Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



VERBETES




Universalidade

Gustavo Corrêa Matta

A universalidade tem sido considerada na ciência política como uma noção relacionada ao campo do direito, mais especificamente ao campo dos direitos humanos. Ou seja, os direitos que são comuns a todas as pessoas, como um direito positivo que visa à manutenção da vida individual e social no mundo moderno. Na saúde, a universalidade tem sido uma bandeira das lutas populares que a reivindicam como um direito humano e um dever do Estado na sua efetivação. Constitui-se como um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS) e está inscrita na Constituição Federal brasileira desde 1988.

A discussão em torno da universalidade como um conjunto de direitos inerentes a todas as pessoas, seja no interior do aparelho estatal nacional ou comum a todos os seres humanos independente de nacionalidade, apesar de remontar à filosofia política do século XVII, tornou-se pauta do Estado liberal nas constituições inglesa e francesa no século XVIII. Os principais filósofos a defender direitos que não dependem da cidadania, da fé ou da ação do Estado, ou seja, como direito natural, foram Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau e seus trabalhos sobre o chamado 'contrato social'. Essa discussão parte da necessidade de rever as relações políticas na Europa, até então dominadas pela monarquia e pelo clero, e pela expansão européia no continente americano, enfocando uma concepção liberal das relações sociais e do direito à propriedade (Bobbio et al., 2004).

A defesa do direito às liberdades individuais, políticas e econômicas foram fundamentais para a expansão e consolidação do capitalismo na Europa que, desta forma, eram concebidas como naturais e protegidas pelo chamado Estado de direito, principalmente durante o século XIX. A tensão entre liberdade e intervenção do Estado no mercado terá como resultante a defesa do direito ao livre comércio, sem regulação estatal, garantindo o status quo e a livre circulação dos grandes grupos econômicos. O discurso liberal nesse sentido defende a universalidade do direito às liberdades individuais, a não-intervenção estatal na economia, o direito à propriedade privada e a liberdade de organização política. Esses valores da vida burguesa são defendidos como direitos 'naturais' do ser humano, destituídos de sua conotação política e social, criando uma autonomia do poder judiciário em relação ao Estado para a proteção desses valores.

No final do século XIX, as questões sociais começaram a tomar de assalto a estabilidade da vida burguesa e do capitalismo. A revolução industrial deixou um rastro de desemprego e precariedade nas classes trabalhadoras urbanas que, afastadas da solidariedade e da economia de subsistência da vida rural, se aglomeravam nas periferias das grandes cidades. O problema que se apresentava naquela época não eram os pobres, mas sim a produção da pobreza, trazida pela grande concentração de capital e pelas contradições do processo de industrialização.

A necessidade de tratar de forma particular a classe trabalhadora prevenindo-a socialmente contra a doença, a velhice e a invalidez, e conseqüentemente o avanço da pobreza, começa pela reforma de Bismarck na Alemanha, criando uma forma de intervenção do Estado na distribuição da renda e na criação de um sistema de previdência social voltada para os trabalhadores fabris. Essa política abriu de um lado a possibilidade do avanço do socialismo na Europa, e por outro, de forma reativa, começavam a surgir as primeiras formas do Estado de bem-estar social (Bobbio, 2004).

Esse momento é fundamental para compreender a antinomia entre universalismo e particularismo na política social contemporânea. A organização da classe trabalhadora na Alemanha e a luta pelos direitos trabalhistas começam a se traduzir em projetos de sociedade e em formas de intervenção do Estado na vida social. Trata-se de uma disputa entre políticas sociais meritocráticas, particulares, com base em  critérios de elegibilidade de vulnerabilidades e de contribuição previdenciária que visam à atenção a indivíduos e grupos vulneráveis às mazelas da pobreza; e de políticas sociais universais fundadas não na renda ou no mérito, mas no direito a um conjunto de ações que visam a condições mínimas de vida igualitárias a toda  população, independente de classe social, raça ou religião, resgatando a idéia de um conjunto de direitos naturais de qualquer cidadão.

Muitas das discussões entre focalismo e universalismo têm como base o papel social do Estado no capitalismo contemporâneo e o lugar da democracia-liberal na atualidade. Ou seja, o Estado deve formular políticas sociais para todos os cidadãos, ou políticas sociais focalizadas para um conjunto de indivíduos excluídos economicamente? Esse debate tem tomado diversas tonalidades em diferentes momentos dos séculos XX e XXI, além de acirrar discussões e lutas políticas e sociais nos contextos local e global.

As estratégias de construção social da temática da universalidade envolvem não somente elementos do registro macropolítico, mas também elementos micropolíticos de ordem econômica, como a limitação dos recursos e as formas tributárias de arrecadação; de ordem política, como os limites da intervenção e controle disciplinar do Estado na vida social dos indivíduos; de ordem político-institucional, como a participação dos indivíduos e grupos sociais na formulação e controle social das políticas, entre outros, demonstrando a complexidade das relações sociais em jogo nesta temática.

