Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Currículo por Competências

Marise Nogueira Ramos

Ocurrículo por competências’ é o meio pelo qual a pedagogia das competências se institucionaliza na escola, com o objetivo de promover o encontro entre formação e emprego. O fundamento do ‘currículo por competências’ é a redefinição do sentido dos conteúdos de ensino, de modo a atribuir sentido prático aos saberes escolares, abandonando a preeminência dos saberes disciplinares para se centrar em competências supostamente verificáveis em situações e tarefas específicas. Essas competências devem ser definidas com referência às situações que os alunos deverão ser capazes de compreender e dominar. Somente após essas definições é que se selecionam os conteúdos de ensino. Em síntese, em vez de partir de um corpo de conteúdos disciplinares existentes, com base no qual se efetuam escolhas para cobrir os conhecimentos considerados mais importantes, a elaboração do ‘currículo por competências’ parte da análise de situações concretas e da definição de competências requeridas por essas situações, recorrendo às disciplinas somente na medida das necessidades exigidas pelo desenvolvimento dessas competências.

Do ponto de vista da hierarquização do saber, o discurso sobre as competências pode ser compreendido como uma tentativa de substituir uma representação hierárquica estabelecida entre os saberes e as práticas, notadamente aquela que se estabelece entre o ‘puro’ e o ‘aplicado’, entre o ‘teórico’ e o ‘prático’ ou entre o ‘geral’ e o ‘técnico’ por uma representação da diferenciação que seria essencialmente horizontal e não mais vertical.

Ao discutir a elaboração de ‘currículos por competências’ no ensino profissionalizante, Jiménez (1995) compreende que as competências definidas como referências para o currículo correspondem a unidades para as quais convergiriam e se entrecruzariam um conjunto de elementos que as estruturam (conhecimentos, habilidades e valores). Considerar a competência como unidade e ponto de convergência entre conhecimentos, habilidades e valores congrega a idéia de que a competência constitui uma unidade e de que os elementos isolados perdem esse sentido. A autora indica duas características que se encontram implícitas em qualquer definição de competência: por um lado, centrar-se no desempenho; por outro, recuperar condições em que este desempenho é relevante.

O desempenho é compreendido como a expressão concreta dos recursos que o indivíduo articula quando realiza uma atividade. Uma formação que persiga o desenvolvimento de competências para o desempenho pressupõe selecionar conhecimentos dos quais os estudantes necessitam para aplicar em esquemas operatórios, para entender o que significam e como funcionam, facilitando a ação em situações diversas. Isto implica deixar de fazer a separação entre o saber e o saber- fazer para centrar o esforço em resultados de aprendizagem nos quais se atinge uma integração entre ambos.

Incorporar condições nas quais o desempenho é relevante remete às condições em que se promove e se demanda que o indivíduo ponha em jogo seus recursos. Essa concepção requer que a elaboração dos currículos ocorra por contato direto com as situações de trabalho, o que exige que um dos procedimentos prévios à elaboração curricular pela escola seja a análise dos processos de trabalho para os quais se pretende formar. Quando aplicados aos sistemas de formação, desta análise resultam os documentos referenciais. Na França, eles foram chamados de referenciais de diploma, para a escola, e de referenciais de emprego ou de atividades profissionais, para a empresa. No Brasil, foram elaboradas diretrizes e referenciais curriculares nacionais produzidos pelo Ministério da Educação.

Para análise dos processos de trabalho, ainda que exista uma variedade de metodologias, estas se originam de três matrizes principais: a condutivista, a funcionalista e a construtivista. A matriz condutivista compreende a competência, sobretudo, como uma habilidade que descreve o que a pessoa pode fazer. Assim definida, as competências são características que diferenciam um desempenho superior de um desempenho médio ou pobre. Por isto, a análise parte da pessoa que faz bem seu trabalho de acordo com os resultados esperados.

A análise funcional se origina no pensamento funcionalista da sociologia, tendo sido acolhida pela nova teoria dos sistemas sociais. Por essa teoria, a análise funcional não se refere somente ao sistema em si, mas também à sua relação com o em torno (mercado, tecnologia, relações sociais e institucionais etc.). A análise do processo de trabalho é feita estabelecendo-se uma relação entre problemas e resultados. As competências são deduzidas das relações entre resultados e habilidades, conhecimentos e atitudes dos trabalhadores.

Esta foi a perspectiva adotada pelo Ministério da Educação no Brasil para a elaboração dos referenciais curriculares nacionais do ensino técnico. Estes ficaram organizados em matrizes ou quadros de competências por áreas profissionais, nas quais se definiram funções, subfunções que caracterizam o processo de trabalho; competências e habilidades (‘saber-fazer’) requeridas pelos trabalhadores; bases instrumentais, científicas e tecnológicas, correspondentes aos conteúdos de ensino ou ‘saberes’ necessários ao desenvolvimento das respectivas competências e habilidades. As unidades de aprendizagem, preferencialmente autônomas, organizadas como módulos, teriam esses parâmetros como base. À conclusão de cada módulo poder-se-ia adquirir um título que habilitaria o trabalhador ao exercício de determinadas funções e/ou subfunções.

A matriz construtivista desenvolvida por Bertand Schwartz, na França, tem como finalidade evidenciar as relações mútuas e as ações existentes entre os grupos, seu em torno, as situações de trabalho e as situações de capacitação (Schwartz apud Mertens, 1996). Ou seja, as competências não são deduzidas à parte das necessidades e propostas formativas. O método rechaça a defasagem entre a construção das competências e a implementação de uma estratégia de capacitação. Com isto, as competências não são deduzidas somente a partir da função ocupacional, mas concedem igual importância à pessoa, aos seus objetivos e às suas possibilidades.

