Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.



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Focalização em Saúde

Maria Lúcia Frizon Rizzotto

Focalização tem sido traduzida como a ação de concentrar os recursos financeiros disponíveis em uma população definida. Em última instância, trata-se de uma decisão orientada por razões de caráter econômico. Nas últimas décadas do século XX, no âmbito das políticas sociais em geral e das políticas de saúde em particular, o termo ‘focalização’ assume status de categoria com ampla utilização em documentos de Organismos Internacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), entre outros, que passaram a difundir a idéia de que o alívio da pobreza e a redução das enormes desigualdades sociais existentes nos países dependentes iriam ocorrer a partir da implementação de projetos e programas sociais dirigidos às populações pobres e grupos vulneráveis. Tais projetos teriam como objetivo explícito combater a pobreza, satisfazendo as necessidades básicas, o que deveria propiciar um mínimo de dignidade a esse segmento populacional. Nesse sentido, a discussão da ‘focalização’ está diretamente relacionada com a temática da pobreza.

Pode-se afirmar que o interesse dos Organismos Internacionais pela pobreza ocorreu, de forma mais enfática, em dois momentos distintos. Primeiro, no final da década de 1960, início da era McNamara na presidência do Banco Mundial, quando se constatou que o crescimento econômico ocorrido nos países periféricos, nas décadas anteriores, não resultou de forma mecânica e imediata em desenvolvimento social, em na redução das desigualdades sociais existentes. O crescimento econômico experimentado não melhorou a situação de vida das pessoas marginalizadas nessas sociedades, ao contrário, reverteu em maior concentração de renda e aumento das desigualdades intra e entre países. O segundo momento se deu na década de 1990, quando os níveis de pobreza assumiram dimensões planetárias, refletindo os danos sociais dos planos de estabilização do FMI e dos programas de empréstimos de ajuste estrutural e setorial do Banco Mundial, colocados em prática ao longo dos anos de 80 do século XX, na tentativa de resolver os problemas da dívida externa dos países periféricos, resultado em grande medida da transferência da crise que os países ricos enfrentaram a partir da década de 1970.

Sem abandonar o entendimento de que o crescimento econômico se constitui em condição a priori para a solução dos problemas sociais, os dirigentes desses organismos, respaldados pelos governos dos países ricos, em face da constatação da existência de uma conexão entre pobreza mundial e as relações instáveis entre e intra as nações, passaram a uma ação na direção de pressionar os governos nacionais dos países dependentes a colocarem em prática políticas sociais dirigidas às parcelas pobres da população, visando amenizar a situação de miserabilidade em que viviam e vivem, mantendo, assim, um mínimo de coesão societária necessária para a continuidade da acumulação, ampliação e concentração capitalista em nível mundial. É nesse contexto que a ‘focalização’, como pressuposto das políticas sociais, ganha contornos mais nítidos e se constitui em importante estratégia de intervenção na organização da sociedade.

O mecanismo encontrado para induzir os Estados Nacionais a adotarem as medidas de ‘focalização’ propostas se deu, de forma mais sistemática, por meio da ação desses organismos que passaram a financiar políticas, programas e projetos de investimento nos setores de educação, saúde, nutrição, controle demográfico e saneamento, considerados como capazes de contribuírem para o bem-estar social e para uma melhor distribuição de renda. Mas, ao financiarem os projetos e programas focalizados, estava implícito o objetivo de apaziguar os pobres por meio da satisfação das necessidades básicas ao mesmo tempo em que pretendiam manter sob controle a sua expansão.

A noção de ‘focalização’ traduz o entendimento de que diante do contingenciamento e da limitada disponibilidade de recursos financeiros para atender as demandas infinitas por serviços e benefícios sociais, inclusive estabelecendo a clássica relação custo-benefício, o Estado deve priorizar e direcionar a sua ação, no âmbito das políticas sociais, para as camadas mais desfavorecidas da população. Esta noção se contrapõe ao princípio da universalidade, inscrito na Constituição Brasileira, diante do qual o Estado deve garantir, para toda a população, o acesso a bens e serviços públicos como saúde, educação, saneamento básico, habitação, transporte etc. Traduzem duas concepções distintas do que seja bem-estar e, conseqüentemente, de organização e concepção de sociedade, pois delas decorrem arranjos institucionais que revelam a lógica de cada projeto, indicando papéis distintos para o Estado desempenhar.

Em nível nacional, no campo da saúde, embora desde o início da década de 1990 o governo brasileiro esteja cumprindo a agenda dos organismos internacionais, implementando programas focalizados e seletivos, a exemplo do Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), implementado em 1991, e do Programa de Saúde da Família (PSF), implementado em 1994, a discussão acerca da ‘focalização’ das políticas sociais em geral e das políticas de saúde em particular, ganha novas dimensões com o debate sobre a reforma do Estado Brasileiro, ocorrida a partir de 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso. A reforma, entre outras mudanças, deveria permitir ao Estado a ‘focalização’ no atendimento das necessidades sociais básicas, reduzindo a sua área de atuação por meio de três mecanismos: a privatização, que consiste na venda de ativos de empresas públicas; a publicização, ou seja, a transformação de órgãos estatais em entidades públicas não-estatais; e a terceirização, que implica a contratação de serviços prestados por terceiros.

