Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Educação em Saúde

Márcia Valéria Morosini Angélica Ferreira Fonseca Isabel Brasil Pereira

Inicialmente, deve-se localizar a temática da educação em saúde como um campo de disputas de projetos de sociedade e visões de mundo que se atualizam nas formas de conceber e organizar os discursos e as práticas relativas à educação no campo da saúde. Como nos lembra Cardoso de Melo (2007), para se compreender as concepções de educação em saúde é necessário buscar entender as concepções de educação, saúde e sociedade a elas subjacentes. De nossa parte, acrescentamos, também, a necessidade de se compreender essas concepções na interface com as concepções a respeito do trabalho em saúde e suas relações com os sujeitos do trabalho educativo.

Neste verbete, educação, saúde e trabalho são compreendidos como práticas sociais que fazem parte do modo de produção da existência humana, precisando ser abordados historicamente como fenômenos constituintes - produtores, reprodutores ou transformadores - das relações sociais.

Nas sociedades ocidentais, tem predominado a compreensão da educação como um ato normativo, no qual a prescrição e a instrumentalização são as práticas dominantes. Essa forma de conceber a educação, baseada numa pretensa objetividade e neutralidade do conhecimento, produzido pela razão cientificamente fundada, guarda correspondência com uma compreensão da saúde como fenômeno objetivo e produto de relações causais imediatamente apreensíveis pela ciência hegemônica no campo, a biologia.

A busca por uma objetivação das ações humanas, fruto de um racionalismo de ímpeto controlador, tanto na educação quanto na saúde, acaba contribuindo para um processo de objetivação dos próprios sujeitos destas ações. Assim, o professor pode reduzir-se a um transmissor das informações, e o aluno, um seu correspondente, um mero receptor passivo das informações educativas. Por sua vez, o profissional de saúde pode tornar-se um operador de protocolos e condutas, e o ‘ doente’, um corpo onde se dá a doença e, conseqüentemente, o ato médico. Em geral, homens desempenhando um papel pré-defindo e apassivado nas relações professor-aluno e profissional de saúde-doente.

Outros resultados não menos importantes desse processo são, no caso da educação, a adaptação dos educandos à realidade social apresentada como a ordem natural das coisas, como única forma de existência possível e racional; assim como, no caso do processo saúde-doença, a compreensão deste como o percurso natural do desenvolvimento da doença, seja esta compreendida como um fenômeno unicausal ou multicausal.

Poderíamos situar o final do séc. XIX e o início do século XX como um momento histórico importante na construção de concepções e práticas de educação e saúde que tiveram em sua base a Higiene, enquanto um campo de conhecimentos que se articulam, produzindo uma forma de conceber, explicar e intervir sobre os problemas de saúde. Nesse momento histórico, a Higiene está fortemente associada à ideologia liberal, encontrando neste pensamento os seus fundamentos políticos. Destarte, a Higiene centrava-se nas responsabilidades individuais na produção da saúde e construía formas de intervenção caracterizadas como a prescrição de normas, voltadas para os mais diferentes âmbitos da vida social (casa, escola, família, trabalho), que deveriam ser incorporadas pelos indivíduos como meio de conservar a saúde. Arouca (2003), ressalta que a Higiene acaba por reduzir à aplicação de medidas higiênicas a solução dos problemas de saúde, que se constituem a partir das condições de existência.

É nesse período que a filosofia da educação de John Dewey, formulada em estreito diálogo com a psicologia experimental e com o evolucionismo biológico, sofre grande apropriação pelo pensamento e pelas práticas de educação para a saúde. Muitos elementos merecem ser destacados do pensamento filosófico de Dewey, mas é a ênfase que este pensador atribui à primazia das características dos indivíduos para o desenvolvimento do processo educativo e o fato de tomar a construção de hábitos como um norte para a educação que são claramente identificáveis no que denominamos como educação sanitária.

O desenvolvimento da educação sanitária, a partir dos EUA, deu-se de forma associada à saúde pública, tendo sido instrumento das ações de prevenção das doenças, caracterizando-se pela transmissão de conhecimento. Mesmo que realizada de forma massiva, como no caso das campanhas sanitárias no Brasil, a perspectiva não contemplava a dimensão histórico-social do processo saúde-doença.

Cardoso de Melo (1976), no bojo do movimento pela Reforma Sanitária no Brasil, fez uma crítica severa aos efeitos do distanciamento da saúde pública em relação ao social, afirmando que “como o social não é considerado na prática da saúde pública, senão em perspectiva restrita, a educação passa a ser uma atividade paralela, tendo como finalidade auxiliar a efetivação dos objetivos eminentemente técnicos dos programas de saúde pública” (p. 13).

