Dicionário da Educação Profissional em Saúde

Uma produção:Fiocruz /EPSJV.





Educação Tecnológica

Domingos Leite Lima Filho Ana Margarida de Mello Barreto Campello

A predominância do trabalho assalariado e a introdução da maquinaria na produção constituem, ao longo do século XVIII, inicialmente na Inglaterra e daí progressivamente espraiando-se ao mundo, as bases fundamentais das relações sociais capitalistas de produção. A Revolução Industrial marca a emergência dessas relações, e a grande indústria baseada na maquinaria traz consigo o ingresso da ciência como conhecimento sistematizado, no processo de produção, tornando-se elemento material e intelectual do desenvolvimento das forças produtivas. No entanto, sob a hegemonia deste modo de produção, a união que se dá entre ciência e processo produtivo tem seu correspondente antagônico na separação ou divisão social do trabalho, mediante a qual estão cindidas a concepção e a execução do trabalho, ou seja, a própria separação entre a ciência (e os que a dominam) e os trabalhadores diretos, ocorrendo a subordinação destes àqueles (Magaline, 1977).

É analisando estas contradições e como elemento da luta política dos trabalhadores, que Marx utiliza o termo ‘educação tecnológica’, situando-o no próprio corpo teórico de sua crítica às relações sociais capitalistas de produção. Nesse sentido, a ‘educação tecnológica’ teria como princípio a união da instrução com o trabalho material produtivo (no sentido geral de trabalho social útil), o que, para Marx, seria o germe da educação do futuro.

De acordo com Manacorda (1991), Marx utiliza como sinônimos os termos ‘educação tecnológica’ e ‘educação politécnica’. Enquanto a denominação ‘educação tecnológica’ aparece no Manifesto Comunista (1848), no texto escrito por Marx para o Primeiro Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores (1866) e em O Capital (1867), o termo educação politécnica apareceria somente no texto de 1866.  

Já no Manifesto Comunista, o pensador alemão assinalava a importância, para a classe trabalhadora, da luta pela educação pública e gratuita de todas as crianças, da abolição do trabalho das crianças nas fábricas e da combinação da educação com a produção material (Marx & Engels, 1988). Por sua vez, o texto de 1866 traria uma definição mais completa do autor acerca da questão educacional para os trabalhadores, entendendo-a composta pelas dimensões intelectual, corporal e ‘tecnológica’, sendo esta a que trata dos “princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais” (Marx, 1983, p. 60). No texto d'O Capital, em uma passagem marcada pelo otimismo, assinalava que “a conquista inevitável do poder político pela classe operária vai introduzir o ensino teórico prático da tecnologia nas escolas do povo” (Marx, 1968, p. 553 – grifos nossos).

Em contrapartida, Marx destaca o sentido redutor/estreito do ‘ensino profissional’ [educação profissional], um conceito associado ao mero treinamento/ adestramento limitado às tarefas imediatas da produção capitalista. Enquanto que à educação politécnica ou à ‘educação tecnológica’ ele atribui um sentido de domínio dos princípios gerais da produção moderna e o manejo das técnicas e instrumentos dos diversos ramos da produção industrial, a educação profissional trata apenas deste último e, de modo ainda mais restrito, em um determinado ramo ou especialidade, como adequação/reprodução prática e imediata (Marx, 1968).

Ao propugnar a unidade entre educação e trabalho, traduzida no conceito de ‘educação tecnológica’, no fundo, a concepção de Marx trata da união entre trabalho intelectual e material, cuja possibilidade estaria na raiz da superação da divisão social do trabalho. E, nesse sentido, Enguita (1993) adverte que é verdadeiramente impossível compreender a insistência de Marx na combinação de educação e produção se não levarmos em conta a caracterização que o pensador alemão faz do trabalho como práxis e como elemento constitutivo do gênero humano.

