Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



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Globalização

Ramón Peña Castro

O termo ‘globalização’ começou a circular no final dos anos 80 para sugerir a idéia de unificação do mundo, como resultado dos três processos que marcaram o fim do “breve  século XX” (Hobsbawn, 1995). A vitória política do neoliberalismo, representada pela ditadura de Pinochet (1973) e pelos governos Thatcher (1979) e Reagan (1980); a interrupção da ‘construção nacional’ no Terceiro Mundo, esmagado pelo peso insuportável da dívida externa, imposta pelas oligarquias financeiras globalizadas; a autodesintegração da União Soviética. Esses três acontecimentos encerram as três maiores mudanças históricas do século: a Revolução Socialista Russa, primeira alternativa real ao capitalismo; as variadas  experiências de construção nacional independente no Terceiro Mundo; e o reformismo  socialdemocrata, basicamente euro-ocidental, que durante mais de três décadas parecia ter domesticado o capitalismo, por meio do chamado Estado de Bem-estar social. E esse encerramento das maiores alternativas concretas opostas ao capitalismo liberal serviu para consolidar a crença na suposta unificação do mundo, representada pela globalização dos mercados. A expressão mais delirante dessa idéia foi, sem dúvida, a tese de Francis Fukuiama sobre o fim da História.

A origem dos termos sociedade global e globalização é anterior ao triunfo político da globalização neoliberal; data de finais dos anos 1960 e deve ser creditada a MacLuhan e a Bzezinski, autores norte-americanos de dois livros famosos na época: Guerra e paz na aldeia global, de Marshall MacLuhan e A revolução tecnotrônica, de Zbigniew Brzezinski.  MacLuhan anunciou a emergência da ‘aldeia global’, com base numa extrapolação da agressão militar americana contra o Vietnam (a maior derrota militar sofrida pelos EE.UU.)  que ao ser transmitida ao vivo pelas redes de TV, transformou-se na primeira  ‘realidade virtual global’, assistida por milhões de telespectadores do mundo. Por sua vez, Brzezinski colocou em circulação as expressões cidade global e sociedade global  para designar a nova reconfiguração globalizada do nosso habitat, operada pelas redes tecnotrônicas termo introduzido por ele para designar a conjugação do computador, da TV e da rede  de telecomunicação. O protótipo dessa ‘sociedade global’ eram os EE.UU., centro propulsor da revolução ‘tecnotrônica’ mundial que oferecia ao mundo o ‘único modelo global de modernidade’, com os correspondentes ‘padrões de comportamento e valores universais’. Nessa visão, a globalização se apresenta como sinônimo de americanização, o que confere ao termo um sentido claramente ideológico, como fora reafirmado de forma inapelável pelo prestigioso economista liberal norte-americano John Galbraith: “Globalização  não é um conceito sério – diz Galbraith.  Nós, americanos, o inventamos para dissimular nossa política de penetração  econômica nos outros países” (Entrevista a Folha de São Paulo, 02.11.97).

O discurso da ‘globalização’ tem dois sentidos. Um descritivo ou simbólico, referido à suposta unificação do mundo. Outro, prescritivo ou normativo, representado pelas políticas neoliberais muito concretas, implementadas por agentes e instituições gestoras do capitalismo dominante.

A globalização econômica está longe de ser uma conseqüência mecânica do desenvolvimento econômico ou das novas tecnologias; ela é o resultado de uma política, implementada por governos nacionais e instituições internacionais, mediante instrumentos muito específicos, tais como abertura dos mercados de capitais, bens e serviços, a desregulamentação do mercado de trabalho e a eliminação de qualquer obstáculo legal ou burocrático à ‘livre empresa’ e, sobretudo, aos investidores internacionais. A globalização neoliberal visa, portanto, a criar as condições de dominação das grandes corporações e fundos de investimento, que confrontam  as empresas nacionais numa concorrência muito desigual em  mercados abertos.

O mercado globalizado de capitais tende a reduzir a autonomia econômica dos governos nacionais, eliminando a possibilidade de manipular as taxas de câmbio, as taxas de juros ou de recorrer a financiamentos orçamentários deficitários. Esse é particularmente visível no Brasil, cuja política econômica está fortemente condicionada pelas regras da globalização neoliberal.

Tudo isso permite afirmar que a globalização é antes de mais nada um mito legitimador da hegemonia do capital financeiro, predominantemente especulativo.

A ideologia da globalização se tornou uma forma de pensamento difuso, interiorizada no senso comum, pelo fato de se alimentar da percepção, superficialmente amalgamada, de uma série de fenômenos reais: o progresso espetacular das comunicações (Internet, sobretudo), a expansão do comércio e das operações monetárias e financeiras, junto com a internacionalização de muitos processos de produção. Em razão disso, a globalização, simbolizada pela ampliação dos mercados e pela Internet, passou a ser vista como um fenômeno ‘natural’ e incontornável; condicionado e condicionante da competitividade internacional que invade todos os espaços da vida individual e social (emprego, formação, consumo, lazer, família, etc).

A necessidade permanente de dissimulação ideológica da ordem mundial imperialista tornou-se mais intensa nas últimas décadas, quando o capitalismo mundial entrou num longo ciclo recessivo, após trinta anos de expansão (1945-1975). A nova fase recessiva, iniciada em finais dos anos 1970, caracteriza-se, em primeiro lugar, pela expansão sem precedentes dos grandes grupos financeiros globalizados que lucram com investimentos especulativos fluidos e desregulados.