Entretanto, numa perspectiva crítica, a educação parte da análise das realidades sociais, buscando revelar as suas características e as relações que as condicionam e determinam. Essa perspectiva pode ater-se à explicação das finalidades reprodutivistas dos processos educativos ou trabalhar no âmbito das suas contradições, buscando transformar estas finalidades, estabelecendo como meta a construção de sujeitos e de projetos societários transformadores.

Da mesma forma, no campo da saúde, a compreensão do processo saúde-doença como expressão das condições objetivas de vida, isto é, como resultante das condições de “habitação, alimentação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde” (Brasil, 1986, p. 04) descortina a saúde e a doença como produções sociais, passíveis de ação e transformação, e aponta também para um plano coletivo e, não somente individual de intervenção.

Essa forma de conceber a saúde tem sido caracterizada como um ‘conceito ampliado’, pois não reduz a saúde à ausência de doença, promovendo a idéia de que uma situação de vida saudável não se resolve somente com a garantia do acesso aos serviços de saúde – o que também é fundamental –, mas depende, sobretudo, da garantia de condições de vida dignas que, em conjunto, podem proporcionar a situação de saúde. Nesse sentido, são indissociáveis o conceito de saúde e a noção de direito social.

Na interface da educação e da saúde, constituída com base no pensamento crítico sobre a realidade, torna-se possível pensar educação em saúde como formas do homem reunir e dispor recursos para intervir e transformar as condições objetivas, visando a alcançar a saúde como um direito socialmente conquistado, a partir da atuação individual e coletiva de sujeitos político-sociais.

Quanto ao trabalho em saúde, a forma histórica hegemônica por ele assumida estruturou-se a partir da biomedicina, organizando o processo de trabalho de forma médico-centrada, caracterizando-se pela hierarquização, reproduzindo a divisão intelectual e social do trabalho e do saber em saúde. Dessa forma, a educação em saúde, produzida no âmbito dos serviços de saúde, esteve muito subordinada a esse modelo, assim como, as práticas de educação sanitária, dirigidas à sociedade em geral e suas instituições, reproduziram em larga escala o poder biomédico, tendo funcionado, muitas vezes, como braços do controle estatal sobre os indivíduos e as relações sociais.

Stotz (1993), ao analisar os diferentes enfoques no campo da educação e saúde, coloca em evidência a predominância histórica do padrão médico na forma de conceber e organizar as atividades conhecidas pelo nome de educação sanitária. Esse padrão, que chamaremos de enfoque ou modelo biomédico, tornou-se alvo de intensas críticas, a partir da crise do sistema capitalista iniciada ao final da década de 60. Foram denunciadas, principalmente, a incapacidade do modelo biomédico de responder às necessidades de melhoria das condições de saúde da população; a medicalização dos problemas de caráter socioeconômicos; a iatrogenia; e o caráter corporativo da atuação dos profissionais. O autor relaciona as críticas dirigidas ao modelo biomédico às críticas feitas aos paradigmas do cientificismo, às idéias de neutralidade e atemporalidade da ciência concebida como universal.

Nessa perspectiva histórica, Stotz localiza as mudanças ocorridas na década de 70, quando o Estado capitalista incorporou parte das propostas formuladas pelos movimentos críticos na área da saúde, mas o fez segundo seus objetivos de racionalização de custos.

Esse mesmo autor, apoiado no trabalho de Tones (1987, apud Stotz, 1993), nos auxilia também a compreender as diferentes concepções que se constituíram, mais recentemente, nas formas de abordar a educação e saúde, definindo-as quanto ao seu objetivo, ao sujeito da ação, ao âmbito da ação, ao princípio orientador, à estratégia e ao pressuposto de eficácia. A seguir, reproduzimos o quadro no qual essas concepções são sistematizadas segundo esses critérios:

Em relação aos critérios analisados, pode-se notar que o papel atribuído ao indivíduo e ao social varia entre essas concepções. Talvez seja em relação ao peso relativo atribuído a esses pólos (indivíduo e sociedade) que se possa melhor discriminar os projetos e as ações educativas desenvolvidas segundo essas concepções. Acrescentamos também a dimensão do Estado e o papel a ele atribuído na solução, na prevenção e na recuperação dos processos de saúde-doença, assim como, no desenvolvimento de projetos educativos no campo da saúde.