Marx considerou a existência de uma íntima conexão – vínculo histórico e indissociável – entre a produção material da vida e sua elaboração espiritual, ou seja, a produção de idéias, de representações e da consciência. Satisfazer as necessidades materiais da vida e produzir a própria sobrevivência, produzir novas necessidades, reproduzir- se e estabelecer novas relações com os demais e com a natureza – transformando-a e transformandose a si mesmo –, o que implica estabelecer novas relações de produção, de poder e de propriedade, que correspondem a determinado grau ou estágio de desenvolvimento das forças produtivas. Esta dinâmica constitui o devir histórico, a essência ontológica do ser social. Nela, a consciência se constrói, na interpenetração de cada uma dessas dimensões da história da humanidade. A consciência não é, como queria Hegel, o espírito absoluto e abstrato, mas a consciência histórica, construída e forjada no continuum histórico, ou, como na síntese lapidar de Marx e Engels (1977), “o homem é tal como se produz”. A consciência humana é, portanto, um produto social e não individual, externo ou abstrato, como supõe o idealismo.

É importante destacar que a análise marxiana reitera a relação de simbiose que caracteriza as ‘expressões ideológicas’ do pensamento e a realidade material histórica, compondo a totalidade do metabolismo social. Mesmo com o desenvolvimento da produção industrial capitalista, em que se acentua a divisão social e técnica do trabalho, Marx e Engels não admitem a possibilidade de ruptura entre essas duas dimensões, ainda que o processo de produção apareça cindido em trabalho material e trabalho intelectual. Ao contrário, consideram que o desenvolvimento da base material de produção (forças produtivas), o desenvolvimento das relações sociais ou das formas de organização societária e o desenvolvimento da consciência social humana estão permanentemente e intrinsecamente relacionados. No entanto, o processo de produção capitalista gera contradições entre estas três dimensões. Com a divisão social do trabalho, dá-se também a distribuição desigual do seu produto, tanto quantitativamente quanto qualitativamente: produtos materiais e conhecimento. Contradições reais, para as quais os idealistas vão buscar construir explicações a partir da ideologia, da teologia, da filosofia, da moral. Ainda assim, mesmo quando a consciência parece encontrar condições de emancipar-se da consciência prática e passar à elaboração de teoria pura, filosofia, moral etc, não há ruptura entre representação e materialidade, pois a representação produzida expressa as condições e contradições da materialidade.

Nessa concepção de unidade entre produção intelectual e produção material, entre ciência e processo produtivo, como podemos situar o conceito de tecnologia? A tecnologia é entendida como extensão das possibilidades e potencialidades humanas, da produção social. Assim, o desenvolvimento científico e tecnológico é o desenvolvimento da ciência do trabalho produtivo, isto é, processo de apropriação contínua de saberes e práticas pelo ser social no devir histórico da humanidade. A ciência e a tecnologia são, portanto, construções sociais complexas, forças intelectuais e materiais do processo de produção e reprodução social. Como processo social, participam e condicionam as mediações sociais, porém não determinam por si só a realidade, não são autônomas, nem neutras e nem somente experimentos, técnicas, artefatos ou máquinas: são saberes, trabalhos e relações sociais objetivadas.

Nesse sentido, poderíamos afirmar que o conceito originário de ‘educação tecnológica’, diríamos, o conceito marxiano, se assentaria sobre uma concepção ampla e de formação integral e omnilateral do ser social que se caracterizaria, conforme Bastos (1998, p. 32) pela “integração do saber, do fazer, do saber fazer e do pensar e repensar o saber e o fazer, enquanto objetos permanentes da ação e da reflexão crítica sobre a ação”.

O desenvolvimento das lutas sociais dos trabalhadores e as experiências concretas de construção do socialismo, sobretudo na experiência soviética, levaram à adoção do termo educação politécnica em detrimento da denominação ‘educação tecnológica’. De acordo com Manacorda (1989), as resoluções relativas à educação, aprovadas no VIII Congresso do Partido Comunista, em 1919, têm como referência geral as proposições de Marx definidas no I Congresso da AIT, em 1866. Destacam-se, entre elas “a instrução geral e politécnica (que faz reconhecer em teoria e em prática todos os ramos principais da produção)... [e a] plena realização dos princípios da escola única do trabalho (...) que concretize uma estreita ligação do ensino com o trabalho socialmente produtivo” (Lênin apud Manacorda, 1989, p. 314-315).

