Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Capital Humano

Gaudêncio Frigotto

A forma mediante a qual o ser humano busca significar ou representar a realidade da qual faz parte traduz-se pela mediação de conceitos, categorias, noções ou simplesmente vocábulos. O pensamento não cria a realidade como entendia Hegel, mas, pelo contrário, este é o modo mediante o qual os seres humanos buscam apreendê-la e explicitá-la (Marx, 1983, p. 218-229; Kosik, 1986, p. 9-32).

O grau de implicação do ser humano é diverso quando busca explicar os fenômenos da natureza ou os fenômenos sociais ou humanos – respectivamente, ‘sociedade das coisas’ e ‘sociedade dos homens’, como as denominou Gramsci (1978). Em ambos os casos, trata-se de um conhecimento histórico e, portanto, sempre relativo. Todavia, a implicação dos seres humanos no segundo caso é de natureza diferente por duas razões fundamentais: em primeiro lugar porque tratam da realidade por eles produzida e aparecem, portanto, ao mesmo tempo como sujeito e objeto e, em segundo lugar, porque até o presente as sociedades humanas vêm cindidas em classes sociais – vale dizer, portadoras de interesses antagônicos. Por isso, como evidencia Marx (1977), os pensamentos dominantes historicamente foram os das classes dominantes. Por esta condição histórica, os processos de conhecimento, consciente ou inconscientemente, carregam a origem de classe e, enquanto tais, não são neutros (Lowy, 1978, p. 9-34).

A noção de ‘capital humano’, que se afirma na literatura econômica na década de 1950, e, mais tarde, nas décadas de 1960 e 1970, no campo educacional, a tal ponto de se criar um campo disciplinar – economia (política) da educação –, explicita de forma exemplar as duas razões anteriormente expostas sobre a especificidade do conhecimento nas ciências sociais e humanas. Trata-se de uma noção que os intelectuais da burguesia mundial produziram para explicar o fenômeno da desigualdade entre as nações e entre indivíduos ou grupos sociais, sem desvendar os fundamentos reais que produzem esta desigualdade: a propriedade privada dos meios e instrumentos de produção pela burguesia ou classe capitalista e a compra, numa relação desigual, da única mercadoria que os trabalhadores possuem para proverem os meios de vida seus e de seus filhos – a venda de sua força de trabalho (Frigotto, 2006).

A não explicitação dos fundamentos reais da desigualdade social não decorre de uma atitude premeditada ou maquiavélica dos intelectuais da burguesia, mas do caráter de classe, de sua forma de analisar a realidade social. Ou seja, presos às representações capitalistas, como nos assinala Marx em diferentes passagens de sua obra, os economistas e intelectuais burgueses percebem como se produz dentro da relação capitalista, mas não como se produz esta própria relação. Por isso, as abordagens, como veremos a seguir, são de caráter funcionalista, fragmentário, pragmático e circular.

Com efeito, como explica o economista Theodoro Schultz (1962), a noção ou conceito de ‘capital humano’ por ele elaborado surgiu nos nos de 1956-57 no Centro de Estudos Avançados das Ciências do Comportamento face à sua perplexidade ante os fatos de que os conceitos por ele utilizados para avaliar capital e trabalho estavam se revelando inadequados para explicar os acréscimos que vinham ocorrendo na produção. Em contrapartida, sinaliza Schultz, percebia que muitas pessoas nos Estados Unidos estavam investindo fortemente em si mesmas, que estes investimentos tinham significativa influência sobre o crescimento econômico, que o investimento básico em si mesmas era um ‘capital humano’ e que aquilo que constituía basicamente este capital era o investimento na educação. O outro elemento constitutivo do ‘capital humano’ é o investimento em saúde.

Foi a partir dessas observações que Schultz se dedicou à elaboração mais sistemática deste conceito expondo-a na obra cujo título é Capital Humano (Schultz, 1973). Partindo do pressuposto de que o componente da produção que decorre da instrução é um investimento em habilidades e conhecimentos que aumenta as rendas futuras semelhante a qualquer outro investimento em bens de produção, Schultz define o ‘capital humano’ como o montante de investimento que uma nação ou indivíduos fazem na expectativa de retornos adicionais futuros.

Por essa via, Schultz pretendeu tirar da economia neoclássica o enigma que não conseguia explicar o agravamento da desigualdade entre nações e entre indivíduos e grupos sociais. Estava oferecendo, pois, aos intelectuais pesquisadores e à classe burguesa no seu conjunto, um novo ‘fator’, que, somado aos demais representaria a solução do enigma do maior ou menor desenvolvimento entre nações e maior ou menor mobilidade social entre indivíduos. A concessão do prêmio Nobel de Economia em 1979 pela elaboração deste conceito, a despeito das polêmicas internas dos economistas burgueses, é um claro reconhecimento de que o mesmo expressa a visão legítima de classe para explicar a desigualdade econômica e social entre países e entre indivíduos.

