Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



VERBETES




Recursos Humanos em Saúde

Monica Vieira

O conceito de ‘recursos humanos’ é próprio da área de administração e remete à racionalidade gerencial hegemônica que reduz o trabalhador à condição de recurso, restringindo-o a uma dimensão funcional. No entanto, na área da saúde, a questão dos ‘recursos humanos’ envolve tudo que se refere aos trabalhadores da saúde em sua relação com o processo histórico de construção do Sistema Único de Saúde (SUS – Mendes Gonçalves, 1993), configurando, assim, um dos seus subsistemas. Nesse sentido, esse é tanto um campo de estudo como de intervenção. A área de ‘Recursos Humanos em Saúde’ (RHS) abarca múltiplas dimensões: composição e distribuição da força de trabalho, formação, qualificação profissional, mercado de trabalho, organização do trabalho, regulação do exercício profissional, relações de trabalho, além da tradicional administração de pessoal. 

O processo de conformação da área de Recursos Humanos em Saúde 

A noção de RHS pode ser, inicialmente, associada à década de 1950, com análises sobre a formação médica estimuladas pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Nos anos 60 iniciaram-se estudos para identificar a força de trabalho no setor e apenas na segunda metade da década seguinte teve início o progressivo processo de institucionalização da área. Nos anos 70 destaca-se o Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde (PPREPS), que teve como propósitos centrais capacitar pessoal de nível médio e elementar e apoiar a criação de sistemas de desenvolvimento de recursos humanos para a saúde nos estados (Paim, 1994).

Assim, desde a década de 1970 a Opas buscava definir linhas para formulação de propostas de educação contínua para as equipes de saúde, considerando a necessidade de que os trabalhadores do setor fossem capazes de analisar seu contexto de trabalho, identificar problemas, promover a participação e tomar decisões no processo de trabalho. Dessa forma, constituíram- se, nos anos 80, grupos de trabalho nos países das Américas com o objetivo de desenvolver novas abordagens em face do problema de capacitação profissional. O Programa de Desenvolvimento de RHS da Opas assumiu o papel de dinamizar esses esforços que buscavam viabilizar a transformação das práticas de saúde nos serviços, a partir da modificação nas práticas educativas.

No período anterior à formulação do SUS, a área de RHS teve pequena relevância, aparecendo como questão de menor repercussão no sistema de saúde nacional. Passa a adquirir maior nitidez com a VIII Conferência Nacional de Saúde, desencadeada pela Reforma Sanitária brasileira. Pode-se, inclusive, dizer que a estruturação da área de RHS seguiu as recomendações da VIII Conferência Nacional de Saúde. Naquele momento, que marcou a reformulação das políticas de saúde no país, a complexidade da área de RHS ganha visibilidade, desencadeando um processo particular de análise de suas temáticas próprias. 

No início da Reforma Sanitária, as questões mais sistematizadas da área de RHS restringiam-se à temática da formação de pessoal. As incursões analíticas acerca de outros aspectos, como planejamento da força de trabalho, mercado de trabalho e regulação do exercício profissional, eram apenas pontuais.

Esses primeiros estudos foram responsáveis pela denominação do que, posteriormente, veio a se chamar de RHS. Mendes Gonçalves (1993) chama a atenção para o caráter fragmentado, limitado teoricamente e com interpretações pouco explicativas dessa primeira ‘maré’ de estudos sobre a área.

Em 1986 foi organizada a Primeira Conferência Nacional de Recursos Humanos para a Saúde, quando se define uma agenda específica sobre o tema, a partir de análises dos principais aspectos identificados na implantação do SUS. Tais aspectos foram, em grande parte, pautados pelas reivindicações dos trabalhadores da saúde, considerando-se a reorganização de suas práticas profissionais e de suas bases jurídico-legais. Entre essas questões destacavam-se a falta de incentivos para a qualificação profissional, a própria visão burocrática da área de recursos humanos, a baixa remuneração dos trabalhadores, as desfavoráveis condições de trabalho e a ausência de uma política de recursos humanos que contemplasse um plano de cargos, carreira e salários no sentido de favorecer a implantação do SUS.

A Segunda Conferência Nacional de Recursos Humanos para a Saúde, realizada em 1993, mostrou a existência de uma contradição na área de RHS, que, embora apontada como estratégica nos documentos de saúde pública, vinha sendo muito pouco valorizada, uma vez que sempre mencionada de forma superficial quando o assunto em pauta era os aspectos que fundamentalmente afetavam as políticas públicas de saúde no país. 
Sobre a gestão do trabalho no SUS

A dimensão da gestão do trabalho em saúde que integra o campo de RHS começa a ganhar visibilidade na segunda metade da década de 1990, no contexto de flexibilização das relações de trabalho. Desenha-se um cenário paradoxal, no qual os níveis crescentes de flexibilização das relações de trabalho convivem com discursos sobre a emergência de um trabalho revalorizado, ou seja, com maiores níveis de autonomia e participação. No que se refere ao SUS, nesse cenário, coincidiram o aprofundamento da descentralização e a expansão das equipes de saúde, especialmente aquelas voltadas para a atenção básica. Esses aspectos acabaram por gerar enfrentamentos para a gestão municipal que ainda se defrontou com a homologação da Lei de Responsabilidade Fiscal, limitando os gastos com incorporação de força de trabalho.

