Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Capital Cultural

Lúcia Maria Wanderley Neves Marcela Alejandra Pronko Sônia Regina de Mendonça

Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, pioneiro na sistematização do conceito, a segunda mais importante expressão do capital, à qual precede apenas o capital econômico portado pelos agentes sociais. Engloba prioritariamente, a variável educacional, embora não se limite apenas a ela.

Para o autor, a educação/’capital cultural’ consiste num princípio de diferenciação quase tão poderoso como o do capital econômico, uma vez que toda uma nova lógica da luta política só pode ser compreendida tendo-se em mente suas formas de distribuição e evolução. Isto porque, o sistema escolar realiza a operação de seleção mantendo a ordem social preexistente, isto é, separando alunos dotados de quantidades desiguais – ou tipos distintos – de ‘capital cultural’. Mediante tais operações de seleção, o sistema escolar separa, por exemplo, os detentores de ‘capital cultural’ herdado daqueles que são dele desprovidos. Ademais, ao instaurar uma cesura entre alunos de grandes escolas e alunos das faculdades, a instituição escolar, geradora do ‘capital cultural’, institui fronteiras sociais análogas às que separam o que Bourdieu denomina “nobreza” e “simples plebeus”. Essas separações materializam-se, dentre outras, em diferenças de natureza marcada pelo direito de os alunos portarem um nome, um título, numa espécie de operação mágica, gerada pelo sentido simbólico inerente a semelhantes atos de classificação. Logo, o ‘capital cultural’/sistema escolar resulta de atos de ordenação que, por um lado, instituem uma relação de ordem – onde os ‘eleitos’ são marcados por sua trajetória de vida e sua pertinência escolar – e uma relação de hierarquia – onde esses mesmos ‘eleitos’ transmutam-se em ‘nobreza de escola’ ou ‘nobreza de Estado’.

A entrega de diplomas que, mediante cerimônias solenes comparáveis ao ato de sagrar ‘cavaleiros’, possui uma função técnica evidente – a de formar/transmitir uma competência e selecionar os mais competentes tecnicamente –, mascara uma função social clara: a consagração dos detentores estatutários do direito (competência) de dirigir. Essa ‘nobreza de escola’ comporta parte significativa dos herdeiros da antiga ‘nobreza de sangue’, que reconverteram seus títulos nobiliários em títulos escolares, justificados pela meritocracia.

A instituição escolar, assim, contribui para reproduzir tanto a distribuição do ‘capital cultural’ quanto a do próprio espaço social. A reprodução da estrutura da distribuição do ‘capital cultural’ se opera na relação entre as estratégias das famílias e a lógica específica da instituição escolar que outorga, sob a forma de ‘credenciais’, ao capital cultural detido pela família, suas propriedades de posição. Do mesmo modo, milhares de professores aplicam a seus alunos categorias de percepção e de análise que serão por eles introjetados e interferirão, futuramente, em suas próprias ações sociais. Dentre essas categorias, temos, por exemplo, o binômio ‘aluno brilhante/aluno apagado’.

Entretanto, a ordem social que assegura o modo de reprodução da componente escolar tem sofrido graus de tensão consideráveis nas últimas décadas do século XX com a superprodução de diplomados e a conseqüente desvalorização dos diplomas e das próprias posições universitárias, que se multiplicaram sem a abertura de novas carreiras em proporção equivalente.

O ‘capital cultural’ pode existir sob três formas: incorporado, objetivado e institucionalizado. Na primeira modalidade, o ‘capital cultural’ supõe um processo de interiorização nos marcos do processo de ensino e aprendizagem, que implica, pois, um investimento de tempo. Desse modo, o ‘capital cultural incorporado’ constitui-se parte integrante da pessoa, não podendo, justamente por isso, ser trocado instantaneamente, tendo em vista que está vinculado à singularidade até mesmo biológica do indivíduo. Nesse sentido, está sujeito a uma transmissão hereditária que se produz sempre de forma quase imperceptível. Segundo Bourdieu (1997, p. 86),

acumulação de capital cultural desde a mais tenra infância – pressuposto de uma apropriação rápida e sem esforço de todo tipo de capacidades úteis – só ocorre sem demora ou perda de tempo, naquelas famílias possuidoras de um capital cultural tão sólido que fazem com que todo o período de socialização seja, ao mesmo tempo, acumulação. Por conseqüência, a transmissão do capital cultural é, sem dúvida, a mais dissimulada forma de transmissão hereditária de capital.

