Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



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Reestruturação Produtiva em Saúde

Emerson Elias Merhy Túlio Batista Franco

Areestruturação produtiva’ é a resultante de mudanças no modo de produzir o cuidado, geradas a partir de inovações nos sistemas produtivos da saúde, que impactam o modo de fabricar os produtos da saúde, e na sua forma de assistir e cuidar das pessoas e dos coletivos populacionais.

Nem sempre, novas formas de organizar o processo de trabalho resultam em modos radicalmente novos de produzir o cuidado, que sejam capazes de impactar os processos de produção da saúde. As determinações para que uma ‘reestruturação produtiva’ se realize são diversas. Os vários sujeitos, que estão ligados à área da saúde, disputam, nos lugares onde se decide sobre a organização da política e dos serviços de saúde, seus interesses distintos, como os: corporativos, burocráticos, políticos e de mercado. Mas, no dia a dia dos serviços de saúde, também há uma disputa importante pelo modo de cuidar de indivíduos e de populações; por exemplo, em uma mesma equipe de saúde pode-se encontrar trabalhadores de saúde, da mesma profissão, que têm atitudes de escutar o que o usuário diz bem diferentes. Eles disputam lá no cotidiano maneiras distintas de fazer saúde.  

Como conseqüência dessas disputas, o modelo tecnológico de produção da saúde pode caracterizar-se a partir de diversos dispositivos de mudança no modo de produzir saúde, que não necessariamente alteram o seu núcleo tecnológico. A mudança que provocam não é tão profunda no sentido de desviar a lógica da produção de saúde, modificando a hegemonia centrada no trabalho morto (os mais comuns, hoje, como aqueles que estão voltados para a produção de uma prática centrada na produção profissional de procedimentos duros, dependentes de equipamentos e máquinas, e que têm-se tornado um fim em si mesmo) para uma outra centrada no trabalho vivo em ato, que pode direcionar-se pela centralidade nos atos de produção de vínculos, acolhimento, atos de fala, em função da finalidade de cuidar do outro e responder ao mundo acerca de suas necessidades de saúde.

Por exemplo, a incorporação de novas tecnologias no trabalho em saúde na assistência hospitalar pode alterar o modo de produção do cuidado, e, assim, caracterizar uma forma de ‘reestruturação produtiva’, pois altera os processos de trabalho e impacto no modo de realizar atos de saúde, construindo a assistência. No entanto, o núcleo tecnológico dos processos de trabalho, criadores dos produtos, pode permanecer como antes, ‘trabalho morto centrado’, com grande captura do ‘trabalho vivo em ato’. Em relação ao Programa Saúde da Família, pode-se assistir ao mesmo fenômeno conservador, quando este não consegue alterar os processos de trabalho centrados na produção de procedimentos médicos, estruturados a partir dos seus atos prescritivos – buscando como finalidade mais a produção do procedimento do que qualquer outra coisa e comandando as ações dos outros trabalhadores. Desse modo, ele muda a forma de produzir saúde a partir dos grupos familiares e da referência no território, mas o núcleo tecnológico onde se processa o cuidado continua centrado em um grande predomínio do trabalho morto, que opera basicamente a construção de um modo de cuidar, focado na produção dos procedimentos em si.

Nesses dois exemplos citados, podem-se observar mudanças nos processos de trabalho e na forma de produzir o cuidado, mas não a ponto de alterar a lógica produtiva e de formar uma outra maneira de construção do cuidado. 

As mudanças dos processos produtivos na saúde podem ser verificadas na incorporação de novas tecnologias de cuidar, nos processos produtivos, nas outras maneiras de organizar o processo de trabalho e, até mesmo, nas mudanças das atitudes dos profissionais no modo de cuidar do outro. Isto é, processos de subjetivação dos profissionais, que mexam nos seus modos de enxergar e de valorizar a vida do outro, também podem determinar uma certa ‘reestruturação produtiva’, desde que impactem o modo de produzir o cuidado. A ‘reestruturação produtiva’, como é um processo, inclusive que acontece no cotidiano do fazer a produção da saúde, pode ocorrer de forma desigual e em diversos graus de mudança, no interior dos processos de trabalho.

O debate em torno das tecnologias de trabalho em saúde teve como uma das primeiras referências a obra de Mendes Gonçalves (1994), que as define como “tecnologias materiais” (máquinas e instrumentos) e “tecnologias não materiais” (conhecimento técnico). Mendes Gonçalves sugere, para nossa interpretação, que no trabalho em saúde há uma micro-política, pois os saberes tecnológicos (como a clínica e a epidemiologia) podem adquirir no mesmo serviço, dependendo do trabalhador e da organização do modelo assistencial onde atua, formatos tão diferentes que o modo de fazer o cuidado, no mesmo serviço, pode ser o oposto do outro. Nesta direção, podemos lançar mão de outras categorias para designar e compreender as tecnologias de trabalho: as centradas em máquinas e instrumentos, chamadas de ‘tecnologias duras’; as do conhecimento técnico (saberes), ‘tecnologias leve-duras’; e as das relações, “tecnologias leves”. Todas estas dimensões das tecnologias operam o ‘trabalho morto’ e o ‘trabalho vivo em ato’, compondo assim os distintos processos de produção da assistência à saúde, que definem o núcleo tecnológico do trabalho. 