A globalização neoliberal funciona como mito legitimador das finanças especulativas. Com o auxilio da moeda, fetiche supremo, levanta-se uma densa muralha que separa e oculta os centros de poder real que operam ciberneticamente nas bolsas de moedas, títulos e mercadorias - as modernas catedrais -, onde o dinheiro se transforma magicamente em mais dinheiro, sem qualquer relação aparente com o trabalho produtor de riqueza real.

Esse divórcio entre o símbolo monetário e a materialização da riqueza no mundo cruel do trabalho vivo, forma a base invisível em que se constrói o mito da  globalização como reino do glamour e da felicidade, ao alcance de países e indivíduos aptos para responder às exigências da competitividade total, fluida e incontornável.

O lado oculto da globalização neoliberal está representado pelas conseqüências nefastas da racionalização neoliberal dos processos de trabalho e produção, com suas novas formas da ‘gestão fluida’ da força humana de trabalho.

A globalização neoliberal acentua o totalitarismo da exploração do trabalho na produção universalizada e também a sua impunidade. Aumenta a riqueza e com ela as desigualdades. As cem maiores empresas do mundo controlam recursos equivalentes a 1/3 do PIB mundial anual. Nos EE.UU., 1% dos mega-ricos que em 1975 controlavam 5% da riqueza nacional controlavam, em 2005, nada menos que 20% desta riqueza. Os dados da ONU sobre a pobreza mundial demonstram claramente que a globalização neoliberal é o paraíso dos poderosos e o inferno das maiorias deserdadas.

Essa realidade, negada no discurso oficial, constitui um dos fenômenos sociais mais importantes da modernidade neoliberal. O capital amplia continuamente seu poder sobre o trabalho, reorganizando e aumentando o potencial de produção e, com ele, o volume absoluto e relativo do valor excedente apropriado pelos seus diversos agentes (fabricantes, comerciantes, banqueiros e rentistas com diferentes titulações). Banalizando a desigualdade, o desamparo, a miséria e a exploração, a globalização capitalista universaliza a insegurança e a violência.

Os políticos e expertos em ciências sociais, de filiação neoliberal, atuam como autênticos terapeutas da economia, quando se limitam a descrever o existente como realidade ‘natural’ e única, fechada a qualquer alternativa.

A globalização neoliberal negligencia o fato de que o capital financeiro deixou de ser a contraface ou o complemento necessário da produção e do comércio; hoje, estas duas esferas estão subordinadas às decisões da esfera financeira, cuja autonomização é uma realidade, extrapolada ou absolutizada, justamente, pela ideologia da globalização.

A esfera financeira relativamente autonomizada opera como uma força centrífuga em prol da desnacionalização das sociedades pelos grandes inversores que operam nos mercados globalizados, ampliados pelos programas de liberalização, de desregulamentação e de privatização das economias dependentes e endividadas, aplicadas por Governos conservadores ou social-liberais, democraticamente eleitos com as mais modernas técnicas de marketing.

As moedas estabilizadas (no sentido de dolarizadas ou ‘euroizadas’), os orçamentos públicos rigidamente ajustados (no sentido de subordinados à política financeira global, delegada aos Bancos Centrais neocolonizados) às exigências dos investidores globalizados, junto com a desregulamentação plena dos mercados, são os símbolos principais de adesão confiável à nova ordem mundial sob o comando financeiro.

Os mercados financeiros são instituições sui generis que funcionam como a principal conexão entre a organização econômica e política nacional, de um lado, e a economia mundial, de outro. Na prática, isso implica a emergência de novos agentes ou centros de poder econômico, representados por corporações multinacionais, mercados financeiros e instituições supranacionais (OMC, FMI e BIRD), formalmente internacionais, mas na realidade subordinados ao condomínio do G7 (grupo dos sete países mais ricos: EE.UU, Alemanha, Japão, França, Inglaterra, Holanda, Itália), ao qual recentemente se associam China e Índia, cujo volume de comércio exterior e reservas de divisas disputam o terceiro e quarto lugares entre os operadores dos mercados monetários globais.

Contudo, a principal mudança sociológica do capitalismo globalizado se refere à natureza imperialista do poder político. A recomposição do poder econômico do capital mundializado gerou uma série de processos de ‘desnacionalização’, ou melhor, de transferência de soberania das instituições nacionais para os mercados globais. Trata-se de uma transferência de poder de decisão, de governos, parlamentos e partidos políticos sobre aspectos fundamentais da economia e da política nacional, para instituições, supostamente supranacionais, como OMC, FMI, BIRD e BCE, e para os mega-investidores que predominam nos mercados globais. Essas instituições funcionam, portanto, como autênticas potências tutelares, aparentemente anônimas, ilocalizáveis e ubíquas; essas potências onipotentes e onipresentes, se conectam com as grandes redes de corporações oligopólicas, sediadas nos grandes centros imperialistas.

Importa lembrar, finalmente, que o que tornou possível a recomposição do poder do capital (substrato real, mascarado pelo do mito da globalização) não foi a tecnologia, nem as comunicações, nem a economia, nem a política como tais, foi a mudança da relação fundamental do sistema, a virada radical da correlação de forças entre o capital e o trabalho, que se manifesta nas relações de domínio/exploração de classe, em nível nacional, e nas desigualdades e contradições entre Estados e povos que integram o sistema capitalista universalizado.

Em suma, a globalização não é, propriamente falando, um conceito teórico. Não passa de um construto ideológico destinado a legitimar, dissimular e unificar um mundo que, justamente por estar uniformizado só pelo capital, é profundamente desigual e contraditório.

Para saber mais

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