, como a categoria fundante do ser social. Agora, a categoria que articularia o ‘comunismo’ - que estaríamos vendo nascer sob nossos olhos – seria o ‘trabalho imaterial’. O ‘trabalho imaterial’ seria, assim, para tais autores, a encarnação nos nossos dias do ‘amor pelo tempo por se constituir’ no momento final de conclusão da sua obra histórica de conversão do mundo feudal em ‘comunista’.

Do ponto de vista político, as concepções de Negri, Hardt e Lazzarato se pautam por uma duríssima crítica à esquerda que eles denominam de ‘marxista’ ou ‘tradicional’. Tal esquerda estaria falida por não compreender que, hoje, a defesa dos direitos dos trabalhadores nada mais seria que a luta pela manutenção das antigas relações de produção capitalistas que estariam sendo superadas pelo comunismo. A esquerda que combate as transformações em curso seria reacionária por não compreender que elas implicam o fim das classes sociais e, portanto, defender os ‘trabalhadores’ contra o ‘capital’ não passaria de uma luta retrógrada contra a evolução em direção ao ‘comunismo’.

Nos dias em que vivemos, contudo, nada que diz respeito ao trabalho é uma questão isenta de confusões. Isso porque a imprecisão com que o próprio conceito de trabalho é tratado no debate contemporâneo cria um campo enorme para incompreensões e mal-entendidos. O mesmo ocorre com o emprego da expressão trabalho imaterial: ainda que tenha, hoje, tal expressão, a marca da corrente que tem em Negri, Lazzarato e Hardt seus mais conhecidos expoentes, muitos autores a empregam de modo e com um conteúdo muito distinto.

Há razões históricas, mais distantes no tempo, para tal situação. Uma delas é o fato de que, nas décadas de 1950 e 1960, quando se tornaram mais freqüentes as traduções das obras de Marx e Engels para o português (e para o espanhol, durante muito tempo quase uma segunda língua de leitura para os marxistas brasileiros), uma parte importante delas foi feita das traduções francesas. essas, naquele momento, eram marcadas pelas leituras que Kojève fizera de Hegel, e não poucas expressões de Marx e Engels foram traduzidas de modo ‘interpretativo’. Uma delas foi a tradução de ‘trabalho espiritual’ e ‘trabalho intelectual’, expressões freqüentemente empregadas por Marx e Engels, que eram traduzidas por vezes por ‘trabalho imaterial’ (para diferenciar do ‘trabalho material’ ou ‘trabalho manual’). É assim que em muitas ocasiões podemos encontrar a expressão ‘trabalho imaterial’ para expressar o ‘trabalho intelectual’ (em Marx, a atividade de controle do trabalho manual para que ele produza a propriedade privada da classe dominante de cada formação social) ou o ‘trabalho espiritual’ (para diferenciar as atividades do espírito humano que, direta ou mais freqüentemente, indiretamente, interferem nos processos de elaboração das teleologias presentes em todo ato humano singular).

Esse emprego, na literatura marxista, de trabalho imaterial no lugar de trabalho intelectual ou espiritual, apesar de freqüente, não é inteiramente justificado. Do ponto de vista ontológico marxiano, a expressão trabalho imaterial é em si mesma um contra-senso. Marx rompe com todas as ontologias anteriores ao elaborar a primeira ontologia que abandona a dualidade espírito-matéria que dominou dos gregos até Hegel. Essa ruptura pode ser levada a cabo, em primeiro lugar, quando Marx descobriu o trabalho como categoria fundante do mundo dos homens.

Ou seja, descobriu como e por quais mediações, do trabalho (do intercâmbio orgânico com a natureza) se originam possibilidades e necessidades que apenas podem ser exploradas e/ou atendidas pelo desenvolvimento de novas relações sociais entre os homens e não mais, apenas, entre os homens e a natureza. A gênese da ciência, por exemplo, tem seu fundamento na necessidade de se transformar a natureza nos meios de produção e de subsistência - todavia o seu desenvolvimento não pode mais se dar apenas na relação com a natureza. O desenvolvimento das complexas questões metodológicas e das questões da teoria do conhecimento, desde o período moderno até hoje, são um bom exemplo de como o trabalho gera necessidades e possibilidades que ele mesmo, enquanto tal, não pode mais atender. Em um outro pólo, o fato de o trabalho, ao transformar a natureza, transformar também a natureza do ser humano, é o fundamento da gênese de uma individualidade humana que vai se tornando cada vez mais social com o passar do tempo - e tal individualidade, por sua vez, é permeada por necessidades intelectuais, afetivas, etc., que não podem nem ser adequada e imediatamente exploradas nem atendidas pelo intercâmbio orgânico com a natureza. O desenvolvimento da psicologia tem aqui o seu solo fundante, para mencionarmos um outro exemplo. O trabalho, portanto, remete sempre para além de si próprio (Lukács, 1976). E é devido a isto - de modo fundante - que a reprodução social torna-se possível enquanto desenvolvimento da universalidade humana (o desenvolvimento das forças produtivas, de modo mais evidente) e das singularidades cuja síntese funda esta universalidade (os indivíduos, as personalidades individuais).

