Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Comunicação e Saúde

Janine Miranda Cardoso Inesita Soares de Araújo

Comunicação e Saúde é um termo que indica uma forma específica de ver, entender, atuar e estabelecer vínculos entre estes campos sociais. Distingue-se de outras designações similares, como comunicação para a saúde, comunicação em saúde e comunicação na saúde. Embora as diferenças pareçam tão sutis que possam ser tomadas como equivalentes, tenhamos em mente que todo ato de nomeação é ideológico, implica posicionamentos, expressa determinadas concepções, privilegia temas e questões, propõe agendas e estratégias próprias.

Como ponto de partida, o conectivo quer acentuar a articulação entre campos sociais, entendendo campo como um espaço estruturado de relações, no qual forças de desigual poder lutam para transformar ou manter suas posições (Bourdieu, 1989, 1996, 1997). Campos sociais são historicamente constituídos e atualizados em contextos e processos sociais específicos que, ao mesmo tempo, envolvem e extrapolam suas fronteiras, mas sempre movidos por disputas por posições e capitais materiais e simbólicos. Fronteiras porosas por onde transitam agentes, discursos, políticas, teorias e expandem ou contraem relações, capitais, conflitos, enfim, interesses de diferentes ordens.

O termo Comunicação e Saúde, portanto, delimita um território de disputas específicas, embora atravessado e composto por elementos característicos de um, de outro e da formação social mais ampla que os abriga. Trata-se de um campo ainda em formação, mas como os demais constitui um universo multidimensional no qual agentes e instituições desenvolvem estratégias, tecem alianças, antagonismos, negociações. Essa concepção implica colocar em relevo a existência de discursos concorrentes, constituídos por e constituintes de relações de saber e poder, dinâmica que inclui os diferentes enfoques teóricos acerca da comunicação, saúde e suas relações. Contrapõe-se, assim, a perspectivas que reduzem a comunicação a um conjunto de técnicas e meios a serem utilizados de acordo com os objetivos da área da saúde, notadamente para transmitir informações de saúde para a população.

A formação do campo

O que hoje denominamos Comunicação e Saúde resulta, então, da associação de campos que, embora irredutíveis um ao outro, possuem um longo histórico comum de agenciamentos. Podemos tomar como marco a institucionalização das práticas de comunicação, com a criação, em 1923, do Serviço de Propaganda e Educação Sanitária, no interior do Departamento Nacional de Saúde Pública, ainda no contexto do que se tornou conhecido como Reforma Carlos Chagas. O serviço abriu espaço para as atividades que buscavam a adesão da população para as medidas preconizadas pelas autoridades sanitárias, voltadas principalmente para a higiene pessoal e pública, saúde da criança e da mulher gestante. A ascensão do modelo bacteriológico – com a descoberta de agentes patológicos específicos para cada doença e processos de transmissão – contribuiu para a ênfase crescente nas medidas individuais de higiene, enquanto as medidas mais abrangentes sobre as condições socioambientais foram paulatinamente secundarizadas. À época, educar, higienizar e sanear eram as palavras de ordem, profundamente articuladas ao intenso debate sobre o projeto nacional. Isso não significou, contudo, a eliminação das medidas coercitivas, características das campanhas sanitárias do início do século XX, cujas grandes resistências potencializaram vários movimentos, que culminaram na Revolta da Vacina (Cardoso, 2001).

Desde então, atravessando diferentes conjunturas sociais, políticas e sanitárias e relacionando-se com distintas formas de conceber o processo saúde-doença, a comunicação passou a habitar as atividades de saúde, principalmente relacionadas às ações de prevenção, chamada a lutar contra a ‘ignorância’, espécie de vala comum que passou a receber toda e qualquer resistência às medidas sanitárias.

No entanto, as práticas de comunicação nunca representaram a utilização de instrumentos supostamente neutros, mas expressaram também a convergência entre determinados modelos e concepções de ambos os campos. Assim, no sanitarismo campanhista das primeiras décadas do século XX predominaram as práticas de difusão de medidas de higiene, ancoradas em teorias de comunicação de fundo behaviorista, que estabeleciam uma relação causal e automática entre estímulo e resposta: uma vez exposto a uma mensagem, o indivíduo – o ‘público-alvo’ – reagiria de acordo com os objetivos do emissor. No período entre guerras, com Vargas, o Brasil experimentou uma inédita política de comunicação governamental, importante na tessitura ideológica do novo regime, da nova nação e do novo homem brasileiro. Estimulados pela visão mundial da propaganda como eficaz ferramenta na “gestão governamental das opiniões” (Lasswell apud Mattelart e Mattelart, 1999, p. 37), foram criados diferentes setores de comunicação e educação nos ministérios, inclusive o Serviço Nacional de Educação Sanitária (SNES), em 1941, com o objetivo de padronizar metodologias e difundir maciçamente informações sobre questões de saúde.