O fator H (capital humano) passou a compor a função de produção da teoria econômica marginalista para explicar os diferenciais de desenvolvimento entre países e entre indivíduos. Assim, a variação de desenvolvimento maior ou menor entre países ou a mobilidade social dos indivíduos que dantes eram explicados por A (nível de tecnologia), K (insumos de capital) e L (insumos de mão-de-obra) agora recebia um novo fator H como potenciador do fator L. Países que investissem mais no fator H teriam a chave para sair de sua condição de subdesenvolvidos para desenvolvidos, e os indivíduos teriam maiores rendimentos futuros e ascensão social. A fórmula permitia, por outro lado, trabalhar dentro de técnicas quantitativas, elemento crucial, na concepção positivista e funcionalista, para que o conhecimento possa ser considerado neutro e científico.

A teoria marginalista é assim denominada porque supõe que havendo um incremento adicional (marginal) de um dos insumos haverá um rendimento e um retorno adicional futuro. O fator H - composto por habilidades, conhecimentos, atitudes, valores - constitui, para Shultz, o insumo adicional gerador de um diferencial no desenvolvimento entre os países. Como método de análise comparativa entre países, Schultz tomou o PIB (Produto Interno Bruto) como medida de desenvolvimento econômico e a escolaridade básica como medida do capital humano. As críticas internas das análises macroeconômicas devido não à discordância de concepção, mas às dificuldades de dados e sua consistência conduziram muitos economistas a preferirem as abordagens microeconômicas. Nestas abordagens os retornos do investimento que permitem mobilidade individual ou de grupos específicos são mensurados pelas taxas de retorno das escolhas nos tipos e níveis de escolaridade (Becker, 1964; Blaug, 1972).

Quais são os elementos que nos permitem sustentar que a noção ou conceito de ‘capital humano’ resulta de uma representação ou limite de classe dos economistas e intelectuais burgueses que os conduzem a perceber como se produzem, dentro da relação capitalista, as disfunções, disparidades e, até mesmo as desigualdades, mas não como se produz esta própria relação, e que, como conseqüência, tornam sua análise circular e reducionista?

O primeiro e principal elemento que orienta e falseia os demais é o pressuposto da concepção liberal de natureza e comportamento humano que fundamenta a ciência econômica, social e política burguesa. Para o pensamento liberal, todos os indivíduos nascem com as mesmas predisposições naturais demarcadas pela busca racional do que é agradável e útil. Todos, portanto, aparecem no mercado em iguais condições de escolha individual. Trata-se de um homem econômico racional, “filho[s] do iluminismo e, portanto um individualista em busca do proveito próprio” (Hollis & Nell, 1969, p. 39). Todavia, como todos por natureza tendem ao mesmo, “o ótimo de cada um, racionalmente calculado a longo prazo, constitui para o ótimo de longo prazo para todos. O cálculo é a maximização da utilidade” (Hollis & Nell, 1969, p. 8).

O que esta concepção de natureza humana com igualdade e liberdade individual de escolha não revela, ao contrário, mascara, é o processo histórico assimétrico que produziu proprietários privados de meios e instrumentos de produção – detentores de capital, classe capitalista – e trabalhadores cuja mercadoria que dispõem para vender ou trocar no mercado é sua força de trabalho. Da mesma forma, esta concepção ignora o processo histórico desigual na constituição das diferentes nações. Uma análise, portanto, que não reconhece as relações de poder e de dominação e violência ao longo da história e se afirma no pressuposto falso de uma natureza humana abstrata na qual cada indivíduo, independentemente de origem e classe social, faz suas escolhas em ‘iguais condições’. Por essa via efetiva-se, ao mesmo tempo, um reducionismo da concepção de ser humano, trabalho, sociedade, educação e história, de sínteses complexas de relações sociais a fatores.