Em poucas palavras, ao transformar a natureza o ser humano transforma a sua própria natureza de ser social (Marx, 1983 ). É assim que Marx pode demonstrar como a essência humana é o ‘conjunto das relações sociais’, ou seja, é um construto humano e, portanto, pode demonstrar a falsidade da justificativa do capitalismo com base na alegação de que corresponderia a uma essência humana imutável, eterna, de proprietários privados. A essência hobbesiana do humano, animal mesquinho e concorrencial ad aeternun, é superada por uma concepção histórica que demonstra como os homens se fizeram primitivos, escravistas, feudais e burgueses ao longo do tempo. E, portanto, com as devidas mediações, como podemos vir a superar a essência burguesa que converte a todos nós nos mesquinhos animais proprietários privados que somos. Sendo muito breve, está comprovada a possibilidade ontológica (o que não quer dizer inevitabilidade histórica) da revolução comunista.

A tese de que os humanos são os senhores de seu destino implica, esperamos que esteja claro, a superação das concepções ontológicas dualistas, que contrapunham espírito e matéria. Em tais ontologias, o abismo entre essência imutável e cotidiano mutável, histórico, resultou, sem qualquer exceção, na justificativa da exploração do homem pelo homem. Foi assim com Aristóteles, com Agostinho e São Tomás, com os modernos (de Hobbes aos Iluministas) e até mesmo em Hegel.

Romper com tal dualidade, portanto, é fundamental para Marx argumentar sua proposta revolucionária. O que requer, por sua vez, a elaboração de uma nova concepção materialista que articula todos os fenômenos, do inorgânico ao ser social, passando pela vida, em um mesmo estatuto ontológico. É assim que, para Marx, todo o existente são formas distintas da matéria. O ‘imaterial’ é rigorosamente o inexistente. O pensamento do indivíduo, a pedra assim como a casa feita dest a pedra, tudo para Marx é matéria. O que não é matéria é inexistente. Ou, se quiserem, o inexistente é imaterial.

Novamente a descoberta do trabalho como categoria fundante do ser social joga aqui um papel decisivo na elaboração de Marx dessa nova concepção ontológica: é o trabalho que, ao mediar entre a matéria natural (o ser orgânico e inorgânico) e o ser social, possibilita que os humanos desenvolvam ao longo do tempo uma nova esfera ontológica. Isso é, uma nova esfera material que é composta por criações postas no mundo pela atividade humana. A matéria do ser social se distingue da matéria natural não porque não seja material, mas porque consubstancia uma matéria cuja reprodução requer a mediação da consciência, cuja continuidade tem na consciência seu ‘médium’ e seu ‘órgão’, no dizer de Lukács (1981, p. 184, 351, 59-60 entre muitas outras passagens).

A consciência humana para Marx, Engels e Lukács nada mais é do que a forma mais tardia e desenvolvida da matéria: do desenvolvimento da matéria inorgânica temos o salto ontológico que marca o surgimento da vida, isto é, uma nova organização da matéria que possui como essência a reprodução biológica; analogamente, o desenvolvimento da vida possibilita o salto ontológico para a sociabilidade, uma nova forma de matéria fundada pelo trabalho. Por isso, o trabalho ao fazer a mediação entre o homem e natureza, é fundante do ser social: é nele que a essência da nova esfera de ser se manifesta por completo originariamente, isto é, se manifesta pela primeira vez a capacidade de ao transformar a natureza transformar-se também a natureza dos humanos.

Trabalho, como categoria fundante, concepção unitária do ser (rompimento com a dualidade espírito-matéria, com a essência não-histórica versus mundo fenomênico-histórico) e possibilidade da revolução proletária são absolutamente articulados em Marx (e, para acrescentarmos autores contemporâneos, Lukács e Mészáros).

