Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Trabalho Prescrito

Jussara Cruz de Brito

O conceito de ‘trabalho prescrito’ (ou tarefa) refere-se ao que é esperado no âmbito de um processo de trabalho específico, com suas singularidades locais. O ‘trabalho prescrito’ é vinculado, de um lado, a regras e objetivos fixados pela organização do trabalho e, de outro, às condições dadas. Pode-se dizer, de forma sucinta, que indica aquilo que ‘se deve fazer’ em um determinado processo de trabalho.

Este conceito está baseado em estudos realizados em situações reais de trabalho, que permitiram evidenciar que o trabalho é muito mais do previsto e percebido do exterior, ele é sempre distinto do planejado. Esses estudos possibilitaram, inicialmente, que se evidenciassem duas faces do trabalho: a tarefa (‘trabalho prescrito’) e a atividade (trabalho real). Duas faces que não se opõem, mas, ao contrário, se articulam de uma forma que ainda precisa ser mais bem compreendida. Ao identificar essas duas faces do trabalho, esses estudos, desenvolvidos por uma certa linha da ergonomia (originada nos países de língua francesa, e que se denomina ergonomia da atividade), demonstraram com clareza que é pertinente falar em ‘compreender’ o trabalho (com suas diferentes faces), considerando que se trata de algo complexo.

É interessante chamar a atenção que a descoberta de que o trabalho não se resume à tarefa prescrita ocorreu justamente com a análise de um trabalho organizado de uma forma tipicamente taylorista, isto é, no qual se supunha que aos trabalhadores cabia apenas executar. Com o desenvolvimento de uma pesquisa sobre o trabalho em linhas de montagem da indústria eletrônica, na virada da década de 1960, os ergonomistas descobriram que as operárias não seguiam estritamente o método de execução planejado: elas alteravam a ordem de fixação dos componentes eletrônicos, modificando os movimentos rigidamente programados. Chegou-se então à conclusão de que, apesar da rígida divisão e definição de método do trabalho das operárias, elas perceberam que na realidade tinham de, permanentemente, tomar decisões e controlar incidentes. Logo, as operárias não eram ‘mão-de-obra’, seu trabalho não se constituía em algo ‘automático’, ‘feito sem pensar’. Conclusão que, evidentemente, abalava a crença taylorista de que existiria ‘um’ melhor método de trabalho, definido ‘cientificamente’. Ou seja, com essa conclusão, tornou-se possível afirmar que a padronização total dos métodos de trabalho é uma ficção.

Devido à sua gênese, o conceito de ‘trabalho prescrito’ esteve muito atrelado à concepção taylorista de organização do trabalho (com a tentativa de predição e de controle sem limites do processo de trabalho), levando a uma visão negativa do seu sentido. Esta visão, entretanto, foi-se modificando com a constatação de que há diferentes modos de prescrição do trabalho, uma forma de antecipação necessária e que é encontrada em todos os processos produtivos. Com isso, entendeu-se que o conceito de ‘trabalho prescrito’ (ou tarefa) é fundamental para descrevermos uma das faces do trabalho – que logicamente tem implicação sobre a outra (atividade). Até os dias de hoje os ergonomistas e demais cientistas do trabalho procuram avançar na definição desse conceito, considerando os mundos atuais de trabalho. Apesar de ser um objeto de debates, podemos dizer que, sinteticamente, o ‘trabalho prescrito’ se caracteriza pelos seguintes elementos:  

  • Os objetivos a serem atingidos e os resultados a serem obtidos, em termos de produtividade, qualidade, prazo;
  • Os métodos e procedimentos previstos;
  • As ordens emitidas pela hierarquia (oralmente ou por escrito) e as instruções a serem seguidas;
  • Os protocolos e as normas técnicas e de segurança a serem seguidas;
  • Os meios técnicos colocados à disposição – componente da prescrição muitas vezes desprezado;
  • A forma de divisão do trabalho prevista;
  • As condições temporais previstas;
  • As condições socioeconômicas (qualificação, salário).