Após a segunda guerra mundial, no contexto de interiorização do desenvolvimento econômico e de aceleração da urbanização, a comunicação foi chamada a desempenhar um papel estratégico na arrancada desenvolvimentista: criar o ‘clima’ propício para a adoção dos ‘modernos’ padrões da sociedade industrial capitalista. Em plena guerra fria e sob os auspícios de instituições internacionais, esse movimento se deu nos países periféricos na órbita de influência dos EUA, privilegiando as áreas da educação, saúde, agricultura, extensão rural e serviço social. No campo da saúde, duas instituições tiveram destacada atuação: o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), criado em 1942, no âmbito do esforço aliado de guerra, e o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), criado em 1956, com o objetivo de estender o atendimento médico-sanitário de massa em áreas consideradas economicamente estratégicas. Atuavam em regiões geográficas distintas, com metodologias específicas de trabalho e priorizavam diferentes grupos etários, mas ambas investiram na mobilização das comunidades e foram agentes da comunicação para o desenvolvimento que preconizava uma relação causal e mecânica entre os dois termos.

O campo da comunicação não ficou imune, naquele momento, ao intenso processo de produção científica e tecnológica. Na saúde e em outras áreas de intervenção social, repercutiu amplamente o modelo comunicacional inspirado na teoria dos dois fluxos de comunicação, que atribuía um papel fundamental às lideranças comunitárias, consideradas ‘elos-chave’ na busca de maior sintonia entre emissor (autoridades) e receptor (população). Essa foi uma inovação teórica e metodológica significativa na matriz transferencial, que conferiu relevância ao universo cultural e às relações sociais de uma dada comunidade, mediações que tornaram o processo comunicacional menos linear e automático. Não se rompeu, contudo, com a unidirecionalidade e a comunicação continuou a ser vista fundamentalmente como a transmissão de informações de um pólo emissor a um pólo receptor. Essa abordagem encontrou eco, particularmente no quadro de uma concepção restrita e regulada de participação comunitária, potencializando os enfoques da saúde que privilegiavam os saberes biomédicos e atribuindo às instituições de saúde a exclusividade da fala autorizada. Desde então, várias iniciativas de mobilização comunitária para a agenda sanitária têm lançado mão dos pressupostos desse modelo, que fundamenta algumas características do perfil do agente comunitário de saúde e de seu trabalho.

A década de 60 trouxe vigorosos debates, tanto na saúde como na comunicação, em torno da mudança dos modelos vigentes. Contribuíram bastante para isso as críticas ao viés extensionista, simultâneas à emergência das teses freireanas, que introduziam uma perspectiva histórica, cultural, humanista e dialógica, tornando irrecusável considerar relevantes os saberes e as percepções da população sobre sua própria realidade de saúde. Mas, todo esse movimento, incluindo a forte crítica ao desenvolvimentismo, foi interrompido pelo golpe militar. Durante a ditadura, sob a égide da censura, se dá o investimento concentrado na assistência médico-hospitalar, configurando-se o modelo médico-assistencial privatista. Nele, as atividades preventivas e de saúde pública – incluindo as de educação e comunicação – foram relegadas a um remoto segundo plano nas ações governamentais. Nas telas da recém-nascida televisão, saúde passou a ser crescentemente associada à compra de bens e serviços oferecidos pelo mercado. Para tanto, o regime militar contou com a notável expansão dos meios de comunicação e a constituição de um sistema complexo de informação e de cultura de massa, em que a televisão passou a ser o principal meio de difusão. No contínuo e progressivo investimento em propaganda no Brasil, o Estado já despontava aí como um dos maiores anunciantes.