Na saúde, a universalidade é um dos princípios constitucionais do sistema de saúde brasileiro, sendo considerada uma das maiores conquistas da população na Constituição Federal de 1988. A universalidade aponta para o rompimento com a tradição previdenciária e meritocrática do sistema de saúde brasileiro, que conferia unicamente aos trabalhadores formais, por meio da contribuição previdenciária, o acesso às ações e serviços de saúde. Com a instituição do SUS, a saúde tornou-se um direito de qualquer cidadão brasileiro, independente de raça, renda, escolaridade, religião ou qualquer outra forma de discriminação, e um dever do Estado brasileiro em prover esses serviços.

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (Brasil, 2005, p.39).

A universalidade é o princípio que organiza e dá sentido aos demais princípios e diretrizes do SUS na garantia do direito à saúde de forma integral, equânime, descentralizada e com participação popular (Matta, 2007).

A universalidade de acesso aos serviços de saúde pela população brasileira vem sofrendo diversos constrangimentos na efetivação deste direito. Desde as influências históricas e institucionais da trajetória do sistema nacional de saúde, principalmente a partir dos anos 1960 com a progressiva privatização dos serviços de saúde e a constituição do chamado complexo médico-industrial no Brasil, até as ondas predatórias da globalização neoliberal e seus efeitos durante o processo de democratização do Estado brasileiro  nos anos 1980 e 1990, o sistema de público de saúde, o SUS, ainda não é o único sistema de saúde no Brasil e vem muitas vezes limitando as suas ações às populações menos favorecidas e nas ações de atenção primária e de alta complexidade, como os transplantes e o tratamento da AIDS, que estão à margem da ação e dos interesses dos planos privados de saúde (Matta e Lima, 2008).

Podemos perceber que, apesar de assegurada constitucionalmente, a universalidade na saúde oscila entre ações abrangentes e integrais a ações focalizadas e verticais. Essa tensão faz parte da arena de lutas pela democratização da saúde que remontam aos ideais da reforma sanitária brasileira e aos grupos econômicos que lutam pela privatização da saúde e sua mercadorização.

O valor da saúde como um direito, a universalidade, tem sido defendido por diversos autores na formação e na gestão do trabalho em saúde como uma estratégia para fortalecer o SUS e como uma forma de ampliação da participação popular (Pinheiro e Mattos, 2005).

Nas últimas décadas, a universalidade em saúde tem sido atacada por organismos internacionais, como o Banco Mundial, que defendem uma ação mínima do Estado nas políticas sociais e a abertura dos sistemas nacionais de saúde para empresas de seguro-saúde internacionais e sua progressiva privatização (Mattos, 2000; Matta, 2005).

Por outro lado, há grupos e movimentos internacionais que defendem a universalidade do direito à saúde em escala global, como o Movimento da Saúde dos Povos, bem como a produção estatal e o fornecimento gratuito de medicamentos essenciais a todos aqueles que necessitam (PHM, 2005).

A universalidade não é apenas um elemento da atenção de um Estado assistencialista, mas um valor a ser fortalecido e defendido como um projeto emancipatório de sociedade. É nessa perspectiva que a idéia de uma construção social da universalidade permite a sua 'desnaturalização' e a valorização de suas dimensões histórica, política e cultural.

Para saber mais

BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BOBBIO, N. et al. Dicionário de Política. Brasília: UNB, 2004.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 2005.

MATTA, G. C. Princípios e Diretrizes do Sistema Único de Saúde. In: MATTA, G. C.; PONTES, A. L. de M. (Org.). Políticas de Saúde: Organização e operacionalização do Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007.

MATTA, G. C.;  LIMA, J. C. F. Estado, Sociedade e Formação Profissional em Saúde: Contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz/EPSJV, 2008.

MATTA, G. C. A Organização Mundial de Saúde: do controle de epidemias à luta pela hegemonia. Trabalho, Educação e Saúde. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 371-396, 2005.

MATTOS, R. A. Desenvolvendo e ofertando idéias: Um estudo sobre a elaboração de propostas de políticas de saúde no âmbito do Banco Mundial. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: IMS/Uerj, 2000.

PHM. Asamblea de la salud de los pueblos (ASP)- Salud en la era de la globalización: de víctimas a protagonistas. Un documento de discusión preparado por el grupo de trabajo de la Asamblea de la Salud de los Pueblos. 2000. Disponível em: http://www.phmovement.org/. Acesso em: 30 de jan.

PINHEIRO, R.;  MATTOS, R. A. (Orgs.). Construção Social da Demanda: direito à saúde, trabalho em equipe e participação e os espaços públicos. Rio de Janeiro: IMS, Uerj, Cepesc, Abrasco, 2005.

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