No desenvolvimento dos sistemas e políticas educacionais, especialmente a partir do final do século XVIII, sob a égide de Estados liberais ou autoritários, nas diversas nações, constituíram- se modelos de educação para os trabalhadores, com denominações diversas, tais como escola para o trabalho, educação técnica, educação profissional ou profissionalizante, ensino industrial, ensino vocacional e outras. O traço distintivo desses modelos era a dualidade do sistema educacional que nada mais era que a expressão da dualidade estrutural que caracteriza as sociedades capitalistas marcadas pela divisão social do trabalho. Em cada cultura e nação essa dualidade se expressa historicamente, em distintos graus, incidindo nas políticas e nos sistemas educacionais e definindo percursos escolares distintos de acordo com a origem dos educandos e em relação com o valor social atribuído ao trabalho intelectual e manual em cada sociedade.

No Brasil, uma sociedade marcada pela herança colonial e escravocrata, na qual o conceito social do trabalho e dos que trabalham é fortemente desvalorizado, a educação para os trabalhadores é, inicialmente, mera aprendizagem prática e ensino de ofícios, inclusive com o estigma de prática social necessária à correção de uma suposta propensão ‘ao crime e ao vício’ que marcaria os ‘desvaforecidos da fortuna’, conforme o estabelecido no Decreto de 1909 que criava as escolas de aprendizes artífices. Posteriormente denominado ensino profissionalizante, técnico ou industrial, a educação para os trabalhadores e as instituições que as ofereciam foram concebidas e marcadas historicamente pelo viés da segregação e da exclusão.

Ao lado desse sistema, desenvolveu-se, paralelamente, a educação regular, geral, escolar e superior, letrada, destinada à formação das chamadas ‘elites condutoras’ da sociedade. Ao longo do século XX, a história da educação brasileira registra lutas por concepções educacionais democráticas, situando-se neste contexto as reivindicações e conquistas de inclusão de conteúdos de cultura geral e de ciência nos currículos dos cursos de educação profissional e pela equivalência destes aos cursos da educação escolar geral, intento alcançado, apenas formalmente, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1961.

A partir daí, e nos diversos contextos de lutas sociais que marcaram a sociedade brasileira ao longo da ditadura de meados da década de 1960 à década de 1980, e sobretudo a partir das lutas pela redemocratização do país, é que surgem, nas discussões sobre a política educacional, a denominação e os diferentes conceitos de ‘educação tecnológica’. Nesse processo, o conceito de ‘educação tecnológica’ na educação brasileira foi parcialmente apropriado pelas formulações liberais e tecnicistas de políticas educacionais mais recentes, especialmente a partir da década de 1970, cujo momento importante foi a criação dos primeiros centros federais de educação tecnológica, em 1978. Estas instituições, constituídas a partir da transformação das escolas técnicas federais, originárias das escolas de aprendizes artífices criadas no início do século XX, e que se tornaram referência na oferta de educação profissional de nível médio, passaram a ofertar, além daquela modalidade histórica, uma formação de nível superior em cursos de curta duração, inicialmente de engenharia de operação, depois engenharia industrial e, posteriormente, os cursos superiores de tecnologia.

No âmbito das políticas educacionais de caráter neoliberal que predominaram na política educacional brasileira a partir dos anos de 90, ocorre um processo de ressignificação conceitual que marcará o sentido atribuído à ‘educação tecnológica’. Em 1992, é criada a Secretaria Nacional de Educação Tecnológica (Senete) do Ministério da Educação, decorrente, conforme o discurso governamental, da ‘necessária’ reestruturação do aparelho de Estado, visando sua modernização. Conforme a concepção do Ministério da Educação,

a educação tecnológica guarda compromisso prioritário com o futuro, no qual o conhecimento vem se transformando no principal recurso gerador de riquezas, seu verdadeiro capital e exigindo, por sua vez, uma renovação da escola, para que se assuma seu papel de transformadora da realidade econômica e social do país. (Brasil, 1991, p. 57).

De acordo com Garcia e Lima Filho (2004), este momento pode ser considerado como um dos primeiros em que aparece, no âmbito das discussões e propostas governamentais para a educação brasileira, o conceito de ‘educação tecnológica’.

