Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Cuidado em Saúde

Roseni Pinheiro

Cuidado e a vida cotidiana

Cuidado é um ‘modo de fazer na vida cotidiana’ que se caracteriza pela ‘atenção’, responsabilidade’, ‘zelo’ e ‘desvelo’ ‘com pessoas e coisas’ em lugares e tempos distintos de sua realização. A importância da vida cotidiana na produção do ‘cuidado’ está na oferta de múltiplas questões específicas que circulam no espaço da vida social e nos conteúdos históricos que carregam. O cotidiano é produzido social e historicamente sob dois ângulos: primeiro, porque se trata – como noção geral e dimensão do conhecimento – do ‘vivido’, quer dizer, do repetitivo-singular, do conjuntural-estrutural: no cotidiano ‘as coisas acontecem sempre’. Segundo, porque essa noção se constrói e se identifica com o dia-após-dia em que tudo é igual e tudo muda – ‘nada como um dia após o outro’ – ao menos em algumas sociedades, não em todas.

O dia-após-dia assim concebido é uma dimensão da vida social singular- específica, o que significa dizer que ele delimita tempos, espaços, interações, ou seja, um modo de vida, cuja produção de ‘cuidado’ se faz contextualizada exercendo efeitos e repercussões na vida dos sujeitos e se transformando em ‘experiência humana’. O ‘cuidado’ consiste em um modo de agir que é produzido como ‘experiência de um modo de vida específico e delineado’ por aspectos políticos, sociais, culturais e históricos, que se traduzem em ‘práticas’ de ‘espaço’ e na ‘ação’ de ‘cidadãos’ sobre os ‘outros’ em uma dada sociedade.

Daí o ‘cuidado como ato’ resulta na ‘prática do cuidar’, que, ao ser exercida por um cidadão, um sujeito, reveste-se de novos sentidos imprimindo uma identidade ou domínio próprio sobre um conjunto de conhecimentos voltados para o ‘outro’. O outro é o lugar do ‘cuidado’. O outro tem no seu olhar o caminho para construção do seu ‘cuidado’, cujo sujeito que se responsabiliza por praticá-lo tem a tarefa de garantir-lhe a autonomia acerca do modo de andar de sua própria vida.

Prática do cuidar e os praticantes

Cuidar deriva do latim cogitare que significa ‘imaginar’ ‘pensar’, ‘meditar’, ‘julgar’, ‘supor’, ‘tratar’, ‘aplicar’ a atenção, ‘refletir’, ‘prevenir’ e ‘ter-se’. Cuidar é o ‘cuidado’ em ato. A origem da prática de cuidar teve seu início restrito ao espaço doméstico, privado, particular. Desde a Grécia Antiga identifica-se que a prática do cuidar vem sendo exercida no interior das famílias, e sua realização demandava um saber prático adquirido no fazer cotidiano, passando, assim, de geração a geração. Nesta época, a gestão do cuidado era uma tarefa feminina. Quem cuidava da casa dos filhos, dos escravos dos doentes eram as mulheres. Aliás, uma responsabilidade bastante repetida até os dias de hoje em muito cotidianos familiares.

Em um determinado momento, boa parte desse saber foi concebido como profissão de mulheres e para mulheres, sobretudo na saúde foi a enfermagem a profissão que mais incorporou a prática do cuidar como campo de domínio próprio. Não é à toa que a prática de cuidar está histórica e culturalmente conectada ao feminino, pois, ao longo dos anos, essa atividade esteve atrelada à trajetória desenvolvida pela mulher nas sociedades ocidentais modernas. Por outro lado, a prática de pesquisar, ou seja, de criar novos conhecimentos, historicamente, tem sido concebida como prática masculina. Vemos nesta concepção uma expressão da divisão social e sexual do trabalho, na qual a sociedade delimita com bastante precisão os campos em que pode operar a mulher, da mesma forma como escolhe os terrenos em que pode atuar o homem.