Atualmente, considerando a importância adquirida pelo projeto de promoção da saúde, que busca capilarizar-se em várias dimensões da vida social (família, escola, comunidade) e individual (cuidados com o corpo, desenvolvimento de hábitos saudáveis), a discussão sobre as dimensões individuais e coletivas da saúde/doença torna-se oportuna e particularmente importante.

O modelo da promoção, no qual a educação em saúde se apresenta como um dos seus eixos de sustentação, vê-se diante do desafio de não reproduzir, a partir da incorporação instrumental da categoria de risco e da ênfase na mudança de comportamento, a mesma redução operada pelo higienismo, que ao responsabilizar o indivíduo pela reversão da sua dinâmica de adoecimento, acabou por culpabilizá-lo, esvaziando a compreensão da dimensão social do processo saúde/doença.

No movimento constante em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) como projeto de um sistema universal, público, equânime, integral e democrático, encontra-se a necessidade de se buscar uma concepção da relação educação e saúde que se configura como resultado da ação política de indivíduos e da coletividade, com base no entendimento da saúde e da educação em suas múltiplas dimensões: social, ética, política, cultural e científica.

Essa construção passa necessariamente pela redefinição do processo de trabalho em saúde e das atribuições e responsabilidades entre os trabalhadores, assim como, pela transformação do papel desempenhado por estes trabalhadores nos encontros com a população. Compreendendo a potencialidade educativa dos vários atos promovidos nas ações e nos serviços de saúde, pode-se compreender todos os trabalhadores da saúde como educadores, e estes, junto com a população atendida, sujeitos do processo de produção dos cuidados em saúde.

A categoria práxis tem centralidade nessa perspectiva, uma vez que estabelece uma relação de continuidade e complementaridade entre a teoria e a prática, compreendendo o conhecimento e as técnicas como uma produção social, historicamente constituídos e implicados entre si, não-neutros, isto é, orientados por um projeto societário transformador. Nesse sentido, os sujeitos da ação-reflexão não são redutíveis a objeto e não são considerados senão nas suas várias dimensões, como sujeitos históricos, políticos, sociais.

O potencial da educação como processo emancipatório, na interface com os movimentos sociais, tem na categoria de práxis social, criadora/transformadora da realidade, um aspecto central que está presente nas teses que permeiam o pensamento de Paulo Freire. Esse pensador exerceu forte influência no Movimento da Educação Popular em Saúde, na América Latina e, particularmente, no Brasil.

São marcas da pedagogia freireana a concepção de processo ensino-aprendizagem como uma troca, como um processo dialógico entre educador e educando, que se dá numa realidade vivida. O conhecimento advém da reflexão crítica sobre essa realidade, construindo-se, ao mesmo tempo em que o homem vai se constituindo e se posicionando como um ser histórico. Nesse sentido, não cabem relações verticais entre educador e educando, ou a transferência de conhecimentos e a normatização de hábitos, que marcaram o pensamento hegemônico da educação sanitária no século passado e que ainda hoje estão presentes nas práticas educativas em saúde.

Como campo de disputas, a educação em saúde é permeada por essas várias concepções que se enfrentam, ainda hoje, nas práticas dos diversos trabalhadores da saúde que realizam o SUS. Em certa medida, cumpre reforçar que não são somente perspectivas ou correntes educacionais ou sanitárias que se defrontam, mas formas de conceber os homens, a relação entre estes, as formas de organizar a sociedade e partilhar os bens por ela produzidos.

Para saber mais

AROUCA, S. O Dilema Preventivista. Contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.

BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório da VIII Conferência Nacional de Saúde. Brasília, 1986.

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Editora, 1990.

CARDOSO DE MELO, J. A. Educação e as Práticas de Saúde. In: ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO (Org.). Trabalho, Educação e Saúde: reflexões críticas de Joaquim Alberto Cardoso de Melo. Rio de Janeiro: EPSJV, 2007.

CARDOSO DE MELO, J. A. Educação Sanitária: uma visão crítica. Cadernos do Cedes. São Paulo: Cortez Editora- Autores Associados, n. 4, p. 28-43, 1981.

____________. A Prática da Saúde e a Educação. Saúde em Debate, n. 1, p. 13-14, out/nov. 1976.

COSTA, J. F. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

FOUCAULT, M. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

NUNES, E. D. & GARCIA, J. C. (Orgs.) Pensamento Social na América Latina. São Paulo: Cortez, 1989.

STOTZ, E. N. Enfoques sobre educação e saúde. In: Valla, V. & STOTZ, E. N. (Orgs.) Participação Popular, Educação e Saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, p.11-22.

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