Se é evidente o caráter externo desses elementos – normalmente vinculado à divisão social do trabalho e às relações hierárquicas –, é importante ressaltar que há um nível de intermediação entre a tarefa e a atividade (o que reforça a idéia de que não são faces opostas do trabalho) que corresponde aos objetivos que os trabalhadores, individualmente ou coletivamente, definem para si. Por outro lado, há situações em que as prescrições não são identificadas com clareza ou que se apresentam de forma implícita nos induzindo a pensar que se trata de casos onde o trabalho se desenvolve sem injunções. Este é um caso de subprescrição, no qual a definição dos objetivos e dos meios para atingi-los acaba recaindo sobre o trabalhador, sobre-trabalho nem reconhecido nem remunerado. Há que se considerar, contudo, que sempre haverá uma parte implícita nas tarefas prescritas.

É importante fazer referência também às novas exigências tendenciais dos empreendimentos contemporâneos, como a chamada prescrição da subjetividade – sinônimo de exigência de implicação, iniciativa, criatividade, autonomia e disponibilidade para a produção. Semelhantes são os casos em que os objetivos a serem atingidos são demasiadamente amplos, levando o trabalhador a dar tudo de si para alcançar os resultados esperados, gerando fadiga crônica, esgotamento.

Além disso, as prescrições podem contribuir diretamente para o desenvolvimento das atividades, ou serem ineficazes ou perturbadoras. Em várias situações observa-se também a existência de prescrições contraditórias: por exemplo, seguir determinadas normas de segurança e simultaneamente dar conta da tarefa em um tempo exíguo. Cabe dizer ainda que ao ‘trabalho prescrito’ soma-se o ambiente físico encontrado nas situações de trabalho, na medida em que é um componente externo e representa um constrangimento para a realização do trabalho (por isso, algumas vezes é apontado como integrante da tarefa).

Os debates em torno da prescrição do trabalho têm levado alguns autores ao exercício de decomposição da tarefa prescrita em vários níveis até chegar à atividade. Esses debates têm também permitido evidenciar que:

  • O ‘trabalho prescrito’ não deve ser reduzido à expressão de dominação do capital, pois tem um papel importante no desenvolvimento das atividades. Sua ausência, ou a não definição clara dos objetivos, de instruções e de determinados instrumentos de trabalho, compromete significativamente o desenvolvimento das atividades e a saúde do trabalhador. Logo, o fundamental é discutir: qual prescrição é pertinente?
  • A prescrição tem sempre um caráter situado (na medida em que há um nível de divisão das tarefas que se define localmente ou que depende dos meios colocados à disposição), obrigando-nos a ter cautela em falar genericamente sobre um determinado setor de trabalho.

Como já dito, o reconhecimento dessas diferentes faces do trabalho vem influenciando distintas áreas de estudos e intervenção sobre o trabalho, contribuído para a evolução dos conceitos de ‘trabalho prescrito’ e trabalho real. Destacaremos a contribuição da ergologia (uma perspectiva de produção de conhecimento que busca intervir nos mundos do trabalho a partir de uma dupla confrontação: dos diferentes saberes e desses com os produzidos na atividade de trabalho) que indica o seguinte: além das formas de prescrição antes elencadas, relativas à organização do trabalho e às condições dadas (propostas-impostas) ao trabalhador, encontramos na vida a presença de um movimento de antecipação, que se configura em um patrimônio coletivo. São ‘normas antecedentes’ vinculadas a aquisições da inteligência e experiência coletiva (e, neste sentido, bens de todos). Essas normas referem-se aos saberes técnicos, científicos e culturais historicamente incorporados ao fazer (como os diferentes saberes e técnicas do campo da saúde). Portanto, se constituem em patrimônio da humanidade – mesmo que o conhecimento técnico-científico esteja vinculado às relações de força presentes na vida social e que infiltram todo o conjunto de normas antecedentes.

Assim, as normas antecedentes mesclam:

  • saberes técnicos, científicos e culturais (com toda sua ambigüidade), imprescindíveis para o desenvolvimento do trabalho;
  • códigos organizacionais, ligados à divisão (social e sexual) do trabalho e às relações de poder, de exploração econômica e dominação.

Entre o que pode ser considerado patrimônio relativamente e provisoriamente estabilizado da humanidade (que se torna ‘norma’ porque nenhuma atividade de trabalho pode ignorá-lo) e a estrita imposição de modo de execução, há toda uma série de normas antecedentes, mais ou menos relevantes. Acrescenta-se que algumas dessas normas são forjadas pela história dos coletivos de trabalho (por exemplo, regras e práticas desenvolvidas através da experiência, pelo próprio coletivo) e outras provêm dos destinatários do trabalho (clientes ou usuários), uma vez que esses apresentam suas expectativas e exigências ao trabalhador.

