Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Trabalho Real

Jussara Cruz de Brito

Como uma primeira definição de ‘trabalho real’ (‘atividade’), pode-se dizer que é aquilo que é posto em jogo pelo(s) trabalhador(es) para realizar o trabalho prescrito (tarefa). Logo, trata-se de uma resposta às imposições determinadas externamente, que são, ao mesmo tempo, apreendidas e modificadas pela ação do próprio trabalhador. Desenvolve-se em função dos objetivos fixados pelo(s) trabalhador(es) a partir dos objetivos que lhe(s) foram prescritos. A parte observável da atividade (o comportamental) é apenas um de seus aspectos, pois os processos que geram a produção deste comportamento não são diretamente observáveis.

O esforço conceitual sinalizado na expressão ‘trabalho real’ está vinculado ao pressuposto de que as prescrições são recursos incompletos, isto é, que desde a sua concepção elas não são capazes de contemplar todas as situações encontradas no exercício cotidiano de trabalhar. Nesse sentido, é dada ênfase ao papel das pessoas como protagonistas ativos do processo produtivo (e não como ‘fator’ ou ‘recurso’ humano). Mesmo no caso de tarefas muito repetitivas, cabe ao trabalhador fazer regulações/ajustes/desvios – mesmo que infinitesimais – que garantam a continuidade da produção. Isso implica o questionamento de expressões, como ‘trabalho manual’ ou ‘trabalho de execução’, que não assinalam ao caráter ativo (mobilização cognitiva e afetiva) do trabalhador.

Fundamentalmente, a defasagem sempre existente entre o trabalho prescrito e o ‘trabalho real’ se deve ao fato de as situações reais de trabalho serem dinâmicas, instáveis e submetidas a imprevistos, conforme mostram os estudos realizados no âmbito da ‘ergonomia da atividade’, desde do final da década de 1960. Portanto, a atividade de trabalho envolve estratégias de adaptação do prescrito às situações reais de trabalho, atravessadas pelas variabilidades e o acaso.

Do ponto de vista do sistema sócio-técnico, as variabilidades dizem respeito a oscilações normais do processo produtivo (por exemplo, quanto à quantidade e tipo de produtos/ atendimentos/procedimentos/ações ao longo do dia, mês ou ano) ou resultam de imprevistos e disfuncionamentos (falhas ou defeitos em equipamentos, problemas com instalações, inadequação ou falta de material, problemas relativos aos fluxos previstos e à comunicação etc.). Do ponto de vista dos trabalhadores, as variabilidades estão ligadas, principalmente, às características das equipes (qualificações e competências dos diferentes profissionais, se são majoritariamente compostas de mulheres, de homens ou mistas, diferenças culturais, de ritmo etc.) e às mudanças de ‘estado’ de cada trabalhador durante a jornada, mês ou ano (condições de saúde, problemas extraprofissionais, nascimento de filhos, desenvolvimento de competências, expectativas e perspectivas profissionais, efeitos da idade, fadiga etc.). Conseqüentemente, a compreensão da atividade não se limita ao que é posto em jogo pelo(s) trabalhador(es) para realizar o trabalho prescrito, pois alguns de seus determinantes são encontrados na história da pessoa ou equipe, na cultura.

A atividade de trabalho (‘trabalho real’) pode ser definida, então, como um processo de regulação e gestão das variabilidades e do acaso. Compreender a atividade de trabalho é compreender os compromissos estabelecidos pelos trabalhadores para atender a exigências freqüentemente conflitivas e muitas vezes contraditórias. Esses compromissos se vinculam a dois pólos de interesses: os relativos aos próprios trabalhadores (saúde, desenvolvimento de competências, prazer) e os relativos à produção. A atividade de trabalho é, portanto, sempre singular, dado que caracteriza o trabalho de indivíduos singulares e instáveis/variáveis, efetuado em contextos singulares e variáveis (em suas dimensões materiais, organizacionais ou sociais).

Além disso, a defasagem entre a prescrição e a realidade do trabalho também se deve à diferença entre o discurso produzido sobre a prática e aquilo que os trabalhadores experimentam concretamente na prática. Trata-se dos limites das rotinas e protocolos tomados como referência, indicando que há sempre uma parte da atividade que não é traduzida em palavras. É por isso que a abordagem da ‘psicodinâmica do trabalho’ chama a atenção que trabalhar implica sair do discurso para confrontar-se com o mundo. E nesse confronto os trabalhadores não ‘aplicam’ os saberes adquiridos (não são ‘executores’), mas, afetados pela situação de trabalho, mobilizam-se, operando com o patrimônio de saberes adquiridos, produzindo novos elementos.

Observa-se, além disso, que os problemas que os trabalhadores têm de resolver, além de nunca estarem definidos inteiramente no enunciado formal de suas tarefas prescritas, não estão totalmente definidos a priori; ou seja, são os trabalhadores que devem ser capazes de construir estes problemas, como sinalizou há décadas o ergonomista Alain Wisner.