Assim, quando Marx emprega a expressão ‘trabalho intelectual’ está ele se referindo à atividade de controle sobre a transformação da natureza (‘o trabalho manual’) peculiar às sociedades de classe e, não, a uma pretensa dualidade cabeça/mão que cavaria um abismo ontológico entre as atividades espirituais e as atividades materiais (Marx, 1985). A elaboração de teleologias é um momento ontológico ineliminável da reprodução material do mundo dos homens. E iss o vale, com as devidas mediações, para todos os complexos que nelas intervêm, direta ou indiretamente, desde a ciência e a filosofia até os valores, a arte, a religião, etc. Do mesmo modo, a causalidade social, posta em movimento pela síntese dos atos humanos singulares em tendências históricas universais (pela reprodução social), apenas pode surgir, se desenvolver e se reproduzir pela mediação de atos teleologicamente postos. O ser social, diferente do ser natural, é uma esfera da matéria que se torna substância pela transformação teleologicamente orientada da natureza, na conversão da causalidade dada pela natureza em uma causalidade posta pelos humanos, diria Lukács.

O ser social, as atividades espirituais que lhe caracterizam, são, portanto, tão partícipes da matéria, tão material, quanto uma pedra ou uma planta. O que distingue a materialidade humana da natureza são suas leis e processualidades – sua história – porque, diferente do ser natural, a legalidade social brota das ações humanas e não dos processos biológicos, químicos ou físicos do mundo natural. Mas o ser social não é menos material do que a natureza por essa razão.

Esse é o conteúdo do materialismo de Marx: o inexistente é o imaterial, tudo o que existe é matéria, é alguma modalidade da matéria. Inclusive a consciência humana.

É evidente, dizíamos, que quando na tradição marxista brasileira encontramos a expressão trabalho imaterial com o conteúdo de trabalho intelectual ou espiritual, os autores não estão, na enorme maioria dos casos, postulando um retorno às concepções dualistas que, ao conceberem a essência humana como imutável e eterna, cancelam o ser humano como o demiurgo da totalidade de sua história e, com as mediações devidas, cancelam a possibilidade ontológica da revolução proletária. E é também evidente que, na enorme maioria desses casos, também não se faz presente uma adesão às teses de Negri, Hardt e Lazzarato, segundo as quais a crise que vivemos seria apenas as dores do parto do nascimento do ‘comunismo’ por obra do ‘amor pelo tempo por se constituir’.

Portanto, no debate contemporâneo, a expressão ‘trabalho imaterial’ comparece em formas e com conteúdos bastante distintos: aqui também a confusão semântica e conceitual que se criou ao redor da categoria trabalho deixa suas marcas.

Para saber mais

BORON, A. Império e Imperialismo. Buenos Aires: CLACSO, 2000.

CLEAVER, H. Translator’s introduction. Parte I. In: NEGRI, A. Marx beyond Marx. Nova York, Londres: Autonomedia, Pluto Press, 1991.

HARDT, M.; NEGRI, A. Labor of Dionysus: a critique of the state form. Minnesota: University of Minnesota Press, 1984.

LAZZARATO, M.  Le concept de travail immatériel: la grand entreprise. Paris: Future Antérieur, n. 10, 1992. 

LESSA, S. Para além de Marx? Crítica às teses do trabalho imaterial. São Paulo: Xamã, 2005.

LUKÁCS, G. Per una Ontologia dell'Essere Sociale. Roma: Ed. Rinuti, vol. I, 1976, vol. II, 1981.

MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, vol. I, 1983, Tomo I, 1985, Tomo II.

NEGRI, A. La première crise du postfordisme. Paris: Future Antérieur, 1993.

NEGRI, A. O empresário político. I n: COCCO, G. et al. ( Orgs.). Empresários e empregos nos novos territórios produtivos. Rio de Janeiro: Consórcio do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro/ DP&A Editora, 1999.

NEGRI, A. El poder constituyente. Madri: Libertarias; Prodhufi, 1994.

TURCHETTO, M. Antonio Negri e o triste fim do 'operarismo' italiano. Revista Crítica Marxista. Rio de Janeiro: 2004.

© 2009 Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Todos os direitos reservados.
Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio.
Av. Brasil - 4365 - Manguinhos - Rio de Janeiro - RJ - CEP 21040-900 Brasil - Tel.: (21) 3865.9797