Este conceito, entretanto, difere, na sua concepção, do conceito de ‘educação tecnológica’ de origem marxiano, o mesmo que foi trabalhado no debate em torno da LDB, e que, sinonimicamente substituiu o conceito de educação politécnica na proposta da sociedade civil brasileira e no debate parlamentar dos anos de 80-90. Portanto, os significados atribuídos ao termo ‘educação tecnológica’ pela sociedade civil e pelo Ministério da Educação são distintos. Por um lado, o debate parlamentar em sua relação com a sociedade civil, interpreta-o como uma alternativa para a educação politécnica, mantendo o conteúdo desta. Por outro, na proposta governamental, ‘educação tecnológica’ não se vincula a uma concepção pedagógica, mas a uma estratégia de caráter econômico.

Neste conceito de ‘educação tecnológica’ formulado pelo Ministério da Educação, ressurge, então, a velha retórica da educação redentora dos males sociais. A retórica do valor econômico da educação é acompanhada, agora em sua roupagem neoliberal, dos paradigmas da competitividade e da modernização, o que, no campo das políticas educacionais, passou a orientar a aproximação das instituições do ensino técnico ao mundo empresarial, sobretudo, pela recomendação de que tais instituições deveriam adotar o modelo de gestão da iniciativa privada, dotado de flexibilidade e operacionalidade no âmbito da lógica mercantil.

É por esta perspectiva teórica que se orienta a formulação de educação profissional, contida no Capítulo III (artigos 39 a 42) da LDB (Lei n. 9.394/ 96), e as regulamentações posteriores, dentre elas o Decreto n. 2.208/97 que define a educação profissional em três níveis: o básico, o técnico e o tecnológico. O Decreto n. 5.154/04 manteve as definições gerais da educação profissional contidas na legislação anterior, definindo a educação profissional tecnológica como aquela “correspondente a cursos de nível superior na área tecnológica”.

Os cursos superiores de tecnologia, que constituem a ‘educação tecnológica’, caracterizam-se por serem de duração mais curta do que os tradicionais cursos de graduação de licenciatura e bacharelado. Esta nova configuração curricular, ‘mais focada e especialista’, é obtida, em geral, mediante redução significativa de conteúdos de base científica, profissional e humanística, redirecionando-se os currículos para a priorização de conteúdos técnicos aplicados e para a organização e gestão da produção empresarial. Portanto, pode-se inferir que a política em implementação da ‘educação tecnológica’ na modalidade dos cursos superiores de tecnologia, em curso no Brasil a partir do final dos anos de 90, em instituições de educação profissional e superior públicas e privadas, antes que novidade, pode reiterar a continuidade histórica de uma política de dualidade ou de fragmentação educacional, mediante a constituição de modelos alternativos e dirigidos a parcelas específicas da população.

Para saber mais

BASTOS, J. A. Educação tecnológica: conceitos, características e perspectivas. Tecnologia & Educação. Curitiba: Cefet-PR, 1998, p. 31-52.

BRASIL. O Sistema Nacional de Educação Tecnológica, Brasília, 1991.

BRASIL. Lei n. 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996.

BRASIL. Decreto n. 2.208/97, de 17 de abril de 1997. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da lei n. 9.394/96. Brasília, 1997.

BRASIL. Decreto n. 5.154 de 23 de julho de 2004. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da lei n. 9.394/96. Brasília, 2004.

ENGUITA, M. F. Trabalho, Escola e Ideologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

GARCIA, N. M. D. & LIMA FILHO, D. L. Politecnia ou Educação Tecnológica: desafios ao ensino médio e à educação profissional. In: XXVII Reunião Anual da Anped, 2004, Caxambu. Anais... Caxambu, 2004.

MAGALINE, A. D. Luta de Classes e Desvalorização do capital. Lisboa: Moraes, 1977.

MANACORDA, M. A. História da Educação da Antiguidade aos Nossos Dias. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989.

MANACORDA, M. A. Marx e a Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1991.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968.

MARX, K. Instruções aos delegados do Conselho Central Provisório. In: MARX, K & ENGELS, F. (Orgs.) Textos sobre Educação e Ensino. São Paulo: Moraes, 1983.

MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Grijalbo, 1977.

MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto Comunista. São Paulo: Global, 1988.