Nesse período, o mesmo movimento que buscou silenciar qualquer oposição ao regime militar favoreceu a separação das práticas de comunicação e educação nas instituições de saúde, com a respectiva especialização de atividades e perfis profissionais. Nos ministérios e instituições governamentais foram criadas as coordenadorias de comunicação social e os serviços de informação, estes últimos vinculados ao Serviço Nacional de Informações (SNI). Na saúde, atendendo ao reordenamento da administração pública, segundo as normas de planejamento normativo, os setores de educação para a saúde ficaram vinculados às áreas técnicas de cada programa, e as coordenadorias de comunicação ficaram diretamente ligadas aos gestores, passando a responder pela relação com os órgãos de imprensa.

O contexto de consolidação do modelo de saúde centrado no hospital, na dimensão curativa e na mercantilização da atenção é também o de sofisticação dos modelos da matriz transferencial de comunicação e, de forma mais abrangente, da escalada hegemônica da publicidade. De lá para cá, em escala mundial, se deu a intensificação do desenvolvimento tecnológico, marcadamente de informação e comunicação, com a penetração da televisão e da mídia em todos os setores das sociedades ocidentais, delineando novos padrões de consumo. Tecnologia aqui deve ser entendida em sentido amplo e em suas diversificadas conexões com a economia, cultura, formas de sociabilidade e temporalidades. Alguns autores, considerando a magnitude das mudanças sociais relacionadas à informatização e expansão das redes mundiais de comunicação, têm chamado esse processo de midiatização da sociedade, que repercute cada vez mais nas instituições de saúde (Fausto Neto, 2007; Sodré, 2006).

É importante não perder de vista, porém, que os modelos de comunicação não se sucedem de forma cronológica e linear, mas coexistem em diferentes configurações, atravessados por variáveis socioeconômicas e culturais, além daquelas mais afeitas à dinâmica do campo da saúde, como o quadro epidemiológico, as concepções e estratégias de assistência, prevenção e promoção. Por outro lado, embora a matriz transferencial nunca tenha sido seriamente ameaçada no âmbito das instituições e programas de saúde, sempre esteve tensionada por disputas, oposições e propostas contra-hegemônicas, em geral inspiradas em Paulo Freire e nas teorias críticas de comunicação (Fiocruz, 1998; 1999).

Comunicação e SUS

O movimento de reforma sanitária brasileira e a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) envolveram e ainda envolvem a reflexão crítica sobre as multifacetadas relações entre saúde e sociedade. O conceito ampliado de saúde e sua inscrição constitucional como direito de cidadania e dever do Estado estabeleceram nítida ancoragem do SUS em um projeto social mais amplo e democrático, comprometido com a superação das desigualdades sociais, com a eqüidade em saúde e participação social nas políticas e estratégias de saúde. Amplas coordenadas, que estimulam a superação de visões e práticas descontextualizadas e tecnicistas, de forma simultânea à construção de relações mais horizontais no interior das equipes de saúde e destas com a população.

Um conceito de saúde que não mais se define por ausência de doenças, que estabelece vínculos indissolúveis com a democracia e com a qualidade de vida da população, trouxe a dilatação de temas e segmentos envolvidos nas ações e políticas públicas. O campo da comunicação e saúde não ficou imune a esse processo. A partir de meados dos anos 80, a dinâmica e as necessidades manifestas no cotidiano dos serviços, movimentos, conselhos e conferências de saúde, muitas vezes extrapolaram os limites e possibilidades das tradicionais assessorias de imprensa. Ativistas e entidades envolvidos na construção do SUS passaram a reivindicar, simultaneamente, acesso às informações oficiais, às tecnologias de comunicação e mais espaço na mídia para os temas da saúde e do SUS. Lutaram também pelo poder de fala, tradicionalmente concentrado nas instituições e autoridades, recusando a imobilidade de ‘públicos alvo’ ou a posição de elos privilegiados de uma cadeia de transmissão unidirecional. Afirmando-se como detentores de uma palavra também autorizada, por um tipo específico de capital político que advém da liderança e representatividade social, questionaram as idéias e as práticas de uma participação comunitária restrita e regulada, própria dos discursos desenvolvimentista e populista.