O reflexo dessa política pode ser traduzido pela precarização das relações de trabalho, falta de regulação do sistema de ingresso nos serviços, alta rotatividade nos postos de trabalho e ausência de uma política salarial e de carreira que acabam por comprometer a profissionalização dos trabalhadores. 

Numa sistematização das produções teóricas sobre RHS, Brito (2002) e Peduzzi e Schraiber (2000) apontaram o caráter interdisciplinar da área e a necessidade de promover um novo conceito de RHS. Esses autores identificaram a necessidade de análises acerca das dimensões antropológicas desses trabalhadores, de questões sobre qualidade e produtividade no trabalho e da construção de uma teoria própria do trabalho em organizações de saúde. Também destacaram a lacuna de abordagens alternativas de gestão do trabalho, estudos acerca da dimensão subjetiva dos trabalhadores e de alternativas teórico-metodológicas que sustentem a complexidade do trabalho no cotidiano dessas organizações. 

Momento atual: um redirecionamento?

Nos últimos tempos, sujeitos políticos relacionados com a questão dos RHS (Abrasco, Conass, CNS) têm sinalizado a falta de priorização dessa temática, especialmente nos processos de reforma do Estado, desencadeados na década de 1990. Identifica-se, em documentos recentes, que a área vem sendo considerada como a mais complexa do SUS, recolocando a necessidade de um resgate da gestão do trabalho em saúde como política pública e igualmente a necessidade de valorização profissional e da regulação das relações de trabalho.

É assim que, em 2002, com a criação da Secretaria da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), no Ministério da Saúde, explicita-se o papel do gestor federal quanto às políticas de formação, desenvolvimento, planejamento e gestão da força de trabalho em saúde no país. As questões do trabalho retornam levando a uma reflexão sobre que modelo de Estado deve orientar as relações com a sociedade. As recentes diretrizes apontadas pela SGTES visam: regular a mobilidade profissional, valorizar a força de trabalho e gerar satisfação com o trabalho. Busca-se, ainda, uma melhor compreensão de processo de trabalho, a implementação da educação permanente, o reconhecimento das mesas de negociação como espaço democrático de equacionamento dos conflitos nas relações de trabalho além da instituição de processos de avaliação de desempenho com participação dos trabalhadores.

Parece que o momento atual aponta para um possível deslocamento da tradicional área de RHS em direção a uma concepção mais ampliada e necessariamente integrada acerca da gestão e qualificação do trabalho no SUS. Esse processo, ainda que visível apenas na esfera federal, deve transcender a alteração na denominação da estrutura ministerial responsável pela área, associando-se à busca de alternativas teórico-metodológicas que possam sustentar as reorientações demandadas. 

Assim, as questões priorizadas na atual agenda da área de gestão do trabalho e da educação no SUS, como o plano de cargos, carreiras e salários, a desprecarização do trabalho, a mesa de negociação permanente, a estratégia de educação permanente, a avaliação de desempenho e os incentivos à produtividade, merecem ser contempladas ampliando-se os enquadramentos tradicionalmente utilizados pela área de ‘Recursos Humanos’.   

Para saber mais

BRASIL/Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Desenvolvimento do sistema Único de Saúde no Brasil: avanços, desafios e reafirmação de princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. 

BRASIL/Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde. Gestão do Trabalho e da Regulação Profissional em Saúde: agenda positiva. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. 

BRITO, P. Presentación – El mundo del trabajo en el ámbito de la salud. Revista Latinoamericana de Estudios del Trabajo, Ano 8, 15: 5-14, 2002. 

MENDES GONÇALVES, R. B. A Investigação sobre Recursos Humanos em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde/Coordenação Geral de Desenvolvimento de Recursos Humanos para o SUS, 1993. (Relatório de seminário) 

PAIM, J. S. Recursos Humanos em Saúde no Brasil: problemas crônicos e desafios agudos. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública/USP, 1994. 

PEDUZZI, M. & SCHRAIBER, L. B. A Pesquisa na Área de Recursos Humanos em Saúde no Brasil. In: Workshop Mapeamento de Projetos de Pesquisa e Intervenção sobre Recursos Humanos em saúde, no âmbito nacional. São Paulo, maio 2000. (Mimeo.) 

PIERANTONI, C. R. Reformas da Saúde e Recursos Humanos: velhos problemas x novos desafios, 2000. Tese de Doutorado em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da Uerj.

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