Verifica-se que, para além das máquinas e do conhecimento técnico, há algo nuclear no trabalho em saúde, que são as relações entre os sujeitos e o agir cotidiano destes. Essa permanente atuação no cenário de produção da saúde configura, então, a “micropolítica do trabalho vivo em ato”. Trata-se sobretudo do reconhecimento de que o espaço onde se produz saúde é um lugar onde se realizam também os desejos e a intersubjetividade, que estruturam a ação dos sujeitos trabalhador e usuário, individual e coletivo. É onde o tipo de trabalhador e de coletivos de trabalho fazem a diferença, pois fazem de suas liberdades micropolíticas formas de ação ético-político direcionadas. E, assim, conforme compreendem o que é o outro, modificam seus modos tecnológicos de construir o cuidado, intervindo nas formas de uso de suas ferramentas conhecimento e equipamentos.

É possível haver, portanto, várias formas de ‘reestruturação produtiva’, sempre centradas na idéia de que há mudanças nos processos de trabalho e no modo de produzir o cuidado. Mas, se estas mudanças conseguem de fato alterar o núcleo tecnológico do cuidado, criando não só novos modos de produzir coisas antigas, mas produzindo novos produtos, entendemos que a ‘reestruturação produtiva’ alçou ao patamar de uma ‘transição tecnológica’. Este é o caso de um cuidado centrado nas tecnologias leves, que passam a organizar um modo de produção centrado no trabalho vivo em ato e focado no mundo das necessidades do usuário, como determinação e decisão dos sujeitos que o operam (trabalhador e usuário), conformando um modo de produção totalmente novo. Por isso, a noção de ‘transição tecnológica’ não é obrigatoriamente um conceito do bem, pois há situações de ‘transição tecnológica’, que não levam em conta o mundo do usuário como seu objeto principal. É o que ocorreu no começo do século XX, quando houve uma ‘transição tecnológica’ para a medicina das especialidades, que continuou o procedimento de lógica centrada, em que o benefício do usuário era conseqüente e não nuclear. 

A ‘transição tecnológica’ traz em si a idéia de que há mudanças de sentido na produção do cuidado; de que há, de fato, uma nova forma de conceber o próprio objeto e a finalidade do cuidado. Alterando de modo significativo a lógica de produção do cuidado, muda o núcleo tecnológico.

Vale chamar a atenção para o fato de que, hoje, há uma disputa por uma transição tecnológica na saúde que é do interesse do capital financeiro, aplicado no campo da saúde, que também procura superar a lógica procedimento, dando ênfase na valorização das tecnologias leves, como as relacionais de cuidado e as vinculadas às formas de fazer a gestão dos processos de cuidar, mas que não estão olhando para o mundo das necessidades de saúde, individuais e coletivas, porque a sua finalidade é gerar processos produtivos de cuidar que controlem a incorporação de tecnologias duras, visando à obtenção de ganhos para o capital financeiro.

Essa situação nova vem criando um outro pólo de disputa no campo da saúde entre os grupos de interesses do capital vinculado ao complexo médico-industrial e os que compõem o complexo financeiro da saúde. É uma disputa entre interesses capitalistas distintos. 

Hoje, é conhecido como atenção gerenciada (ou managed care) esse modo como o capital financeiro na saúde vem intervindo para realizar o seu controle e domínio do território de construção do cuidado em saúde, contrapondo-se de um lado ao interesse do modelo médico-hegemônico e do outro ao modelo centrado na defesa da vida, individual e coletiva, para o qual a vida é em si o patrimônio de investimento social. 

Por isso, é interessante olhar com atenção o conjunto desses processos de reestruturação produtiva e de transição tecnológica, pois os grupos do capital financeiro vêm-se utilizando intensamente de dispositivos muito semelhantes aos do modelo em defesa da vida para provocar uma ‘reestruturação produtiva’, na qual são acrescentados processos de subjetivação, que buscam um modo de agir no mundo do trabalho em saúde – também com predomínio do trabalho vivo em ato e das tecnologias leves no processo produtivo de cuidar e na gestão das linhas de cuidado – voltando-se, entretanto, para a produção de capital e não de mais vida. Assim, este movimento não é na direção do interesse do usuário, mas na do próprio mercado da saúde. Isso faz com que apareça no mercado um discurso em defesa da produção da saúde, mas de modo instrumental, pois o objetivo central é o lucro com o cuidado de grupos populacionais que não fiquem doentes ou não consumam atos de saúde e que no máximo são reconhecidos como simples consumidores de um produto qualquer, como se não tratasse da área da saúde e de algo que pode interferir na qualidade do bem que temos – a nossa vida e a capacidade de vivê-la.   

Para saber mais

AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE/ MS-BRASIL. Duas Faces da Mesma Moeda: microrregulação e modelos assistenciais na saúde suplementar. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 2005. (Regulação e Saúde 4) 

FRANCO, T. B. Processos de Trabalho e Transição Tecnológica na Saúde, 2003. Tese de Doutorado, São Paulo: Unicamp. 

MENDES GONÇALVES, R. B. Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. 

MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. 

PIRES, D. Reestruturação Produtiva e Trabalho em Saúde no Brasil. São Paulo: Editora Annablume, 1998.

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