Nesses vinte anos de SUS, com muitos reveses e toda sorte de obstáculos, práticas mais democráticas de comunicação têm emergido, assim como têm sido fortalecidos o ensino e a pesquisa. O enfrentamento da Aids tem sido freqüentemente apontado como exemplo das potencialidades – inovadoras estratégias de mobilização e crítica, diversidade de atores e de articulação em redes em escala planetária –, mas também dos desafios, quando se depara com a ‘indústria da Aids’ e se verifica a escalada da epidemia junto aos segmentos mais vulneráveis socialmente e nas regiões do planeta com menor visibilidade e poder de pressão.

Por outro lado, na maior parte das instituições governamentais e não-governamentais, ganha espaço o modelo publicitário e suas variações, nos moldes preconizados pelo neoliberalismo. Discursos, sistemas de nomeação e modelos de atuação se apresentam sucessivamente, propondo abordagens que, se avançam técnica ou metodologicamente em relação à perspectiva desenvolvimentista, se distanciam da possibilidade de uma comunicação que considere os princípios do SUS, ou mesmo as conquistas das teses freireanas, já remotas no tempo. Assim, por essas abordagens – a do Marketing Social na Saúde é um bom exemplo – o direito à comunicação, como correlato ao direito à saúde, é substituído pelo direito do consumidor, o cidadão passa a ser tratado como ‘cliente’ e os objetivos reeditam a velha fórmula persuasiva para a adoção de hábitos e medidas preconizados pelas instituições de saúde.

Entre as diferentes concepções que movimentam o campo da comunicação e saúde, destacamos aquelas que entendem a comunicação como o permanente e sempre disputado processo de conferir sentido aos eventos, fenômenos, experiências e discursos sobre o mundo e a sociedade. São muitos os desdobramentos desse ponto de vista, entre os quais vale destacar a recusa de um significado pronto e acabado em cada palavra, passível de ser transferido e compreendido pelos ‘receptores’ tal e qual imaginado pelo ‘emissor’. Como propõe Bakthin (1988, 1992), cada palavra comporta múltiplos sentidos, é habitada por diferentes vozes, configurando uma polifonia ancorada na alteridade como princípio ontológico, mas também na desigual estrutura social. Nesse enfoque, os diferentes contextos – histórico, econômico, político, institucional, mas também o textual, intertextual, o existencial e o situacional (Araújo e Cardoso, 2007) desempenham papel decisivo nos processos comunicacionais.

Embora não se subestime as assimetrias de toda ordem que caracterizam a desigual sociedade brasileira – na saúde, na comunicação e de forma notória na mídia –, isto não leva a desconsiderar que cada indivíduo, grupo ou instituição transita entre as posições de emissão e recepção, além de agir na circulação social dos discursos. Por essa razão, ao invés de cristalizar as posições, tomamos os participantes de um processo de comunicação como interlocutores, conferindo destaque aos variados lugares que ocupam, nos diferentes contextos e relações de poder dos quais participam. Nessa perspectiva, comunicação é pensada como espaço de desigual concorrência material e simbólica, que compreende não só a instância da produção discursiva, tão exacerbada nas instituições de saúde, mas também as suas condições sociais de circulação e apropriação.

A agenda da Comunicação e Saúde acolhe hoje desafios de diferentes naturezas, mas de igual magnitude, que demandam esforços teóricos políticos e institucionais de caráter intersetorial, de diversos campos do saber – antropologia, sociologia, história, semiologia, estudos culturais etc. - e de diferentes vertentes de estudos da comunicação, tais como a economia política da comunicação, estudos midiáticos e análise de discursos. Entre as prioridades, destacam-se: avançar na produção do conhecimento sobre as complexas relações entre esses dois campos sociais para compreender melhor, entre outros aspectos, a relação entre discurso e mudança social, os processos de midiatização e os dispositivos de biopoder; desenvolver, em profunda articulação com a pesquisa, esforços concentrados para a formação de profissionais com capacidade crítica e para a elaboração de estratégias e políticas públicas de comunicação coerentes com os princípios do SUS; estabelecer a articulação com o movimento pela democratização da comunicação no Brasil, destacando a conquista do direito à comunicação, sem o qual dificilmente se avançará no projeto da reforma sanitária brasileira.

Como se vê, são diferentes e muitas vezes antagônicos os modos de conjugar, na prática e na teoria, comunicação e saúde. Se por um lado percebemos aí a resistência dos modelos hegemônicos e os obstáculos a uma real mudança nas práticas comunicativas, mesmo que desejada, por outro lado temos evidências da vitalidade da sociedade e seus diferentes modos de produzir a realidade.

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