O pressuposto epistemológico que sustenta esta forma de análise é o que Kosik (1986) denominou metafísica da cultura, ou a concepção do fator econômico. Trata-se da concepção de que a sociedade se constitui por um conjunto de fatores cuja soma nos dá a compreensão da totalidade. Ora um, ora outro fator (o econômico, o político, o cultural, o educacional etc) é utilizado, ad hoc, para explicar o comportamento social. Daí resulta que as explicações acabam sendo circulares. Com efeito, as análises de correlação e de taxa de retorno permitem concluir que existe relação, mas não o que determina a relação. Por isso que a teoria do ‘capital humano’ não consegue responder à questão: os países subdesenvolvidos e os indivíduos pobres e de baixa renda assim o são porque têm pouca escolaridade ou têm pouca escolaridade porque são subdesenvolvidos e pobres? Somente uma análise histórica da escravidão, do colonialismo e do imperialismo, por um lado, nos evidenciaria que os países que têm menos escolaridade são aqueles que foram submetidos a um ou a todos estes processos. Por outro lado, quando examinamos quem, no Brasil, por exemplo, é analfabeto ou não atingiu mais que quatro anos de escolaridade, vemos que é a grande massa de trabalhadores de baixa renda.

Daí que uma análise histórica nos permite afirmar exatamente ao contrário da ‘teoria do capital humano’: a baixa escolaridade nos países pobres deve-se a um reiterado processo histórico de colonização, relações imperialistas e de dependência mantidas por uma aliança de classe entre os países centro-hegemônicos do capital e da periferia. E o acesso desigual e a um conhecimento desigual para os filhos da classe trabalhadora, igualmente, deve-se a uma desigualdade estrutural de renda e de condição de classe.

Por fim, fica evidenciado o caráter limitado da noção ou conceito de ‘capital humano’ pela necessidade de redefini-lo em face do fato de que, paradoxalmente, inversamente à tendência universal do aumento da escolaridade, há um recrudescimento no desemprego estrutural, precarização do trabalho com perda de direitos e, especialmente, em países dependentes como o Brasil, oferta de empregos que exige trabalho simples e oferece uma baixíssima remuneração. Com o agravamento da desigualdade no capitalismo contemporâneo, a noção de ‘capital humano’ vem sendo redefinida e ressignificada pelas noções de sociedade do conhecimento, qualidade total, pedagogia das competências e empregabilidade (Frigotto & Frigotto, 2005; Ramos, 2006). Essas noções acabam por atribuir aos indivíduos, no bom credo da liberdade de escolha individual, a responsabilidade por seu desemprego ou subemprego: “Não sou empregável porque não escolhi um curso que desenvolveu as competências reconhecidas e de ‘qualidade total’’!

A conclusão a que podemos chegar, como analisa Finkel (1977) é a de que ‘capital humano’ é um conceito ou noção ideológica construída para manter intactos os interesses da classe detentora do capital e esconder a exploração do trabalhador. Uma noção que não só não explica, mas sobretudo mascara as determinações da desigualdade entre nações e entre indivíduos e grupos e classes sociais. Sua crítica, como o das noções de qualidade total, sociedade do conhecimento, pedagogia das competências e empregabilidade, se coloca como tarefa teórica e ético-política imprescindível para aqueles que estão empenhados na superação das relações sociais capitalistas.

Para saber mais

BECKER, G. S. Human Capital: a theoretical and empirical analysis, with special reference to education. New York: Columbia University Press, 1964.

BLAUG, M. An Introduction to the Economics of Education. New York, s.n., 1972.

BOWLES, S. & GINTIS, H. The problem with de human capital theory: a marxisme critique. American Economic Review, may 1975.

CARNOY, M. Schooling in a Corporate Society: the political economy of education in American. New York: McKay, 1972.

DREEBEN, R. On What is Learning in School. Massachusetts: Addison-Wesley Pub. Co., 1968.

FINKEL, S. Capital humano: concepto ideológico. In: LABARCA, G. et al. (Orgs.) La Educación Burguesa. México: Nueva Imagen, 1977.

FRIGOTTO, G. A Produtividade da Escola Improdutiva. 7.ed. São Paulo: Editora Cortez, 2006.

FRIGOTTO, G. & FRIGOTTO, G. Delírios da razão: crise do capital e metamorfose conceitual no campo educacional. In:

GENTILI, P. (Org.) A Pedagogia da Exclusão. 12.ed. Petrópolis, 2005.

GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

HOLLIS, M. & NELL, R. J. O Homem Econômico Racional. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.

KOSIK, K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

LOWY, M. Método Dialético e Teoria Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

MARX, K. A Ideologia Alemã. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977.

MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1983.

PARSONS, T. The school class as a social system: some functions in American Society. In: PAULANI, L. M. Modernidade e Discurso Econômico. São Paulo: Boitempo, 2005.

RAMOS, M. N. Pedagogia das Competências: autonomia ou adaptação? 3.ed. São Paulo: Editora Cortez, 2006.

SCHULTZ, T. O Valor Econômico da Educação. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

SCHULTZ, T. Capital Humano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

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