Há ainda um terceiro aspecto que caracteriza as normas antecedentes: elas sinalizam valores. Portanto, elas têm uma dimensão sócio-político-jurídica e não apenas monetária. Dizem respeito, assim, também a valores do bem comum (saúde, educação, direito ao trabalho, ao lazer, segurança, preservação ambiental, igualdade etc.), sobre os quais há sempre um campo de lutas e em nome dos quais se busca instituir dispositivos legais em uma conjuntura social específica.

Enfim, as normas antecedentes estão vinculadas aos regulamentos, procedimentos e tecnologias encontradas em determinada situação de trabalho, ao nível de conhecimento técnico-científico e cultural de uma certa sociedade e aos valores nela presentes.

Neste sentido, é possível reconhecermos algumas normas antecedentes do trabalho em saúde no Brasil: os princípios de humanidade e cidadania da Reforma Sanitária, o valor social e político atribuído ao Sistema Único de Saúde (SUS), as políticas de saúde, os modelos de atenção e de gestão. Elas incluem também a formação técnico-científica dos profissionais de saúde, a constituição e a forma de divisão das tarefas nas equipes (técnica, sexual etc.), as tecnologias e materiais disponíveis, os protocolos terapêuticos, as rotinas de trabalho previstas, as regras instituídas nos serviços (de produtividade, de qualidade etc.), as formas de contrato dos profissionais e as demandas dos usuários. Há que se considerar conjuntamente os recursos orçamentários, a organização espacial das unidades, as instalações e suas condições. Outras legislações brasileiras (e internacionais) podem também se configurar como normas antecedentes ao trabalho em saúde, na medida em que lhe influenciem direta ou indiretamente.

Trabalhar é colocar em debate uma diversidade de fontes de prescrição, estabelecer prioridades entre elas e muitas vezes não poder lhes seguir simultaneamente. Do mesmo modo que as prescrições, as normas antecedentes podem ser contraditórias, implicando uma permanente tensão entre princípios, regras, modelos, formação técnico-científica, recursos disponíveis etc. São os coletivos de trabalho que enfrentam essa tensão, sendo obrigados a fazer escolhas permanentemente – o que corresponde à outra face do trabalho (trabalho real ou atividade). Ao fazer opções, buscam soluções e desenvolvem novas técnicas, que mais tarde poderão ser incorporadas às normas antecedentes. Portanto, como já dito, as normas antecedentes são vinculadas a aquisições da inteligência e à experiência coletiva (e, por isso, trata-se de bens comuns).

Se iniciamos nosso texto falando de ‘trabalho prescrito’ e chegamos às normas antecedentes, é porque ambos conceitos se referem ao que é dado, exigido e apresentado ao trabalhador antes de a atividade ter início. Além disso, algo muito importante: com o conceito de normas antecedentes, podemos vislumbrar outros níveis de prescrição do trabalho, que muitas vezes não são apreendidos como tal.

Para saber mais

ALVAREZ, D. & TELLES, A. L. Interfaces ergonomia-ergologia: uma discussão sobre trabalho prescrito e normas antecedentes. In: FIGUEIREDO, M. et al. (Orgs.) Labirintos do Trabalho: interrogações e olhares sobre o trabalho vivo. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

DANIELLOU, F. Le travail des prescriptions. In: Actes du 37ème Congrès de la SELF, “Les évolutions de la prescription” (Conférence inaugural), Aixen-Provence, 2002. Disponível em: http://www.ergonomie-self.org/self2002/daniellou.pdf.

GUÉRIN, F. et al. Compreender o Trabalho para Transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blücher Ltda, 2001.

LEPLAT, J. & HOC, J.-M. Tarea y actividad en en el análisis psicológico de situationes. In: CASTILLO, J. & VILLENA, J. (Orgs.) Ergonomía: conceptos y métodos. Madrid: Editorial Complutense, 1998.

MONTMOLLIN, M. Vocabulaire de L’Ergonomie. Toulouse: Éditions Octarès, 1995.

SCHWARTZ, Y. Le Paradigme Ergologique ou un Métier de Philosophe. Toulouse: Octarès, 2000.

TEIGER, C. El trabajo, ese oscuro objeto de la Ergonomía. In: CASTILLO, J. & VILLENA, J. (Orgs.) Ergonomía: conceptos y métodos. Madrid: Editorial Complutense, 1998.

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