A inteligência do/no trabalho, de acordo com a psicodinâmica do trabalho (Dejours, 1997), se caracteriza pela astúcia a que é necessário recorrer diante das dificuldades da prática. É uma forma de inteligência criativa, multiforme e móvel, o que permite uma atuação exitosa nos processos de trabalho, com suas instabilidades. Um outro traço desta inteligência – que tem como modelo uma divindade feminina da Grécia Antiga, Mètis – é que suas capacidades estão sempre enraizadas no corpo. A inteligência da prática está relacionada com ajustes feitos às normas prescritas, visando solucionar as dificuldades experimentadas no confronto com o real (e não previstas nos manuais, protocolos etc.). Portanto, o trabalho envolve inteiramente aquele que trabalha, tem sempre um caráter inventivo e, neste sentido, é enigmático.

A evolução do debate sobre o hiato entre trabalho prescrito e ‘trabalho real’ tem levado à efervescência e renovação conceitual da noção de atividade de trabalho – para muitos mais fértil que a noção de ‘trabalho real’. Yves Schwartz (2005), na perspectiva da ergologia, aponta três razões para esta efervescência do debate. Primeiramente, porque se trata de uma noção que não pode ser absorvida totalmente por nenhuma disciplina, na medida em que a atividade atravessa o biológico, o psicológico e o cultural, o individual e o coletivo, o fazer e os valores, o privado e o profissional, o imposto e o desejado. Em outras palavras, a atividade faz uma síntese desses diversos elementos, pois nas situações concretas não é possível separá-los: o fazer é impregnado de valores, o privado se articula com o profissional etc. Logo, a atividade de trabalho não pode ser vista apenas de um ângulo, compreendê-la, operar com este conceito, exige o diálogo entre diversas disciplinas, diferentes campos de saberes. A ergologia chama atenção que este debate sinérgico proposto envolve necessariamente os protagonistas do trabalho em análise, remetendo para a discussão sobre um dispositivo pertinente à geração de saberes para compreender-transformar positivamente o trabalho.

A efervescência da noção de atividade de trabalho está vinculada também ao seu caráter de mediação entre o ‘micro’ (o espaço-tempo onde ocorre o processo de trabalho) e o ‘macro’ (seu contexto social, econômico e político), entre o local e o global. Se aparentemente a noção de atividade refere-se a um plano muito específico e local do trabalho (seu nível ‘micro’), sua acepção tem sido renovada pela indicação de que o foco sobre o micro remete ao macro – e vice-versa. Dito de outro modo: o foco sobre a atividade de trabalho permite tanto compreender os condicionantes econômicos e sociais dos processos produtivos quanto reconhecer a história singular que se faz no cotidiano desses processos. É nesse sentido que a perspectiva ergológica propõe um vai-vem entre micro e macro: um dado olhar sobre as dificuldades e possibilidades encontradas nas situações concretas de trabalho, buscando identificar aí as marcas da história de uma sociedade (seu desenvolvimento científico e cultural, as relações de poder instituídas) e seus valores. Nesse sentido, a atividade de trabalho é sempre um ‘encontro’ entre ‘micro’ e ‘macro’: no caso dos serviços de saúde, um encontro entre, de um lado, diferentes profissionais (com seus saberes particulares e distintas formas de inserção do processo), usuários (com suas histórias de vida e condições clínicas), chefias, equipes, tecnologias; de outro lado, políticas e programas de saúde, legislações, a estruturação da rede assistencial etc. Atividade como encontro que envolve lógicas distintas: a lógica do cuidado, a lógica da gestão do serviço e a lógica financeira. O ‘trabalho real’ acontece neste encontro, e é o trabalhador, individual e coletivamente, que faz a gestão de tudo isso no cotidiano, muitas vezes ‘se virando’. É nesse sentido que ‘trabalhar é gerir’, e que a atividade de trabalho envolve sempre criação.