Os referenciais curriculares explicitam os elementos que deverão compor o currículo para se lograr o desenvolvimento das competências requeridas pelo trabalho. Tanguy & Ropé (1997) descrevem a metodologia de construção do referencial de diploma: enuncia-se a competência global visada (em termos de ser ‘capaz de’); depois, as capacidades gerais implicadas nessa competência global (que se exprimem geralmente por quatro verbos de ação ou sinônimos: informar-se, organizar, realizar, comunicar); depois, as capacidades e competências terminais e, enfim, os ‘saberes’ e o ‘saber-fazer’ que à competência global são associados. Ao termo desse conjunto de procedimentos, os referenciais de diplomas apresentam-se, à primeira vista, sob forma de quadros que relacionam, de um lado, as funções e atividades principais descritas no referencial do emprego com as capacidades e competências terminais; de outro, as competências terminais com os ‘saberes’ e ‘saber-fazer’ tecnológicos associados. Essa codificação dos diplomas de ensino técnico e profissionalizante repousa, em última instância, sobre uma lista de ‘saber-fazer’. Esses saber-fazer, unidades de base desse ordenamento técnico, são eles mesmos definidos por uma seqüência de relações de encaixe. Como explica Tanguy (1997), com base na regulamentação educacional francesa, eles são estabelecidos com base na lista de tarefas e funções elaborada no referencial de atividades profissionais, podendo ser apreendidos com a expressão ‘ser capaz de’. Concretamente são descritos por um verbo de ação e pelos objetos aos quais a ação se aplica.

Críticas à tamanha racionalização pedagógica não são raras. Malglaive (1994), por exemplo, argumenta que os ‘saber-fazer’, evidência explícita das competências, como ações observáveis, são governados por outras ações, inobserváveis: as ações mentais. Assim, capacidade e atividade correspondem a duas formas de ação: a ação mental, implícita, não observável, correspondente à cognição; e a ação manifesta, explícita, observável, correspondente à atividade. Ainda que sejam mecanismos específicos, capacidade e atividade ou cognição e ação formam uma unidade. Não obstante, os referenciais curriculares cindem esta unidade. Além disto, afirmar que alguém deve ser ‘capaz de’ não diz nada do conteúdo dessa capacidade. Conforme afirma o mesmo autor, as listas de competências nas quais se tenta basear o currículo não dizem nada sobre o que devem adquirir os estudantes para serem capazes de fazer o que se pretende que eles façam. Por isto, é preciso aceitar que o desenvolvimento de competências é uma conseqüência e não o conteúdo em si da formação, e que os efeitos pretendidos com a prática pedagógica podem se constituir no máximo como horizontes, cujos limites se alargam permanentemente na proporção de novas aprendizagens. Sendo assim, o currículo mantém-se baseado em saberes de referência, oriundos dos campos das ciências e das profissões. Pelas críticas apresentadas anteriormente, o chamado ‘currículo por competências’ dificilmente escapa da condição de ser um construto elaborado com base em objetivos de ensino e de aprendizagem, diferindo muito pouco da lógica que orientou sua própria gênese: a adequação da educação aos princípios da eficiência social.

Deluiz (2001) discute a possibilidade de construção de uma matriz crítico-emancipatória, cujos fundamentos teóricos estariam no pensamento crítico-dialético, pretendendo não só ressignificar a noção de competência, atribuindo-lhe um sentido que atenda aos interesses dos trabalhadores, mas também apontar princípios orientadores para a investigação dos processos de trabalho. Em convergência com esta proposição, Ramos (2005) apresentou como princípio epistemológico do currículo a compreensão totalizante dos processos de trabalho, incorporando na análise, além da dimensão científico-tecnológica, as dimensões ético-políticas, sócio-históricas, ambientais, culturais e relacionais do trabalho.

Ocorre, entretanto, que essa perspectiva, por se tratar de uma concepção teórico-metodológica e ético-política da formação de trabalhadores, não é redutível a metodologias de análises de processo de trabalho. Ademais, a descrição precisa, definitiva, exaustiva, de qualquer processo de trabalho, não capta suas múltiplas determinações e, menos ainda, a complexidade da ação humana que está em jogo na sua realização. Concluímos, então, que a possibilidade virtuosa de relacionar as atividades pedagógicas às situações de trabalho e à prática social em geral está no horizonte e, ao mesmo tempo, no limite em que essas relações possam se constituir em referências para a formação plena dos trabalhadores, orientadas pela ampliação de seus conhecimentos, capacidades e atividades intelectuais.

Para saber mais

DELUIZ, N. O modelo das competências profissionais no mundo do trabalho e na educação: implicações para o currículo. Boletim Técnico do Senac, mar., 2001 (Número especial)

JIMÉNEZ, M. del C. El punto de vista pedagógico. In: ARGÜELLES, A. (Org.) Competencia Laboral y Educación Basada en Normas de Competencia. México: Editorial Limusa, 1995.

MALGLAIVE, G. Competência e engenharia de formação. In: PARLIER, M. & WITTE, S. (Orgs.) La Competénce: mythe, construction ou realité? Paris: L'Harmattan, 1994.

MERTENS, L. Sistemas de Competência Laboral: surgimiento y modelos. México: Cinterfor/OIT, 1996. (Resumo Executivo) RAMOS, M. Possibilidades e desafios na organização do currículo integrado. In: FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. & RAMOS, M. (Orgs.) Ensino Médio Integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.

TANGUY, L. Racionalização pedagógica e legitimidade política. In: TANGUY, L. & ROPÉ, F. (Orgs.) Saberes e Competências: o uso de tais noções na escola e na empresa. São Paulo: Papirus, 1997, p. 25-68.

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