Pierre Bourdieu é um dos autores que destaca que o mundo social produz nos sujeitos um modo de ser e de estar no mundo, e este é diferenciado para homens e mulheres. Ou seja, a sociedade acaba por imprimir na mulher um conjunto de valores que lhe confere uma performance específica. Entretanto, vários movimentos reflexivos de crítica a esse modelo societal de divisão do trabalho, sobretudo com a contribuição do movimento feminista e sua produção de conhecimentos, têm contribuído de forma decisiva para modificá-lo. No mundo contemporâneo, constata-se que a prática de pesquisar é sinérgica à prática do cuidar e vice-versa, na medida em que a vida cotidiana evidencia cada vez mais a crescente demanda por ‘cuidado’. Mais que isso, constata-se que a demanda por ‘cuidado’ vem, dia após dia, se complexificando, o que tem exigido cada vez mais a atuação de diferentes sujeitos-cidadãos-profissionais, mulheres e homens, cujo ‘outro’ demandante, cada vez mais requererá atenção, responsabilidade, zelo e desvelo com seus desejos, suas aspirações e especificidades, de modo a incluí-lo na tomada de decisão sobre sua vida, ou melhor dizendo, sobre sua saúde.

Cuidado Integral de Saúde

Cuidado em saúde’ não é apenas um nível de atenção do sistema de saúde ou um procedimento técnico simplificado, mas uma ação integral que tem significados e sentidos voltados para compreensão de saúde como o ‘direito de ser’. Pensar o direito de ser na saúde é ter ‘cuidado’ com as diferenças dos sujeitos – respeitando as relações de etnia, gênero e raça – que são portadores não somente de deficiências ou patologias, mas de necessidades específicas. Pensar o direito de ser é garantir acesso às outras práticas terapêuticas, permitindo ao usuário participar ativamente da decisão acerca da melhor tecnologia médica a ser por ele utilizada.

Cuidado em saúde’ é o tratar, o respeitar, o acolher, o atender o ser humano em seu sofrimento – em grande medida fruto de sua fragilidade social –, mas com qualidade e resolutividade de seus problemas. O ‘cuidado em saúde’ é uma ação integral fruto do ‘entre-relações’ de pessoas, ou seja, ação integral como efeitos e repercussões de interações positivas entre usuários, profissionais e instituições, que são traduzidas em atitudes, tais como: tratamento digno e respeitoso, com qualidade, acolhimento e vínculo.

O cuidar em saúde é uma atitude interativa que inclui o envolvimento e o relacionamento entre as partes, compreendendo acolhimento como escuta do sujeito, respeito pelo seu sofrimento e história de vida. Se, por um lado, o ‘cuidado em saúde’, seja dos profissionais ou de outros relacionamentos, pode diminuir o impacto do adoecimento, por outro, a falta de ‘cuidado’ – ou seja o descaso, o abandono, o desamparo – pode agravar o sofrimento dos pacientes e aumentar o isolamento social causado pelo adoecimento. O modelo biomédico que orienta o conjunto das profissões em saúde, ao se apoiar nos meios diagnósticos para evidenciar leões e doenças, afastou-se do sujeito humano sofredor como totalidade viva e permitiu que o diagnóstico substituísse a atenção e o ‘cuidado’ integral à saúde. Entretanto, mais do que o diagnóstico, os sujeitos desejam se sentir cuidados e acolhidos em suas demandas e necessidades. O ‘cuidado em saúde’ é uma dimensão da integralidade em saúde que deve permear as práticas de saúde, não podendo se restringir apenas às competências e tarefas técnicas, pois o acolhimento, os vínculos de intersubjetividade e a escuta dos sujeitos compõem os elementos inerentes à sua constituição.

O ‘cuidado’ é uma relação intersubjetiva que se desenvolve em um tempo contínuo, e que, além do saber profissional e das tecnologias necessárias, abre espaço para negociação e a inclusão do saber, dos desejos e das necessidades do outro. O trabalho interdisciplinar e a articulação dos profissionais, gestores dos serviços de saúde e usuários em redes, de tal modo que todos participem ativamente, podem ampliar o ‘cuidado’ e fortalecer a rede de apoio social. Com isso, a noção de ‘cuidado’ integral permite inserir, no âmbito da saúde, as preocupações pelo bem estar dos indivíduos – opondo-se a uma visão meramente economicista – e devolver a esses indivíduos o poder de julgar quais são suas necessidades de saúde, situando-os assim como outros sujeitos e não como outros-objetos.

Para saber mais

PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3.ed. Hucitec/IMS/Uerj-Abrasco. 2005.

ANDRADE, M. M. A Vida Comum: espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: Eduff, 2002.

DAHER, D. V. et al. Cuidar e pesquisar: práticas complementares ou excludentes? Revista Latino-americana de Enfermagem, 10(2): 145-150, mar.-abr., 2002.

AYRES, J. R. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 6(1): 63-72, 2001.

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