Já o ‘capital cultural objetivado’, diversamente do anterior, é materialmente transferível a partir de um suporte físico, ficando claro tratar-se da transferência de uma propriedade legal, posto estar diretamente relacionada com o capital cultural incorporado, ou melhor, com as capacidades culturais que permitem o desfrute de bens culturais. Logo, o ‘capital cultural’ objetivado pode ser apropriado tanto materialmente (capital econômico) quanto simbolicamente (obra de arte, capital cultural). Por último, tem-se o ‘capital cultural institucionalizado’ que alude à objetivação do ‘capital cultural incorporado’ sob a forma de títulos que estão, simultaneamente, garantidos e sancionados legalmente. Por meio do título escolar ou acadêmico, outorga-se reconhecimento institucional ao ‘capital cultural’ possuído por uma determinada pessoa.

Uma vez admitido, a partir de Bourdieu, que nenhum tipo de dominação se sustenta sem fazer-se reconhecer, conseguindo que as bases arbitrárias sobre as quais se assenta sejam irreconhecíveis enquanto tais, é possível afirmar que o autor fornece instrumentos – articulando conceitos como o de ‘capital cultural’, dentre outros – fundamentais para explicar a especificidade e a força do poder simbólico, isto é, a capacidade que têm os sistemas de sentido e significação de proteger e reforçar as relações de opressão e de exploração, ocultando-as sob o manto ora da natureza, ora da benevolência, ora da meritocracia. Segundo alguns autores, a sociologia de Bourdieu é uma “economia política da violência simbólica”, desvendando os mecanismos de imposição e inculcação dos instrumentos de conhecimento e de construção da realidade que estão a ela submetidos, sem assim serem percebidos..

Semelhantes categorias explicativas da vida social não possuem uma validade circunscrita apenas ao âmbito dos espaços nacionais. Hoje, mais do que nunca, o imperialismo cultural se apóia no poder de universalizar particularismos ligados a uma tradição histórica singular – estadunidense -, sem serem assim reconhecidos. Opera-se uma espécie de ‘neutralização’ da história, decorrente da própria circulação internacional de textos, bem como do esquecimento relativo das conjunturas históricas nas quais eles mesmos foram produzidos. Essa universalização aparente é ratificada pelo trabalho de ‘teorização’, espécie de axiomatização fictícia, destinada a criar a ilusão de uma ‘gênese pura’ e ‘única’ mediante um receituário de definições prévias. Assim, planetarizados no sentido estritamente geográfico e desparticularizados pelo efeito da falsa ruptura derivada da conceitualização, os lugares-comuns da atual vulgata globalitária – reforçados pela mídia – chegam a fazer esquecer que eles próprios se originaram em realidades sociais complexas e controversas, historicamente determinadas.

Por certo se está falando da hegemonia que a produção norte-americana exerce sobre o mercado intelectual mundial e, quanto a isto, deve-se considerar o papel daqueles que se colocam como ‘pontas de lança’ das estratégias de importação-exportação conceitual, mistificações que transportam a parte oculta dos próprios bens culturais que colocam em circulação. No pensamento de Bourdieu, são esses ‘transportadores’ que, no seio de cada campo intelectual nacional, arvoram-se em ‘especialistas’ supostamente capazes de reformular – em termos alienados – questões as mais diversas, dentre elas, a dos sistemas de ensino. Trata-se de importadores que produzem, reproduzem e fazem circular uma série de falsos problemas, disso extraindo benefícios simbólicos e mesmo materiais. Se é fato que essa tendência à des-historicização é um dos fatores que contribui para a desrealização e a falsa universalização, é também claro que somente uma efetiva história da gênese das idéias sobre o mundo social juntamente a uma análise dos mecanismos sociais da circulação internacional dessas mesmas idéias podem equipar os cientistas sociais para combatê-las.

