O conceito de ‘capital social’ conta com diversas acepções, segundo filiações teórico-metodológicas distintas. A difusão do termo no meio acadêmico é algo recente, tendo adquirido expressão a partir da década de 1980, face à sua larga utilização por parte de sociólogos, antropólogos, economistas, cientistas políticos e planejadores. Seu destaque provém tanto de sua vinculação a conceitos derivados da teoria social quanto de sua associação a disciplinas como a economia, que tem como cerne a idéia de capital. Tanto ‘capital social’ como capital cultural devem-se imbricar ao marco geral proposto por Pierre Bourdieu, sociólogo francês pioneiro na sistematização do conceito. Dentro desse marco, o conceito de capital, em todas a suas manifestações, constitui a chave para dar conta da estrutura, funcionamento e classificação do mundo social.
Assim, o capital pode ser considerado em sua forma econômica (‘capital econômico’) – quando o campo de sua aplicação for o das trocas mercantis, por exemplo, sem que isso implique desconhecer as formas culturais (capital cultural) ou sociais (capital social) de sua aplicação. Bourdieu (1998, p. 67 – grifos do autor) define o ‘capital social’ como
o conjunto dos recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento mútuos, ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como o conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros e por eles mesmos), mas também que são unidos por ligações permanentes e úteis.
Como ele próprio assinala, essas ligações não se reduzem às relações objetivas de proximidade no espaço geográfico ou mesmo no espaço econômico e social, posto serem, inseparavelmente, fundadas em trocas materiais e simbólicas e cuja prática supõe o reconhecimento dessa proximidade.
Neste sentido, o quantum de ‘capital social’ portado por um dado agente depende da extensão da rede de relações por ele mobilizada, assim como do volume de capital – econômico, cultural ou simbólico – que é exclusivo de outro agente ou grupo de agentes ao qual se encontra vinculado. Logo, o ‘capital social’, apesar de ser irredutível ao capital econômico e ao capital cultural (ver verbete Capital Cultural) portado por um dado agente, não pode jamais ser visto como independente de ambos, já que as trocas geradoras do inter-reconhecimento pressupõem o reconhecimento de um mínimo de realidade ‘objetiva’. Isto quer dizer que o reconhecimento das diferentes manifestações do capital não deve deixar de lado nem a capacidade de transformação de cada uma delas – ‘a mútua conversibilidade’ entre os diferentes tipos de capital –, nem, sobretudo, a referência última de cada uma delas ao capital econômico. Afinal, são essas propriedades que permitem explicar a reprodução do ‘capital social’ ao longo do tempo e com ela dar conta, em termos globais, de uma economia geral das práticas sociais. Por certo essa rede de relações não é um dado natural ou “socialmente constituído de uma vez por todas e para sempre” – como no caso da família/genealogia –, mas sim produto de um trabalho permanente de instauração e manutenção, que produz e reproduz relações duráveis capazes de assegurar ganhos materiais ou simbólicos.
O ‘capital social’ está necessariamente associado à noção de ‘estratégias’, já que são elas que constroem a rede de ligações como investimento – consciente ou não – orientado para a reprodução de relações sociais imediatamente utilizáveis. Ou seja, as estratégias destinam-se a transformar relações contingentes – como as de vizinhança, trabalho ou mesmo parentesco – em relações necessárias e eletivas, incluindo-se desde sentimentos de reconhecimento ou respeito até a noção de direitos. E na medida em que a troca torna os ‘objetos’ signos desse reconhecimento mútuo e até mesmo da inclusão no grupo, acaba produzindo o próprio grupo e seus limites. Para Bourdieu, cada membro do grupo encontra-se “instituído como guardião dos limites do grupo”, já que a definição dos critérios de ingresso ao grupo vê-se em jogo a cada nova inclusão de um novo membro.
Assim, a reprodução do ‘capital social’ é tributária de dois fatores. Por um lado, ela é tributária de todas as ‘instituições’ que favorecem as trocas legítimas, gerando ocasiões (cruzeiros, caçadas, saraus etc.), lugares (bairros chiques, escolas seletas etc.) ou práticas (jogos de sociedade, esportes chiques etc.) que reúnem os indivíduos mais homogêneos do ponto de vista da pertinência ao grupo. Por outro, ela é tributária do trabalho de sociabilidade, por meio do qual se reafirma, incessantemente, o reconhecimento, pressupondo investimento de tempo, esforços e mesmo do capital econômico.