Respaldados em documentos de Organismos Internacionais que criticavam o pouco investimento em promoção e prevenção da saúde e o excesso de gastos públicos brasileiros com a oferta de serviços de base hospitalar, especializados e em procedimentos de alta tecnologia, os governos brasileiros, a partir do início da década de 1990, assumiram como uma diretriz política, a ‘focalização’ dos serviços públicos de saúde nas populações pobres.

Assim, antes mesmo de terem sido implementados plenamente os princípios constitucionais que conformam o Sistema Único de Saúde (SUS), coloca-se para a sociedade brasileira dilemas, como universalizar o acesso ou destinar os parcos recursos do setor para os mais pobres; manter a gratuidade para todos ou instituir formas de co-pagamento para quem pode pagar; responsabilizar o Estado pela assistência à saúde ou envolver a comunidade para que ela mesma encontre alternativas aos seus problemas; obrigar o setor público a oferecer todos os níveis de assistência ou apenas um pacote de serviços essenciais aos mais pobres; ofertar bens privados ou apenas bens públicos e os que contenham grandes externalidades.

Tais proposições, quando abordadas fora de uma análise de totalidade da sociedade e do papel do Estado numa sociedade de classes, tornam-se difíceis de serem equacionadas. Dessa forma, vai-se construindo o consenso da necessidade de reformar o SUS antes mesmo de sua plena implementação, cuja direção aponta para a ‘focalização’ das ações do Estado nas populações pobres.

Diante do aumento real da pobreza, resultado da apropriação desigual da riqueza e das crises cíclicas do capitalismo em escala mundial, as dualidades apresentadas assumem contornos de tensão, constituindo-se em argumento político-ideológico para o questionamento da visão universalista do SUS, vinculada à noção de direito social, e em conseqüência aderindo à defesa do binômio focalização seletividade. Neste cenário, a difusão da concepção de justiça social terminal, ou seja, a que seria feita na hora da distribuição, dando a quem tem menos, oblitera a discussão da justiça social no início do processo, ou seja, a possibilidade de fazer justiça no momento da arrecadação e da tributação do que foi produzido e acumulado, cobrando mais de quem tem mais.

Muitas críticas têm sido feitas às políticas, programas e projetos focalizados e seletivos, particularmente pelos efeitos perversos que acarretam, na medida em que consolidam as desigualdades já existentes, uma vez que se dão no marco de agudas desigualdades sociais. Além de introduzirem uma precariedade e descontinuidade, as políticas focalizadas são assistencialistas, abrem espaço à arbitrariedade dos que têm o poder de decidir sobre quem irá ser beneficiado pela política e qual o rol de necessidades a serem satisfeitas.

Além disso, a ‘focalização’ em saúde cria uma segmentação no acesso à assistência em face da duplicidade da política, em que, de um lado, estimula- se a criação e regulamentação de um sistema de saúde privado de serviços de alto nível, destinados às classes sociais de maior renda e riqueza, em grande medida subsidiadas pelo Estado, e, de outro, implementa-se um sistema estatal, com recursos insuficientes, fornecendo serviços básicos, muitas vezes de baixa qualidade, destinados aos mais pobres.

Destaca-se ainda, no processo de focalização das ações de saúde nos pobres, a adoção de programas de baixo custo e de alto impacto. Contribuiu para isso, por exemplo, a proposta de ênfase na atenção primária à saúde, presente em declarações de eventos internacionais como o de Alma Ata, de 1978.

Exemplos de outros países mostram que a adoção da ‘focalização’ como diretriz das políticas de saúde leva a perdas para os setores médios da sociedade, os quais acabam retirando seu apoio a essas políticas, o que pode resultar, a médio e longo prazo, em perdas para as próprias populações pobres, aparentemente beneficiadas com a ‘focalização’.

A adoção dessa estratégia como pressuposto para a formulação e implementação das políticas de saúde implica negar a universalidade como princípio doutrinário do sistema de saúde e substituir o princípio da igualdade pelo da eqüidade como diretriz para a tomada de decisão no âmbito dos serviços.

Para saber mais

BANCO MUNDIAL. Salud. Documento de política sectorial. Washington, D.C., 1975.

BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1993: investindo em saúde. Rio de Janeiro: FGV, 1993.

COHN, A. O SUS e o direito à saúde: universalização e focalização nas políticas de saúde: In: LIMA, N. T. et al. (Orgs.) Saúde e Democracia: história e democracia do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.

MEDEIROS, M. Princípios de Justiça na Alocação de Recursos em Saúde. Brasília: Ipea, 1999. (Texto para discussão n. 687)

PAIM, J. Políticas de saúde no Brasil ou recusando o apartheid sanitário. Ciência & Saúde Coletiva, 1: 18-20, 1996.

RIZZOTTO, M. L. F. O Banco Mundial e as Políticas de Saúde no Brasil nos Anos 90: um projeto de desmonte do SUS, 2000. Tese de Doutorado, Campinas: Universidade Estadual de Campinas/Faculdade de Ciências Médicas.

SENNA, M. de C. M. Eqüidade e política de saúde: algumas reflexões sobre o Programa Saúde da Família. Cadernos de Saúde Pública, 18 (supl.): 203-211, 2002.

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