Do mesmo modo como ocorreu com o conceito de capital social, no início dos anos 2000, os organismos internacionais, notadamente a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), ressignificaram o conceito de ‘capital cultural’, para incorporá-lo à sua estratégia de desenvolvimento social para o século que se inicia. Como parte relevante do capital social (ver verbete Capital Social), o ‘capital cultural’ adquire importância fundamental na redefinição do papel econômico e de legitimação social do Estado contemporâneo. Na América Latina, perante a constatação do aumento da miséria e dos conseqüentes riscos à paz social na região, o conceito foi introduzido pelos organismos internacionais e pelos governos nacionais como elemento definidor das políticas sociais, com vistas a aliviar a pobreza e fortalecer a coesão social. O conceito de ‘capital cultural’, nessa nova versão, vem sendo difundido na região pelos trabalhos de Bernardo Kliksberg, assessor de diversos organismos internacionais (ONU, OEA, BID, Unesco) e diretor do Projeto da Organização das Nações Unidas para a América Latina de Modernização do Estado e Gerência Social.

O ‘capital cultural’, conceito em construção, é o conjunto de elementos da cultura popular utilizados como ingredientes da política social para fortalecer a autoconfiança dos despossuídos, desenvolver valores de uma nova cultura cívica baseada na colaboração de classes e na ética da responsabilidade coletiva, contribuir para o desenvolvimento econômico e a coesão social. Desta perspectiva, a revalorização da cultura dos pobres passa a se constituir em importante instrumento de construção de práticas democráticas baseadas no associativismo comunitário, potencializando energia social criativa. Assim, a despeito da pobreza material, os pobres latino-americanos se transmutariam em ricos de espírito, constituindo-se em reservatório da cultura nacional. O ‘capital cultural’, segundo esta formulação, pode desempenhar uma função integradora, atraente e concreta para os jovens que se encontram fora do mercado de trabalho e do sistema educacional.

A noção de ‘capital cultural’ visa, portanto, conservar as relações sociais capitalistas, construindo uma nova sociabilidade a partir da redefinição da relação entre Estado e sociedade civil, apontando para uma ‘ação integrada’ entre essas duas esferas. Segundo seus formuladores, o ‘capital cultural’ contribui, assim, para a formação da ética da responsabilidade coletiva, para o fortalecimento da subjetividade, e consubstancia-se em uma estratégia de recomposição da cidadania perdida pelo aumento da desigualdade, a partir de práticas democráticas baseadas no voluntariado, na ajuda mútua e na concertação social.

O desenvolvimento de políticas sociais na América Latina e no Brasil nos anos 2000, inspiradas na utilização combinada dos conceitos de capital social e de ‘capital cultural’ nessa nova versão, vem-se configurando como instrumento de apassivamento dos movimentos sociais, pela conversão da sociedade civil de espaço de confronto a espaço de colaboração. As políticas sociais que têm nesses conceitos sua diretriz teórica são executadas pelos órgãos governamentais e também pelos variados aparelhos privados de hegemonia na sociedade civil, notadamente, os empresários nacionais e transnacionais, as igrejas e, até mesmo, parcelas da classe trabalhadora.

Para saber mais

BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial, 1997: o Estado num mundo em transformação. Washington, 1997.

BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

BOURDIEU, P. Capital Cultural, Escuela y Espacio Social. México: Siglo Veinteuno, 1997.

ENCREVÉ, P. & LAGRAVE, R.-M. (Coords.) Trabalhar com Bourdieu. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

FONTES, V. A sociedade civil no Brasil contemporâneo: lutas sociais e luta teórica na década de 1980. In: LIMA, J. C. & NEVES, L. (Orgs.) Fundamentos da Educação Escolar do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.

GARRISON, J. W. Do Confronto à Colaboração: relações entre a sociedade civil, o governo e o Banco Mundial no Brasil. Brasília: Banco Mundial, 2000.

KLIKSBERG, B. Falácias e Mitos do Desenvolvimento Social. São Paulo/Brasília: Cortez/Unesco, 2001.

WACQUANT, L. (Coord.) El Mistério del Ministerio: Pierre Bourdieu y la política democrática. Barcelona: Gedisa, 2005.

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