O resultado desse trabalho de acumulação do ‘capital social’ será maior quanto mais importante for esse capital, e seu limite é representado pelos detentores de um ‘capital social herdado’. Na medida em que o ‘capital social’ não conta com instituições que propiciem a concentração nas mãos de um só agente da totalidade do ‘capital social’ que funda a existência do grupo – através da representatividade –, cada agente participa do capital coletivamente possuído, ainda que existam assimetrias entre eles, posto existir, sempre, uma concorrência interna ao grupo pela apropriação do ‘capital social’ produzido. Para circunscrever essas concorrências – leia-se conflitos – a limites que não comprometam a acumulação do ‘capital social’ fundante dos vários grupos, estes regulam entre seus participantes a distribuição do direito de instituir-se delegado do grupo.
Os mecanismos de delegação/representação impostos como precondição da concentração do ‘capital social’ contêm, assim, o que Bourdieu chama de “princípio de desvio do capital que eles fazem existir”. Por certo, este tipo de capital tanto pode ser utilizado com vistas à ascensão social quanto com vistas à manutenção de uma dada posição. No entanto, o ‘capital social’ acumulado por meio de determinadas estratégias não pode ser facilmente reconvertido por meio de estratégias distintas, já que a mudança destas põe em questão o próprio valor do ‘capital social’. Logo, além de relacionalmente construído e percebido, o ‘capital social’ é sempre ‘potencial’, uma vez que, embora sugira a possibilidade de ser investido, não oferece a certeza da obtenção dos benefícios almejados.
Importa sinalizar que um dado elemento não pode ser definido, a priori, como capital cultural ou ‘social’, só podendo ser considerado enquanto tal na medida em que demonstre a obtenção de benefícios. Nesse sentido é que podemos considerar as estratégias educativas de determinados setores como apostas na acumulação potencial de ‘capital social’ e cultural. Na segunda metade dos anos de 1990, os organismos internacionais (Banco Mundial, BID, Unesco) ressignificaram o conceito para incorporá-lo à sua estratégia de desenvolvimento social para os anos iniciais do século XXI. O ‘capital social’ adquire nesse contexto importância fundamental na redefinição do papel econômico e de legitimação social do Estado contemporâneo. Na América Latina, perante a constatação do aumento da miséria e dos conseqüentes riscos à paz social na região, o conceito foi introduzido pelos organismos internacionais e pelos governos nacionais como elemento definidor das políticas sociais, com vistas a aliviar a pobreza e fortalecer a coesão social.
Inicialmente o conceito de ‘capital social’ nessa nova versão foi formulado nas universidades norte-americanas através dos estudos de James Coleman e Robert Putnam que datam da primeira metade da década de 1990. Essa formulação foi retomada por Anthony Giddens na sua proposta da “nova social democracia” (a terceira via) e posteriormente sistematizada, para a América Latina, por intelectuais orgânicos dos organismos internacionais como Bernardo Kliksberg e Norbert Lechner.
Segundo esta nova formulação, ainda em construção, o ‘capital social’ é o conjunto de elementos da organização social, encarnados em normas e redes de compromisso cívico, que constitui um pré-requisito para o desenvolvimento econômico assim como para um governo efetivo. São elementos básicos do ‘capital social’ a autoconfiança que gera a confiança social, as normas de reciprocidade (associativismo) e as redes de compromisso cívico (responsabilidade social). Especificamente na América Latina, o conceito de ‘capital social’ é dirigido às comunidades locais e às populações pobres. A noção de ‘capital social’ visa, portanto, a conservar as relações sociais capitalistas, construindo uma nova sociabilidade a partir da redefinição da relação entre Estado e sociedade civil, apontando para uma ‘ação integrada’, baseada na colaboração, entre essas duas esferas.
Segundo seus formuladores, o capital social’ é, assim, um instrumento para formação da ética da responsabilidade coletiva, de fortalecimento da subjetividade e uma estratégia de recomposição da cidadania perdida pelo aumento da desigualdade, a partir de práticas democráticas baseadas no voluntariado e na concertação social. O ‘capital social’ é, ainda, um componente intangível do desenvolvimento econômico.
O desenvolvimento de políticas sociais na América Latina e no Brasil nos anos 2000, inspiradas na utilização deste conceito, vem-se constituindo em instrumento de apassivamento dos movimentos sociais, pela conversão da sociedade civil de espaço de confronto a espaço de colaboração. Elas são executadas diretamente pelos órgãos governamentais e indiretamente pelos variados parceiros na sociedade civil, notadamente, os empresários nacionais e transnacionais, as igrejas e, até mesmo, parcelas da classe trabalhadora.
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