Há ainda uma outra razão para efervescência da noção da atividade. Ela remete, simultaneamente, às normas antecedentes instituídas e enraizadas nos processos de trabalho e à tendência dos seres humanos de criar novas normas diante dos desafios do cotidiano (renormatizações). Ou seja, o ‘trabalho real’ é um lugar de debates de normas e valores, como se entende na perspectiva ergológica. Para entender essa afirmação, lembremos que há normas (antecedentes) propostas-impostas, ligadas a instâncias exteriores aos indivíduos, assim como há normas instauradas na própria atividade (renormatizações), ligadas ao próprio indivíduo – pois, conforme Canguilhem (2001), cada um busca ser produtor de suas próprias normas, re-centrando a situação de trabalho. As normas que o indivíduo (re)inventa não são da mesma natureza que as normas às quais ele se confronta em seu trabalho. Pensar o trabalho como reprodução idêntica das normas econômicas e técnicas subentendidas na atividade de trabalho seria pensá-lo numa perspectiva apenas adaptativa, o que, na verdade, não dá conta da complexidade da vida e do trabalho. Do mesmo modo que é impossível eliminar as variabilidades do meio de trabalho (conforme evidenciou a ergonomia da atividade), não se pode viver sob um regime de total imposição deste meio já-dado, isto é, de suas normas antecedentes. Diante delas, na situação real de trabalho, os trabalhadores (re)criam estratégias, em um movimento contínuo de (re)normatização. É nesse sentido que Yves Schwartz (2005), na linhagem de Canguilhem, afirma que em toda atividade de trabalho há sempre ‘uso de si’. De um lado, ‘uso de si pelos outros’, como nos é mais visível; de outro, algo que é mais difícil de considerar: ‘uso de si por si’. Sim, pois os trabalhadores precisam – nas situações reais de trabalho – mobilizar-se, fazer uso de suas próprias capacidades, de seus próprios recursos e de suas próprias escolhas, além de fazer uso de si para mobilizar redes de parceiros, para equacionar e gerir os problemas emergentes, as variabilidades, as diferentes lógicas e as diferentes normas então presentes.

Nesta mesma perspectiva, na abordagem da clínica da atividade (Clot, 2006), sinaliza-se que, para uma melhor compreensão da atividade de trabalho, se deve considerar também o que não se fez e o que não se faz, por não querer ou poder, assim como aquilo que se tem vontade e se pensa fazer em outro momento. Esta abordagem enfatiza que o conceito de atividade de trabalho deve englobar, além do trabalho realizado e dos obstáculos encontrados, também as possibilidades de desenvolvimento da atividade, remetendo ao trabalho como ‘zona de desenvolvimento potencial’ e às potencialidades do agir individual e coletivo no trabalho – aquilo de novo que no trabalho cada um pode se tornar.

Todo este debate sobre o ‘trabalho real’ e mais especificamente sobre o conceito de atividade de trabalho mostra que este é um assunto atraente e complexo, envolvendo vários aspectos. A dimensão coletiva do trabalho exige ser considerada. Já foi evidenciado pela ergonomia da atividade e pela psicodinâmica do trabalho que a organização real do trabalho se baseia na cooperação espontânea entre os trabalhadores, ao contrário da organização prescrita do trabalho que busca definir separadamente os papéis, os domínios de competência e as responsabilidades de cada um. A cooperação não pode ser prescrita: é uma construção fundada em regras produzidas pelos coletivos de trabalho, a partir de critérios de eficácia e de valores. Esta cooperação depende de condições favoráveis à mobilização subjetiva – que por sua vez está relacionada à dinâmica do reconhecimento das contribuições dos trabalhadores (invenções e ajustes feitos) para que não haja uma paralisação da produção. Trata-se de uma dinâmica que passa necessariamente pela visibilidade do que se faz (das transgressões), exige a possibilidade de confiança, compreende a existência de um espaço público interno no meio de trabalho, passa por um julgamento – por parte dos pares, da hierarquia e dos clientes – sobre o ato profissional e o seu produto, enfim, pelo reconhecimento da contribuição. Logo, o ‘trabalho real’ apresenta também uma dimensão subjetiva e intersubjetiva.

Considerar a dimensão coletiva do trabalho implica ainda reconhecer que diferentes redes são formadas para que as atividades se desenvolvam. Redes que podem envolver contatos presenciais diretos ou comunicações telefônicas ou escritas, que podem se constituir e em seguida se desfazer, mas que integram o ‘trabalho real’. Por exemplo, no cuidado de recém-nascidos prematuros, em uma UTI Neonatal, se constitui um coletivo transitório formado por profissionais da equipe de enfermagem e as mães dos bebês. Outro exemplo: redes que se criam a partir da ação do Programa Saúde da Família (PSF), envolvendo inclusive a comunidade.

Para concluir: é muito importante e difícil apreender o ‘trabalho real’, especialmente quando este envolve tão poderosamente um componente relacional, como o trabalho em saúde. O fundamental é não negar que desvios, ajustes, transgressões, micro-decisões fazem parte desse universo, pois o trabalho humano é sempre necessário para fazer face aos acontecimentos.

Para saber mais

CANGUILHEM, G. Meio e normas do homem no trabalho. Proposições, 12(2-3): 35-36, jul.-nov., 2001.

CLOT, Y. A Função Psicológica do Trabalho. Petrópolis: Vozes, 2006.

DEJOURS, C. O Fator Humano. São Paulo: Ed. FGV, 1997.

DANIELLOU, F. (Org.) A Ergonomia em Busca de seus Princípios: debates epistemológicos. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 2004.

SCHWARTZ, Y. Actividade Laboreal, 1(1): 63-64, 2005. Disponível em: http://laboreal.up.pt.

WISNER, A. A Inteligência no Trabalho: textos selecionados de ergonomia. São Paulo: Fundacentro, 1994.

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